domingo, 31 de janeiro de 2010

O Leitor - Bernhard Schlink

A leitura como testemunho de um amor inexplicável, intenso e estranho. Um jovem de 15 anos que lê em voz alta para uma mulher de 36, que ama ardorosamente. Um adolescente sonhador e uma mulher bela mas autoritária. Uma personalidade em formação e um espírito enigmático, formado num passado misterioso e agora plasmado no silêncio de quem ouve ler.
Para Hanna, o amor carnal é uma forma de assegurar um presente fugaz, refúgio de quem vive perdida no passado; “a tua vida inteira numa hora”…
Todo o enredo se constrói em torno de um tema complexo e marcante para a Alemanha da segunda metade do século XX: a justiça para os criminosos de guerra, um dos grandes dilemas éticos do pós-guerra. Este livro comprova até que ponto o Holocausto nazi está ainda presente na consciência alemã de uma forma profunda e intranquila.
Para a geração do Leitor, não se tratava apenas de julgar criminosos, mas sim de julgar toda a geração dos próprios pais. Hitler, responsável pela morte e tortura de milhões de pessoas havia sido eleito e apoiado pela maioria dessa geração que agora é julgada; essa tinha sido a geração que executara as ordens de Hitler. Até que ponto, no entanto, é legítimo julgá-los? Até que ponto se trata de vontade de praticar a justiça ou apenas exorcizar a culpa e apaziguar a consciência?
Compreender a geração dos pais torna-se incompatível com a necessidade de julgar e condenar. E Hanna representa a geração dos pais. Amá-la ou julgá-la? É a grande questão.
Apontar o dedo aos culpados não liberta, não apaga a culpa colectiva. Mas torna o sofrimento e o remorso mais suportáveis.
Na segunda parte do livro, um novo dilema: o Leitor conhece um segredo de Hanna que a pode salvar. Mas, bem ao jeito da literatura alemã, Schlink coloca-nos perante um este dilema ético: até que ponto é legítimo revelar um segredo contra a vontade da própria pessoa que, com essa revelação pode ser salva? Poderá esse gesto “salvador” compensar a invasão da dignidade e da liberdade do ser humano?
Se bem que de leitura agradável e fluente, este livro deixa um tom nostálgico no final. O remorso prevalece. A culpa é insuperável. Amar ou castigar não eliminam a culpa nem acalmam a consciência. Culpa por ter amado; culpa por ter castigado.
No final, a grande mensagem parece ser esta: punir é uma tentativa vã de libertar a consciência. A culpa sobrevive. Não se elimina de uma geração para a outra, apenas se transfere. Os acusadores tornam-se vítimas da própria acusação.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Barroco Tropical - José Eduardo Agualusa

Um escritor vesgo, Bartolomeu, que lutava por se desamordaçar. Uma cantora, Kianda, cuja música era a linguagem dos Astros, uma modelo, ex-miss, que um dia caiu do céu. Angola, 2020. Um mundo em harmonia que, segundo Kepler, se expressa em música triste e lamentosa; a Terra chora; e continua a chorar, a terra angolana…
Um homem que morre lentamente depois de ver morrer a filha; uma esposa que não sabe se o há-de abraçar ou matar; - Abraça-o, diz a irmã, que morto já ele está. Bartolomeu vai morrendo mas lutando. Amores que se cruzam e descruzam e rancores que podem ser mais fortes que amores. E Pascal Abide exemplo extremo, real, do oportunismo que destrói a terra angolana: empresário das telecomunicações, senhor controla-tudo, traficante de armas, corrupto, criminoso, traficante de drogas, premiado pelo governo, íntimo da Senhora Presidente, embaixador de Angola no Vaticano.
O temor reverencial, doutra forma dito o medo, paralisante, monstro simpático que convida ao sossego, à harmonia da conivência, à paz da hipocrisia. Uma mulher com sinais no corpo, há que ler os sinais ou ser devorado. E a miséria de um povo nos subterrâneos dos prédios, nas catacumbas da vida.
Mas há sempre o sossego; há pessoas que são sempre lugares. Há sempre Lulu, o marido fiel de Kianda, o refúgio, o ultimo reduto, pessoa que é lugar. Sim, porque o amor é um lugar seguro e há pessoas que são assim: apenas um lugar seguro de onde nunca poderemos nem quereremos escapar. Como Luanda suja, miserável, corrupta, irresistível.
Por todo o lado, a magia do saber africano, a fantasia, o encanto da terra e dos seus fantasmas, refúgio, um lugar para onde se escapa a revolta. O lugar de onde a riqueza não sai nem entra, riqueza de um povo, de almas que não participam no jogo do poder. Apenas um povo ingénuo e sábio que sabe falar chuva, falar vento e conversar com o capim.
Mas em Luanda é preciso não falar; calar e seguir as pisadas do poder. Submissão. E Tata Ambroise, o feiticeiro do governo, o torturador, alma santa que cura desvalidos, ignorância ao serviço do poder. A boca voraz do monstro.
Kianda e Núbia, as mulheres que parecem existir para preencher os sonhos dos homens, mulheres que dão vida à existência. A exaltação do feminino, a beleza mais pura num mundo de podridão.
Em suma, um livro escrito na nostalgia, triste, às vezes apocalíptico, sem nunca perder a capacidade de sorrir, talvez o sorriso do desprezo. Uma visão pessimista mas também encantada de Angola que talvez se estenda à vida.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Opinião - Afinal o tamanho é importante?


Os dois melhores livros que li até hoje (D. Quixote e Os Irmãos Karamazov) são absolutamente monstruosos (mais de 1500 páginas nas edições que usei). Outros livros considerados obras-primas da literatura mundial são do mesmo quilate: Guerra e Paz, Os Miseráveis, Ana Karenina, Doutor Jivago, etc. Isto leva-me a pensar no seguinte: o que distingue, de facto, uma obra-prima? Se é a análise aprofundada do comportamento humano, então, não tenhamos dúvidas, o homem é um ser tão complexo que não se consegue ir às profundezas da alma sem se fazer um “tratado” capaz de funcionar como arma de arremesso se nos assaltarem a casa.
Por outro lado, há livros fantásticos que se lêem numa única insónia: Madame Bovary, A Metamorfose, Inventar a Solidão, O Estrangeiro, De Profundis, A Morte de Ivan Ilich, ou o recente e maravilhoso Firmin.
Mas… poderão estas últimas ser consideradas obras-primas? Não serão apenas leituras e interpretações parcelares da vida e alma humanas?
Esta reflexão leva-nos a uma outra questão: afinal, o que queremos dos grandes livros? Que nos analisem profundamente ou que nos ofereçam belas histórias? Que nos ocupem longos serões e nos obriguem a memorizar centenas de nomes ou então que nos distraiam apenas?
Será o nosso tempo tão pouco valioso que nos possibilite utilizar centenas de horas para ler três ou quatro obras?
Evidentemente tenho as minhas respostas a estas questões. No entanto, gostava que os meus amigos pensassem no assunto…

domingo, 17 de janeiro de 2010

Kafka à Beira-Mar - Haruki Murakami

Kafka à Beira-Mar é uma obra magnífica por conseguir aliar um intenso ritmo narrativo a uma caminhada reflexiva capaz de nos fazer, por várias vezes, voltar a página atrás e parar para reflectir. A linguagem, cheia de simbolismo, cativa o leitor pela ironia e acima de tudo pela fantasia. O interior do ser humano é analisado em detalhe, à luz da sabedoria oriental, num meio irremediavelmente ocidentalizado como é o Japão moderno.
O enredo aborda o percurso de Kafka Tamura, um jovem de 15 anos que foge de casa e um homem idoso, o interessante Nakata, que fala com os gatos, faz chover sanguessugas ou peixes, depois de ter sido vítima de um estranho acidente, na sua juventude. Ao longo do seu atribulado percurso de fuga, Kafka parece fugir de si próprio; amaldiçoado por uma negra profecia lançada pelo pai, foge de quê? É este o coração do livro: de que foge o ser humano?
Em primeiro lugar, desde as primeiras páginas, Murakami transmite a ideia de uma acentuada crença na bondade natural do ser humano; a maioria dos personagens são naturalmente bons, o que vem, pelo contraste, reforçar a maldade atroz do pai de Kafka.
Nakata, velho e bom, encarna a ausência de conhecimento como fonte de felicidade; o velho que fala com os gatos ficara estúpido mas não sabendo o que são recordações, não sabe o que é o sofrimento.
Ao longo da obra, principalmente na primeira parte, Murakami evidencia todo o seu fascínio pelo conhecimento clássico, nomeadamente dos Gregos antigos. Na vida, como em Aristófanes, o ser humano parece destinado a procurar a sua “metade perdida”, com a qual se completará. Estabelece também um paralelismo com o teatro grego, na relevância que dá ao destino, como uma espécie de desígnio incontornável sobre a vida humana, nomeadamente a tragédia. Na vida humana a tragédia parece ser consequência das virtudes e não dos defeitos ou problemas.
Realce também, nesta primeira parte da obra, para a valorização dos conhecimentos tradicionais da cultura japonesa, como por exemplo o conto de Genji, na explicação dos “espíritos vivos”.
Mas o tema central deste livro é, sem dúvida, o destino. Numa espécie de luta interior, Kafka luta pela sua própria identidade, tentando conciliar o destino com o livre arbítrio. A fuga é antes de mais uma tentativa desesperada de escapar ao destino. No entanto, como afirma o seu amigo Oshima, “podes fugir mas não te podes esconder”. E, assim, a vida será sempre uma luta. Ao longo dessa luta, é fundamental a imaginação; aqueles que não a usam tornam-se ocos, desprovidos de conteúdo. É essa imaginação que permitirá ao ser humano lutar e triunfar contra o destino. O destino é poderoso mas não é invencível.
Quando Kafka foge, afinal, foge para onde? Inicialmente para a biblioteca, depois para a floresta: são esses os locais onde ele se pode encontrar. É a eterna procura do “eu”! No entanto, é dentro dele que se encontram as respostas. O seu “eu interior”, personificado pelo “rapaz chamado corvo” funciona como a sua consciência, a sua voz interior.
Ao longo da obra parece notar-se um certo corte com o conhecimento enquanto caminho para a felicidade; o verdadeiro conhecimento é precisamente aquele que provém do “eu interior”. É nesse sentido que Nakata, o velho, considerando-se “estúpido” porque esqueceu tudo o que aprendera na escola, é o mais sábio porque encerra todo o conhecimento místico que dará luz a todos os mistérios que o enredo encerra. A própria biblioteca não é vista como local de conhecimento mas de solidão; é aí que o espírito pode encontrar a verdade, não nos livros mas em si mesmo.
Em conclusão, trata-se de uma obra de grande alcance filosófico e místico, cheia de simbolismos e onde o mistério e a fantasia resumem todo o lado não racional do ser humano, lado esse que é fundamental na procura da identidade e do verdadeiro sentido da vida.
Imagem: Salvador Dali, Swans Reflecting Elephants

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Opinião - Abaixo o pedantismo


Num intervalo de leitura de um brilhante Murakami (Kafka à Beira-mar) faço uma investida pela Internet e deparo com algumas ideias que me deixam perplexo.
Eu sei que todo o ser humano tem direito à sua opinião. Sei e respeito.
No entanto, esse respeito não me impede de ficar indignado.
Eu sei que "é bem" dizer que se gosta de escritores obscuros mesmo que não se goste; "é bem" dizer-se amante de música clássica mesmo que lá em casa se oiça a Ágata; "é bem" decorar uns títulos de programas do Canal2 mesmo que, no esconderijo doméstico, se vejam apenas telenovelas da TVI e, quando muito, o concurso do gordo.
Tudo bem, se "é bem" que seja. Mas eu tenho direito à minha indignação e julgo ter motivos sérios para ficar indignado.
Não gosto do fado de Amália Rodrigues, dos livros de Paulo Coelho, da literatura Light em geral, de escritores elitistas e pseudo-intelectuais. Mas nunca direi ou escreverei que essas pessoas são estúpidas, incompetentes e inúteis. Por uma única razão: porque eles contribuem para a felicidade de muitos seres humanos! Por isso, tenho motivos para ficar indignado quando deparo com certas "modas" como considero pedantes, como a de considerar frívola e menor a (abusivamente denominada) literatura de auto-ajuda e desdenhar de determinados escritores apenas porque são populares e acessíveis como Paul Auster e este espectacular Murakami.
Aqui fica pois a minha indignação: uma obra prima não tem de ser um calhamaço duro de ler nem um escritor de génio tem de ser uma mente tortuosa e atormentada.
Sinceramente, cada vez que leio opiniões como as que referi acima, mais me apetece dedicar-me à tal literatura light! Venham daí as Nora Robert's, as Danielle Sttele's e até o velhinho Konsalik. A leitura tem de ser diversão; abaixo o intelectualismo pedante!

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O Amante - Marguerite Duras

“O Amante” é um dos maiores sucessos desta escritora que marcou a literatura francesa do século XX. Trata-se de uma obra de cariz auto-biográfico, o que, desde logo, revela a enorme coragem da escritora, tendo em conta o enredo do livro.
A protagonista é uma jovem francesa de quinze anos que se apaixona por um magnate chinês na Indochina (antiga colónia francesa que incluía o Camboja, Laos e Vietname). A jovem, a quem a autora não atribui nome próprio, envolve-se de imediato numa intensa relação amorosa e sexual. Trata-se, obviamente, de um relacionamento considerado “escandaloso” para uma jovem europeia.
Também o relato da vida familiar da jovem é absolutamente chocante: a mãe, antiga professora primária arruinada, viúva, é uma pessoa amargurada, gravemente afectada por distúrbios mentais, recorrendo com frequência a violentos castigos corporais sobre a filha “pecadora” e sobre o irmão mais novo, que acaba por morrer. De toda a família, ele é o único que, no livro, tem nome próprio (Paul). O irmão mais velho, dependente da droga e do crime, é uma pessoa violenta que se alia à mãe no exercício da repressão. Ambos, personificam a maldade e a violência.
Além disso, a miséria material, a pobreza quase extrema, acompanha este quadro absolutamente dramático mas descrito de uma forma chocante pelo realismo.
Trata-se de uma obra que, pelo seu dramatismo, exige do leitor um certo distanciamento em relação às emoções que, inevitavelmente, acaba por despertar. É uma obra marcada pela tristeza, pela revolta.
As mulheres são, em geral, vistas como seres solitários, dependentes e emocionalmente frágeis. E é essa fragilidade, essa solidão, que conduz a jovem até à relação intensa mas efémera com o amante. Este é visto como um ser algo superior, inacessível, porque pertence a “outro mundo”, o da elite endinheirada e poderosa. Mas, ao mesmo tempo ele é desesperadamente frágil por não ser capaz de assumir qualquer compromisso, permanecendo sempre submisso ao poder e ao sistema em que se encontra inserido. Além disso, é notório o choque cultural que afasta o amante chinês da jovem francesa.
Ela não se entrega por amor nem sequer por atracção, mas sim por revolta e solidão. Entrega-se e esvazia-se; a relação não a liberta. Pelo contrário, é a sua paixão pela amiga do reformatório, Hélène, que a realiza, que a gratifica, mesmo não passando de uma paixão platónica e fugaz.
A linguagem, poética e sentida, muitas vezes desesperada, é um dos maiores atractivos deste pequeno romance. Uma leitura que se recomenda com a advertência do necessário afastamento emocional, defesa indispensável a um leitor mais sensível.

sábado, 2 de janeiro de 2010

A Terceira Rosa - Manuel Alegre

Trata-se de uma das raras obras em prosa deste que é um dos grandes poetas da língua portuguesa. Neste livro, Manuel Alegre relata-nos uma sofrida história de amor, entre Xavier e Cláudia, na fase final do Estado Novo português.
Os encontros e desencontros, as euforias e os dramas da paixão vão acompanhando a agonia de um regime pérfido mas moribundo que, no entanto, continua a dilacerar vidas e almas. Xavier e Cláudia, divididos pelo fascismo, separados por mundos opostos num mesmo mundo, vítimas dos outros mas também da insatisfação humana que eles próprios representam no teatro da paixão.
Numa admirável, cuidada e emocionada prosa poética, Alegre passeia pelas palavras enquanto nos guia pelos caminhos da solidão que o amor não apaga. Um amor sem tempo, ou melhor, com um tempo que é desde sempre e sem fim.
Fabulosa a descrição dos mecanismos da paixão, que “passa e não passa”. Assim é o amor: morre mas não morre. E um “também eu” que é frase de quem ama e se repete nesse tempo que não acaba, nesse passar que não passa.
Uma prosa escrita com ardor, sem artificialismo, apenas alma, apenas o som que vem do peito. Sem descrições inúteis, que tantas vezes enfadam e destroem grandes enredos. Trata-se da escrita mais pura e magnificamente simples que se pode criar.
Dispensável, talvez o estafado paralelismo entre o amor e os toiros de morte.
Genial, talvez a leitura da alma humana que, de tanto amar, destrói. Xavier amou até à exaustão.
Genial, também, os caminhos paralelos do amor e da Liberdade; o 25 de Abril que nasceu para não morrer, um amor que terminou sem morrer. A esperança que sobrevive, Cláudia e a Liberdade, a eternidade das paixões. Cláudia que dizia a Xavier “eu não quero morrer de ti” é, afinal, eterna.
Curioso título do livro: referência a um belo poema de E. E. Cummings em que a rosa vermelho-escura aparece como símbolo da morte:
(…)
If there are any heavens my mother will (all by herself) have
one. It will not be a pansy heaven nor
a fragile heaven of lilies-of-the-valley but
it will be a heaven of blackred roses
(…)