domingo, 31 de outubro de 2010

Nossa Senhora de Paris - Victor Hugo

(Leitura conjunta no Blogue Destante)
Victor Hugo inicia o romance enunciando um propósito bem claro, típico de qualquer escritor Romântico: o elogio da Idade Média, mais exactamente da arquitectura gótica. Trata-se de uma crítica ao racionalismo renascentista e iluminista que marcou o século anterior ao de V. Hugo.
A narrativa inicia-se com o episódio da “Festa dos loucos”. Trata-se de uma festa popular realizada no dia de Reis, em que o povo efectua uma autêntica catarse, vociferando, gritando contra tudo e todos: padres, doutores, juízes, etc. Tal como acontece no final do primeiro volume, aquando do castigo público de Quasimodo, é visível a opinião de Hugo sobre o povo: vítima da sua própria ignorância que é lamentável e descaradamente cultivada pelos mais poderosos. A festa dos loucos e um chicoteamento público são oportunidades quase únicas que o povo tem de se expressar, da mesma forma que a arquitectura é quase a única forma de expressar o pensamento do homem medieval.
O povo parece ser visto, por Hugo, como algo de exótico, algo multicolor, como se as pessoas fossem actores exóticos, estranhos mas cativantes pelo insólito. É como se Hugo pretendesse mostrar-nos a História como uma espécie de caleidoscópio ou de espectáculo circense.
Quem está habituado a ouvir falar desta obra pela adaptação ao cinema infantil surpreende-se ao ler este livro; os seus propósitos estão muito longe de se restringir a uma estória divertida para as crianças.
Podemos dizer que a catedral de Notre Dame é o personagem mais importante do primeiro volume. O sineiro Quasimodo, criança e jovem disforme, renegado pelos pais e por toda a sociedade, não é mais do que uma extensão da própria catedral. Há uma espécie de fusão entre estes dois personagens, um de carne e osso e o outro de pedra. Quasimodo confunde-se com essas pedras. Também ele é um produto da sociedade; o monstro que os outros vêm nele é o monstro que esses outros criaram.
A partir daqui, Hugo parte para uma espécie de ensaio sobre a arquitectura como expressão artística. Victor Hugo admira a arquitectura gótica, considerando-a o expoente máximo da arte da pedra.
Ao longo do segundo livro, ganha forma um retrato idílico de Esmeralda, a bela cigana que despertará amores inesperados e impossíveis: Quasimodo e Claude Frollo, o sineiro corcunda e o padre alquimista disputarão os impossíveis favores do coração de Esmeralda. Obviamente, amor e tragédia caminharão de braço dado ao longo desta aventura.
Esmeralda é jovem, bela, pura, ingénua, bondosa, alegre e inteligente. Que mais poderiam desejar um corcunda e um padre? Mas nem tudo (ou quase nada) são rosas na vida da bela cigana: a presença de uma cabra inteligente como companhia inseparável, a sua condição de cigana com todos os preconceitos e ódios que isso acarreta fazer de Esmeralda uma candidata permanente à (in)justiça popular, eclesiástica e civil. Sem culpa formada, ela será sempre perseguida.
Na minha opinião, neste segundo volume e talvez mesmo em toda a obra, o personagem mais importante é Claude Frollo, o arcediago de Notre Dame. Ele é um clérigo que representa a tentativa de conciliação da ciência com a mais profunda superstição medieval – ele procura a grande quimera dos tempos medievais: fabricar ouro por processos químicos. Por outro lado, Frollo representa um clero retrógrado que nunca soube conciliar a religião com a bondade e compaixão que a deveriam caracterizar. É pregando a Bíblia que Claude pratica as mais atrozes injustiças, permitindo as torturas de Quasimodo e Esmeralda. Mau grado o amor que sente por Esmeralda, mau grado o afecto paternal por Quasimodo, Frollo é impiedoso na forma como permite os seus sacrifícios públicos, preferindo pactuar com a injustiça “oficial”. Victor Hugo exprime, através deste personagem toda a sua aversão ao Clero, bem como à maldade e ignorância que representa.
Depois de permitir que Esmeralda fosse torturada e condenada à morte, depois de tentar assassinar o seu apaixonado, Claude faz uma arrebatada e inacreditável declaração de amor. É o culminar de uma hipocrisia que não é só sua; é de uma mentalidade e de uma sociedade baseadas no abuso da desigualdade, da injustiça e da ignorância.
Comentário mais desenvolvido aqui e aqui.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A Máquina de Fazer Espanhóis - Valter Hugo Mãe

António Silva, 84 anos, espera no hospital que Laura, companheira de toda a vida, recupere. Sente a velhice como morte lenta… a de Laura e a sua… à medida que avançamos na idade é como se fossemos morrendo para certas coisas… para o trabalho, para os filhos… talvez para tudo excepto para o amor. Mas quando o amor enfrenta a morte, a solidão é um tormento insuportável.
António Silva, no lar, aguarda agora a sua morte, adiada pelo absurdo supremo: a solidão absoluta entre outros seres solitários, outras mortes que se adiam. Uma solidão onde o futuro é um paradoxo, uma miragem ou menos que isso porque não existe.
Por entre a melancolia mórbida daquele depósito de velhos com o irónico nome de lar da feliz idade, sobressai a espaços um humor refinado nas conversas, baseado naquele saber de experiência feito, mas também naquela capacidade de rir e brincar que só as crianças e os idosos têm – traquinices pueris sobra a qual se vai construindo uma felicidade que só existe à superfície mas é real.
E, lentamente, António Silva vai descobrindo que, afinal, a amizade existe. No meio daquele resto de vida, onde os idosos enganam um resto de solidão, foi também onde António encontrou um resto de amizade; uma espécie de sol de fim de tarde…
Aquelas conversas quase felizes são momentos únicos naquelas vidas à espera do ocaso, momentos únicos em que se esquecem as memórias que enegrecem o coração, mais do que alegram.
E nas horas más volta a solidão, impiedosa. E as lembranças da ditadura, da injustiça, da tradição católica salazarista beata, de um Salazar que alimentava a ignorância e o medo. Nunca deixamos de ser um povo dependente de um ser que imaginamos superior, protector, que nos deixe na comodidade da obediência servil. É assim também que encaramos Deus – um vigilante supremo que garanta à sociedade que todos somos vigiados e controlados.
Por entre as conversas diletantes dos idosos, Valter Hugo Mãe vai deixando, em jeito de saraivada, a crítica mordaz à sociedade em que vivemos: a futilidade daqueles que apenas lêem pasquins, revistas cor de rosa ou jornais desportivos; o culto das ilusões, que vai da glória fantasiada do Benfica à adoração apenas ostentadora de um Deus contra o qual se peca por sistema; o fascismo que nos está entranhado na alma, que se vê na forma ainda idolatramos políticos com pés de barro, ao mesmo tempo que esperamos por um qualquer D. Sebastião salvador e redentor; o sistema capitalista-pedante feito de xicos-espertos que continuam a sugar o sangue e o suor do povo.
Valter Hugo Mãe deixa bem claro o seu sentido crítico perante este Portugal que ainda conserva os males e vícios da velha ditadura, onde ainda há um Salazar em cada família. É por isso que Portugal (“esta coisa a tombar para o mar”) é uma máquina de fazer espanhóis – cada vez há mais portugueses a lamentar esta independência inútil, como o velho louco que se diz Português de Badajoz!
Perante isto, haverá ainda quem teime em pensar que acabaram em Portugal os escritores de causas?
Esta é a verdadeira escrita de intervenção!
Esta é a voz que é urgente ouvir nos livros portugueses!

domingo, 24 de outubro de 2010

A Arte de Morrer Longe - Mário de Carvalho

Em jeito de conversa com o leitor, Mário de Carvalho exibe uma escrita agradável, descontraída, divertida mesmo.
A história é extremamente simples: um casal em processo de divórcio (Bárbara e Arnaldo) divide pacificamente os bens mas era preciso decidir quem ficava com a tartaruga porque nenhum deles a queria. O destino do animal é assim a maior incerteza deste enredo. O que acontecerá à pobre e solitária tartaruga?
O destino do pequeno réptil constitui assim uma bela metáfora da vida.
Esta situação, tão simples e ingénua é o ponto de partida para uma história divertida, que nos é contada de forma muito agradável. O estilo algo barroco de Mário de Carvalho, brincando com as palavras, mostra que nem sempre é necessário um enredo muito elaborado para prender a atenção do leitor.
Iniciada a leitura, dificilmente se consegue interromper, tão agradável ela se torna.
Que incríveis problemas podem acontecer a quem apenas quer dar destino a uma tartaruga! A vida é feita de coisas tão fortuitas, tão banais e ao mesmo tempo tão decisivas para o curso do destino! Este livro não fala de coisas prodigiosas; fala de coisas simples que acontecem na vida de pessoas simples. Tudo nos soa tão familiar que nos faz ler o livro com um sorriso permanente. Porque a nossa vida não é mais do que o destino de uma tartaruga presa num aquário, debatendo-se contra paredes de vidro, à espera que algo ou alguém nos conceda a liberdade.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

As Fogueiras da Inquisição - Ana Cristina Silva

Mais do que um romance, este livro constitui um testemunho histórico impressionante. As perseguições aos judeus, tanto pela tenebrosa Inquisição como pelo não menos cruel preconceito arreigado nas convicções populares, constituem algumas das páginas mais negras e brutais do nosso passado.
O Império que então se construía (reinados de D. Manuel I e D. João III) fazia de Portugal o país mais rico da Europa; no entanto, essa riqueza era um disfarce para a fome que ainda se passava no nosso país e, acima de tudo, a ignorância que grassava.
O Estado, na sua ânsia de justificar os erros de má governação, não só tolerava como incentivava o ódio aos judeus para sobre eles fazer recair as culpas de todas as desgraças.
Por outro lado, o Estado perseguia os judeus com a intenção de se apropriar dos seus bens. No entanto, até nesse aspecto se revelou a má governação que parece ser um traço comum de quase toda a nossa história: ao perseguir os judeus apropriou-se de algumas fortunas mas, ao mesmo tempo, provocou a saída para os países nórdicos (mais liberais) de muitas outras famílias endinheiradas.
Mas estes dramas políticos não se podiam comparar aos inenarráveis dramas humanos que a intolerância provocava.
A vida de Ester (avó de Sara que espera a morte na prisão) alerta o leitor para uma realidade muitas vezes esquecida: o monstro da Inquisição não se limitou aos milhares de mortos nas fogueiras; foram muitos mais os que se viram destruídos por torturas cruéis e muitos outros ainda que viveram tolhidos pelo medo, aterrorizados por uma absoluta maldade, praticada com requintes de crueldade, em nome de Deus.
Que Deus é esse que permite crimes tão hediondos? É uma pergunta que ficará eternamente por responder. No entanto, estes não foram os crimes de Deus; foram crimes de homens cegos pelo fanatismo e pelo egoísmo de quem se julga dono de verdades que, de tão absurdas, só a eles podiam convencer.
Notável é também o esforço da escritora para compreender o espírito do Inquisidor (D. João de Bragança). É difícil compreender como a crueldade e mesmo a maldade mais sádica pode esconder-se por detrás da convicção de que se está a praticar o bem.
Uma nota curiosa mas fundamental: ao longo de todo o enredo, são as mulheres que transportam os maiores sofrimentos e, ao mesmo tempo, o maior heroísmo. Se a História de Portugal está cheia de injustiças, foram sempre as mulheres as maiores vítimas. Por isso, serão sempre elas as maiores heroínas.
E no fim de tudo, por maior que seja a desgraça, há sempre uma luz triunfante que está para lá de qualquer dor: “haverá sempre uma luz que brilhará para lá da noite”.
Em suma: um livro triste, revoltante, mas que vale a pena ler porque a maldade tem de ser lembrada. Os maiores erros e crimes do passado assentavam na ignorância, na cegueira que Saramago tanto denunciou. E hoje, será diferente? Já não há fogueiras, mas seremos nós capazes de vencer as trevas do preconceito?

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Royal Flash, A Odisseia de um Cobarde - George MacDonald Fraser

Neste segundo episódio da saga Flashman, a Odisseia de um Cobarde, o nosso anti-herói enfrenta duas figuras reais da hiostória europeia do século XIX: a bela e efervescente (em vários sentidos) Lola Montez bem como o terrível e temível Otto Bismark, famoso político alemão. Na verdade, Lola foi uma famosa actriz e bailarina. No entanto, não foi por esses dotes que ficou na História mas sim por ter sido amante de grandes e famosos personagens históricos como o rei Luís I da Baviera e o músico Franz Liszt. Fraser descreve-a e forma de caricatura, expondo os seus modos exuberantes, a sua personalidade extrovertida, ambiciosa e… louca. Flashman que o diga, que foi vítima das suas garras e de um penico voador que quase o matou.
Quanto a Bismark é descrito como um autêntico rufia, capaz de tudo para atingir os seus fins. O grande construtor da Alemanha moderna é neste livro o grande inimigo de Flash (acredito que Fraser não tenha adquirido muitos amigos na Alemanha depois de publicar este livro).
As hilariantes mas dramáticas aventuras vividas pelo nosso herói arrancam-nos gargalhadas contínuas transformando este livro numa saudável e arrebatadora diversão.
O sucesso de Flashman talvez se explique porque todos nós temos um pouco dele. Mais ainda: todos gostaríamos de ser como ele: ter sucesso, tornar-se um herói ao mesmo tempo que escapa de todos os perigos e responsabilidades. E não é só sorte: Flashman é um verdadeiro artista da cobardia; ninguém como ele sabe fugir, utilizando as mais variadas estratégias. Ele é o testemunho vivo da virtude da covardia. Sem os cobardes creio até que a humanidade não teria sobrevivido ao longo da evolução: fugir é uma arte!
A habilidade do autor é notável, ao utilizar um estilo simples, objectivo, muito atractivo e de fácil leitura. Um aspecto curioso: Fraser criou um personagem, o sorumbático e birrento sogro, que tendo uma personalidade contrastante com Flash faz realçar no leitor todo carácter extravagante de Flashman.
A editora Saída de Emergência está também de parabéns pelo notável aspecto gráfico e criatividade com que concebeu uma capa a condizer com a obra.
Em suma, um livro que nos deixa com água na boca em relação ao terceiro episódio. Flashman é, seguramente, um dos personagens mais divertidos e mais habilmente construídos da literatura contemporânea. Uma trilogia a não perder por quem gosta de rir com os livros.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A Queda dos Gigantes - Ken Follett

Há muito tempo não encontrava um livro que tentasse de forma tão declarada cruzar a realidade histórica com a ficção. O risco que Follett correu foi enorme. A História, ainda mais numa época tão polémica como a da Primeira Guerra Mundial dificilmente se compadece com esta miscelânea de factos e estórias.
A ideia base faz lembrar o eterno Guerra e Paz. No entanto, nem a ficção se aproxima da criatividade e simbolismo de Tolstoi nem a análise histórica faz sombra à clarividência e profundidade do mestre russo.
Ao longo de quase mil páginas, Follett parte para esta abordagem com um enquadramento de cinco famílias em locais estrategicamente significativos:
- A família do jovem mineiro Billy, em Gales, que representa a grande massa anónima que faz as guerras, faz a História e alimenta o mundo; Billy, a irmã Ethel, “guerreira” pela causa sufragista e o pai sindicalista simbolizam a classe operária explorada e, no entanto, triunfadora na entrada da modernidade que o século XX viria anunciar.
- A família de Fitz, inglês, representa a aristocracia tradicional, conservadora e arreigada ao preconceito, alimentando-se da injustiça social.
- A família de Walther, alemão, alto funcionário governamental, envolve o mais tacanho tradicionalismo alemão, representado pelo pai, Otto, em contraste com as ideias modernas, democráticas de Walther.
- A família Pechkov, na Rússia acompanha todo o processo conturbado de derrube do regime czarista e de instauração do bolchevismo soviético. Grigori é o revolucionário convicto, vítima das maiores atrocidades por parte do czarismo e Lev é o irmão oportunista que envereda pela trafulhice mais pérfida como forma de afirmação pessoal e vingança perante um passado de injustiça.
- Nos Estados Unidos da América, Gus, assistente do presidente Wilson é a imagem da América como a terra prometida dos tempos modernos, o país cor de rosa em que todos os sonhos são possíveis.
Por detrás da história de ficção, Follett apresenta-nos uma análise histórica que, em alguns aspectos, se revela muito interessante e inovadora:
Os destinos do mundo, por vezes, dependem de conveniências pessoais; veja-se como alguns personagens são contra a guerra porque estão apaixonados; outros são a favor do conflito por egoísmo, vaidade ou por conveniência pessoal.
Também a Guerra civil na Rússia, como outras guerras, é movida por interesses. Aliás, um dos méritos deste livro reside na atenção dada a um aspecto que a historiografia tem desprezado: o apoio (absurdo em termos ideológicos) da Alemanha ao bolchevismo e da Inglaterra às forças contra-revolucionárias.
O autor opta por aproximar perigosamente os personagens ficcionais aos reais, causando situações pouco verosímeis, como a conversa do soldado Grigori com Kerenski ou de Lenine com os conservadores alemães.
A tentativa de fidelidade histórica é por vezes obsessiva, o que retira interesse à narrativa ficcional. Follett procura, até à exaustão, ser rigoroso historicamente; isso leva-o a descrições demasiado pormenorizadas, principalmente da situação política na Rússia.
Pelo contrário, despreza por completo os inúmeros combates que se deram nas colónias, principalmente em África. Nem sequer refere esse aspecto, o que constitui uma lacuna grave.
O autor cai também em alguns exageros, como a importância da aviação na primeira guerra mundial (estava nos primórdios), a importância dos submarinos e o apoio financeiro (pouco verosímil) dos conservadores alemães a Lenine.
No final da guerra fica a ideia de um certo idealismo em relação aos EUA – o país onde um politico pode casar com uma jornalista anarquista; o país da liberdade e da prosperidade. No entanto, esse é também o país onde Lev se torna o criminoso triunfante.
Como curiosidade, gostava de realçar o desprezo total pela participação portuguesa na guerra. Portugal só é referido uma vez e em termos muito depreciativos: o delegado português à Conferência da Paz intervém uma vez para solicitar que o texto final inclua uma referência a Deus, sendo por isso alvo de chacota por parte dos outros delegados. Afinal de contas nada de estranho se considerarmos que Follett é inglês…
No final da obra sobressai a grande ideia que se assume como uma espécie de lição de moral: o fim da Primeira Guerra Mundial lança o início da segunda; os vencedores da guerra procuraram cobrar à Alemanha todas as despesas e prejuízos, numa atitude de arrogância vingativa que acabou por alimentar o grande monstro chamado Nazismo.
E o mundo pagaria caro por essa arrogância.
A quem interessar esta temática aconselho o filme baseado na obra magnífica de Erich Maria Remarque, "A Oeste Nada de Novo". Algumas cenas do filme:

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Venenos de Deus, Remédios do Diabo - Mia Couto

“A zanga é a nossa jura de amor”. Assim falava Munda Sozinha, companheira de vida do velho Bartolomeu Sozinho. Ele, velho mecânico de navios onde outrora calcorreou mares, agora não se limita a ficar em casa; ele é a casa; “depois de tantos anos, deixamos de viver em casa e passamos a ser a casa onde vivemos”. Depois de uma vida inteira no mar, só a casa lhe dá o ser; ou melhor, o quarto, a sua Nação, onde governa, gere a dívida externa e exonera administradores.

Um dos aspectos mais encantadores desta obra é o peculiar sentido de humor, simples e ingénuo, vindo da alma do povo e carregado com a sabedoria ancestral.
Fumando a tristeza, Bartolomeu sonha enquanto espera a morte. Sidónio, médico português voluntário, espera Deolinda. A vila inteira, Vila Cacimba, espera o futuro que tarda. Todos, sem futuro, brincam com o presente, como se a única alegria se fizesse nas partidas que ainda podem pregar à vida.
No meio da espera, o amor parece ser um ponto perdido no tempo; um alvo abstracto de todas as vidas, um final de enredo que apenas se antevê, apenas se sonha.
O amor, por vezes, é mesmo um lugar estranho. O amor e o sonho, ditos pelos homens soam por vezes com nome de pecado e crime: violação, incesto, infidelidade… muitos venenos, ou remédios? Coisas de Deus ou do Diabo? Cura ou castigo? Pouco importa… pouco importa, também, quem se alimenta desses venenos ou remédios com que se engana o tempo, porque para a vida não há remédio.
Apenas a espera, não necessariamente da morte. Talvez de um renascer para mais tarde remorrer…

Pintura de Malangatana, pintor Moçambicano, retirada daqui.

sábado, 2 de outubro de 2010

Livro - José Luís Peixoto

José Luís Peixoto é já um caso sério na literatura portuguesa. Este Livro é a prova definitiva da sua maturidade literária; diria mais, da sua afirmação como o melhor escritor português da actualidade a par de António Lobo Antunes.
Livro é uma obra claramente dividida em duas partes, bem distintas. Na primeira narra-se a saga de Ilídio e Adelaide, num ambiente rural que atravessa os míseros anos da ditadura salazarista. Tempos de miséria e de fome. Fome de pão mas também de liberdade. Para Ilídio e Adelaide a felicidade era proibida pelo preconceito, pelo medo, pela pobreza de pão e de espírito.
Por todo o lado, a PIDE, o medo, a fome e a ignorância.
Neste reino de injustiça e obscurantismo a emigração ilegal para França, estimulada pelo fantasma de uma guerra colonial (que ninguém entendia) surge como a ponte para a salvação. Uma ponte de esperança mas também envolta em medos e perigos.
Ao longo destas páginas, vamos vivendo a luta permanente destes heróis da miséria e sorvendo com emoção a sensibilidade que Peixoto transpõe para as palavras. Mau grado o ambiente negro que se vivia, Peixoto consegue povoar a narrativa com um sentido de humor discreto mas encantador, que não encontramos nas suas obras anteriores. Talvez este seja o livro em que Peixoto melhor consegue encaixar a poesia que o caracteriza numa narrativa cheia de emoção e incerteza para o leitor.
Na segunda parte do Livro, todo o tom da narrativa se modifica: a esperança renasce; a vida adquire tons mais vivos; o mundo ilumina-se. E o marco dessa mudança é o 25 de Abril. O amor de Ilídio e Adelaide ressurgirá finalmente; a vida passa a ser escrita na cor da esperança. O autor do livro brinca com o narrador e com o leitor, em jogos de palavras e de enredo que encantam quem lê, como se diz na contracapa do livro, “onde se ultrapassam as fronteiras da literatura”.
Nesta segunda parte, a qualidade literária da escrita e a sensibilidade do autor foram capazes de fazer estremecer de emoção e assombro este modesto leitor.
Faltam os adjectivos para descrever esta emoção.
Mais do que cativante, mais do que genial, a escrita de Peixoto é absolutamente mágica. Há episódios que me provocaram um arrepiante estado de deslumbramento que nunca sentira em qualquer outro livro. A não ser talvez esse profundo Voyage au but de la nuit que o próprio José Luís Peixoto tão abundantemente refere nesta obra, mas sem cair nos tons negros, quase apocalípticos de Celine.
Em suma, Livro é O Livro! Talvez o melhor livro escrito em Portugal após o Memorial do Convento e Ontem não te vi em Babilónia.
E termino este comentário com a sensação de que faltam palavras; tudo o que poderia escrever seria insuficiente para exprimir a onda de emoção que este livro me provocou.
Obrigado, José Luís Peixoto!