(Leitura conjunta no Blogue Destante)
Victor Hugo inicia o romance enunciando um propósito bem claro, típico de qualquer escritor Romântico: o elogio da Idade Média, mais exactamente da arquitectura gótica. Trata-se de uma crítica ao racionalismo renascentista e iluminista que marcou o século anterior ao de V. Hugo.
A narrativa inicia-se com o episódio da “Festa dos loucos”. Trata-se de uma festa popular realizada no dia de Reis, em que o povo efectua uma autêntica catarse, vociferando, gritando contra tudo e todos: padres, doutores, juízes, etc. Tal como acontece no final do primeiro volume, aquando do castigo público de Quasimodo, é visível a opinião de Hugo sobre o povo: vítima da sua própria ignorância que é lamentável e descaradamente cultivada pelos mais poderosos. A festa dos loucos e um chicoteamento público são oportunidades quase únicas que o povo tem de se expressar, da mesma forma que a arquitectura é quase a única forma de expressar o pensamento do homem medieval.
O povo parece ser visto, por Hugo, como algo de exótico, algo multicolor, como se as pessoas fossem actores exóticos, estranhos mas cativantes pelo insólito. É como se Hugo pretendesse mostrar-nos a História como uma espécie de caleidoscópio ou de espectáculo circense.
Quem está habituado a ouvir falar desta obra pela adaptação ao cinema infantil surpreende-se ao ler este livro; os seus propósitos estão muito longe de se restringir a uma estória divertida para as crianças.
Podemos dizer que a catedral de Notre Dame é o personagem mais importante do primeiro volume. O sineiro Quasimodo, criança e jovem disforme, renegado pelos pais e por toda a sociedade, não é mais do que uma extensão da própria catedral. Há uma espécie de fusão entre estes dois personagens, um de carne e osso e o outro de pedra. Quasimodo confunde-se com essas pedras. Também ele é um produto da sociedade; o monstro que os outros vêm nele é o monstro que esses outros criaram.
A partir daqui, Hugo parte para uma espécie de ensaio sobre a arquitectura como expressão artística. Victor Hugo admira a arquitectura gótica, considerando-a o expoente máximo da arte da pedra.
Ao longo do segundo livro, ganha forma um retrato idílico de Esmeralda, a bela cigana que despertará amores inesperados e impossíveis: Quasimodo e Claude Frollo, o sineiro corcunda e o padre alquimista disputarão os impossíveis favores do coração de Esmeralda. Obviamente, amor e tragédia caminharão de braço dado ao longo desta aventura.
Esmeralda é jovem, bela, pura, ingénua, bondosa, alegre e inteligente. Que mais poderiam desejar um corcunda e um padre? Mas nem tudo (ou quase nada) são rosas na vida da bela cigana: a presença de uma cabra inteligente como companhia inseparável, a sua condição de cigana com todos os preconceitos e ódios que isso acarreta fazer de Esmeralda uma candidata permanente à (in)justiça popular, eclesiástica e civil. Sem culpa formada, ela será sempre perseguida.
Na minha opinião, neste segundo volume e talvez mesmo em toda a obra, o personagem mais importante é Claude Frollo, o arcediago de Notre Dame. Ele é um clérigo que representa a tentativa de conciliação da ciência com a mais profunda superstição medieval – ele procura a grande quimera dos tempos medievais: fabricar ouro por processos químicos. Por outro lado, Frollo representa um clero retrógrado que nunca soube conciliar a religião com a bondade e compaixão que a deveriam caracterizar. É pregando a Bíblia que Claude pratica as mais atrozes injustiças, permitindo as torturas de Quasimodo e Esmeralda. Mau grado o amor que sente por Esmeralda, mau grado o afecto paternal por Quasimodo, Frollo é impiedoso na forma como permite os seus sacrifícios públicos, preferindo pactuar com a injustiça “oficial”. Victor Hugo exprime, através deste personagem toda a sua aversão ao Clero, bem como à maldade e ignorância que representa.
Depois de permitir que Esmeralda fosse torturada e condenada à morte, depois de tentar assassinar o seu apaixonado, Claude faz uma arrebatada e inacreditável declaração de amor. É o culminar de uma hipocrisia que não é só sua; é de uma mentalidade e de uma sociedade baseadas no abuso da desigualdade, da injustiça e da ignorância.
Comentário mais desenvolvido aqui e aqui.