terça-feira, 30 de novembro de 2010

A Relíquia - Eça de Queirós

Muitos anos depois, à procura de um pouco do ar sempre fresco de uma escrita imortal e inimitável, voltei ao bom velho Eça! Reler Eça é respirar o ar sempre fresco de finíssima ironia, de sátira bem humorada, de crítica mordaz mas sempre divertida.
Uma das coisas que mais impressiona neste romance é a forma como Eça exprime com bom humor, que por vezes leva à gargalhada do leitor, uma visão terrivelmente pessimista do Portugal oitocentista decadente. Eça abomina a beatice extrema, quase insana da titi, D. Patrocínio mas apresenta-nos essa crítica em forma de caricatura bem disposta. Eça abomina a hipocrisia de Teodorico que, para ganhar o direito à herança da titi, se transforma em falso beato, mas descreve-nos esse carácter abjecto num tom de autêntica comédia.
É esta a arte maior de Eça: a capacidade de transformar a critica em comédia.
O livro narra as aventuras e desventuras de Teodorico, um jovem criado num meio profundamente conservador, povoado por um cristianismo hipócrita e beato. Depois de ficar órfão, o jovem é acolhido pela tia Patrocínio, uma mulher obcecada pela religião, que abomina não só o sexo como qualquer actividade mundana. Teodorico, interessado acima de tudo na herança, bajula a titi de uma forma desmedidamente hipócrita. Quando um dos padres que frequenta a casa da titi sugere uma viagem de Teodorico à Terra Santa, este aproveita a oportunidade para “matar dois coelhos com uma cajadada”: por um lado aproveitará para gozar todos os prazeres da carne ao mesmo tempo que procurará trazer à titi a relíquia sagrada que, acredita ele, lhe garantirá de vez a famigerada herança. Mas nem tudo correrá como o previsto…
Para além da referida perspectiva crítica, por demais conhecida em Eça, este livro mostra-nos o Eça viajante: a viagem à Terra Santa é descrita com impressionante riqueza descritiva e recorrendo a um exotismo fantástico que conduz o leitor por paisagem e situações verdadeiramente encantadoras.
Em conclusão: trata-se de um livro divertido, bem claro na crítica mordaz ao Portugal do século XIX mas que não deixa de nos convidar a reflectir sobre questões que serão sempre actuais, como o exagero a que pode conduzir a ambição material, capaz de derrotar quaisquer princípios éticos, a vacuidade de uma educação baseada apenas em princípios de religiosidade extrema ou o peso do preconceito, irmão gémeo da ignorância na sociedade portuguesa de ontem e, já agora, de hoje… é que, pelos vistos, o Portugal de Eça está vivo…

domingo, 28 de novembro de 2010

Loucura Azul - Paulo Alexandre e Castro

Loucura Azul é um livro surpreendente, uma espécie de aparição, num tempo em que as editoras apostam em literatura fantástica ou de cordel. Sem deixar de contar um estória com emoção e mistério, que prende o leitor até ao final, o autor leva-nos a reflectir sobre questões que avassalam a alma humana.
Tudo se desenrola em torno de um pintor em dificuldades, Maurizio, que se apaixona por uma professora universitária, Sylviane. Juntos experimentam uma intrigante história, em busca de compreensão da natureza humana.
O corpo está sempre no centro da vida; da experiência quotidiana às situações aparentemente mais bizarras, a viagem envolve prostitutas de rua, linhas eróticas, sex-shops, pensões sujas de encontros ocasionais, etc. Tudo o que possamos apelidar de sub-mundo do sexo não é mais que o campo de batalha onde se desenrola a luta entre a vida e a loucura.
“Quero viver tudo”, afirma Sylviane. Mas… até que ponto é possível “viver tudo” sem colocar em causa esse último reduto de segurança, onde vive o amor, essa reserva, esse refúgio?
Com Vladimir, o pretenso espião russo que cai aos trambolhões na vida de Maurizio e Sylviane, atinge-se o auge da loucura. Mas os corpos do prazer são também os corpos que matam e morrem; o amor e o ódio; o prazer e a violência; o orgasmo e a morte; loucura azul e loucura vermelha… Impossível compreender. Extremos que se tocam mas permanecem: as contradições resistem sempre. Torturam Maurizio. Torturam-nos. “Se ao menos a filosofia fosse descartável”, diz Mauirizio; se ao menos pudéssemos não pensar, seguir em frente sem compreender… “se ao menos eu conseguisse amar-te sem te ter…” se ao menos a vida pudesse ser só a vida…
Perante o cadáver de Vladimir, explana-se o horror da loucura vermelha: a beleza do cadáver; a “beleza do horror, sangue e húmus da vida”.
A mente de Maurizio, cada vez mais alucinada vai-se afastando da realidade, criando um mundo paralelo onde os pesadelos se confundem com o real; a fronteira do irreal torna-se cada vez mais ténue.
Este livro é um constante desafio aos limites: limites do corpo e da alma; do prazer e do sofrimento, do amor e da morte. Mas por mais eloquentes que sejam as construções teóricas, o corpo permanecerá. A loucura azul dará lugar ao vermelho, talvez vermelho de paixão desmedida ou, fatalmente, de sangue, vermelho-forte de Marte, o cruel Deus da guerra.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A Casa de Papel - Carlos María Domínguez

A Casa de Papel é um livro sobre pessoas que vivem para os livros; pessoas cujos destinos se cruzaram sobre livros, cujas vidas ficaram marcadas por essa paixão inexplicável e maravilhosa.
Há destinos que se desenham em torno de um livro; vidas determinadas por um romance que alguém escreveu sobre papel e que outro alguém escreve sobre os dias e noites do destino.
Mas também há livros que mentem; que enganam e magoam; livros falsos, escritos sem alma. Mas não é desses que vive quem lê por paixão.
Carlos Brauer, leitor compulsivo, incurável, adicto, afirmou: “os livros são a minha casa”. E um dia levou essa máxima à letra e fez uma casa com livros. Livros e cimento. Sonhos de papel e betão. Uma casa sonhada e vivida, sobre as areias da paixão que o possuiu. Das paixões que o devoraram: os livros e Bluma, a mulher que o marcou sobre a Linha da Sombra, de Conrad.
Carlos Brauer, também ele, atravessará a sua Linha da Sombra; muito para lá de uma vida confinada ao real; uma vida que construiu sobre o fantástico mundo dos livros.
Este é um livrinho fantástico: lê-se de um fôlego, enche a alma de sonho mas deixa um sabor amargo a pouco.
Mas quem lê esta pequena obra-prima ficará sempre com a certeza de que os livros unem pessoas.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Centelhas - Hyatt Bass

(Texto também publicado no blogue Destante)
The Embers, no seu título original (As Cinzas), primeiro romance de Hyatt Bass, aparece-nos nesta edição da Civilização Editora sob o título de Centelhas. Esta diferença pode apelar para diferentes interpretações do livro; na verdade, o drama da família Ascher pode ser visto, como tudo na vida, sob dois prismas diversos: o catastrofista, que parece emanar do título original e o optimista que pode ser lido a partir da interpretação do título português. Um drama tão profundo como o que se narra no livro não deixa de envolver centelhas de vida, brilhos momentâneos que emergem das cinzas de vidas desfeitas.
Trata-se de um livro interessantíssimo sobre coisas invulgares que acontecem em todas as famílias vulgares.
Os Ascher eram uma família feliz da classe média/alta norte-americana; Joe é dramaturgo, numa carreira com altos e baixos onde os picos não compensavam os vales mas que lhe permitiam uma vida desafogada; Laura é actriz e mãe de família dedicada; Emily é uma adolescente rebelde que vive de forma intensa os dramas familiares; mas o mundo dos Archers desaba quando Thomas morre com apenas dezassete anos.
No entanto, a morte do jovem não é o único drama. Tudo se desenrola como se este acontecimento trágico trouxesse à superfície outros dramas, entretanto calados, escondidos sob a capa vulgar de um quotidiano apressado e muitas vezes fútil.
Neste ambiente sobressai a apurada capacidade de Bass para pintar um quadro perfeito do perfil psicológico dos personagens. Na minha opinião de leitor destaca-se a figura der Joe, o chefe de família.
Joe é um homem amargurado, pelo remorso, pela culpa que o avassala no que respeita à morte de Thomas mas, ainda mais, pela sua personalidade egocêntrica e muitas vezes demasiado atenta à futilidade e ao materialismo. O drama de Joe é este: eu conheço os meus defeitos e limitações, no entanto não consigo ultrapassá-los e, pior ainda, gosto de ser assim. Dessa forma, a mente conturbada de Joe navega entre o que é, o que foi e o que gostava de ter sido.
Numa leitura mais apressada, este livro pode ser lido como um panfleto dos valores familiares tradicionais; mas é muito mais que isso: o livro problematiza e põe em causa toda a natureza das relações que estabelecemos com os outros e a dificuldade em coordenar a procura da felicidade com a necessidade de valorizar os que nos rodeiam.
O estilo é simples, directo, sem subterfúgios nem figuras de estilo desnecessárias, pelo que se lê com agrado e a bom ritmo. Enfim, uma boa surpresa da Editora Civilização.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Silêncio - Shusaku Endo

Shusaku Endo, falecido em 1996 foi um dos mais conceituados escritores japoneses do século XX. Nesta obra, Silêncio, aborda um tema polémico e profundo, que tem muito a ver com a nossa história: o trabalho dos missionários portugueses no Japão, nos séculos XVI e XVII. O livro narra a história do Padre Rodrigues, um jesuíta português que partiu para o país do sol nascente procurando um outro missionário, o padre Ferreira de quem se dizia ter apostatado, ou seja, renegado a fé cristã.
A época era de intolerância; enquanto em Portugal e noutros países cristão se perseguiam e queimavam judeus nas fogueiras da Inquisição, no Japão eram os cristãos vítimas de perseguição impiedosa por parte das autoridades locais, que pretendiam manter o povo fiel ao Xintoismo e ao Budismo vigentes.
Mais interessados no negócios do que no cristianismo, os japoneses começaram por aceitar benevolamente a presença portuguesa, tendo os jesuítas, liderados por S. Francisco Xavier, conseguido converter milhares de japoneses. Mas no século XVII tudo se modificaria, em parte pela influência que os holandeses ingleses (protestantes e rivais dos portugueses) moveram junto das autoridades japonesas. Inicia-se então um período de intensa e cruel perseguição, em que os padres missionários e os fiéis eram punidos com castigos arrepiantes e submetidos a torturas inacreditáveis.
No entanto, a questão fundamental não radicava apenas na falta de tolerância. A questão fundamental que Endo coloca ao narrar a incrível história do Padre Rodrigues é a incapacidade que os seres humanos revelam para enquadrar as crenças num espaço cultural próprio, sem o qual elas se revelam inférteis. Como afirma um samurai japonês, o cristianismo era como uma árvore transplantada para um terreno infértil. Impor, mesmo que por benevolência, uma determinada crença é um acto institucional, mais do que de consciência. A Igreja como Instituição nunca conseguiu compreender devidamente este fenómeno: o conceito de BEM, por mais universal que possa ser, não é compatível com normas institucionais que se pretendem universalizar.
Nessa medida, a obra de Endo não perde actualidade nos nossos dias; vemos com frequência governos actuais tentando impor o nosso conceito de bem, de democracia, de liberdade sem ter em conta as realidades culturais diversas com que nos deparamos. E nós, no nosso quotidiano, quantas vezes não recorremos a argumentos como estes: “isto é bom para ti”, sem ter minimamente em conta a realidade do outro? Até que ponto o nosso conceito de “bem” ou de “bom” deixa de ser uma ideia subjectiva?
Enfim, um livro que foi para mim uma excelente surpresa, pela sensibilidade que revela sobre um assunto tão complexo e intemporal. O estilo, bastante claro e acessível, faz deste livro um verdadeiro manual de tolerância universal.
Aguarda-se para breve a adaptação deste livro ao cinema pela mão do conceituado Martin Scorcese.
Acima, além da capa da edição portuguesa da D. Quixote, incluo a da edição francesa pela sua magnífica qualidade gráfica.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Estorvo - Chico Buarque

Há uns tempos, Chico Buarque dizia que quando escreve procura sentir a música das palavras. Músico genial, ele expressa nesta obra, através das palavras, toda a musicalidade que lhe vai da alma à caneta. As letras volteiam em frases de melodia melancólica; a escrita em si, as palavras simples e sentidas são, por si só prazer em estado puro para quem lê.
Para quem, como eu, havia lido Budapeste há pouco tempo, este livro é uma agradável surpresa. A dimensão poética da escrita transforma o acto de ler num exercício de prazer, mau grado toda a melancolia, toda a tristeza que estas letras exprimem.
Em Budapeste, Buarque construiu um enredo com o qual pretendeu ilustrar as suas ideias; em Estorvo, Buarque deixa fluir essas ideias, sem se preocupar com grandes tramas narrativas.
Conta-se a história de um homem só na grande cidade, desintegrado de um meio onde predomina a exterioridade, a vaidade e o materialismo. A futilidade das classes superiores, da alta burguesia a que a sua família pertence, contrasta com a miséria que alimenta o crime. Entre uma família fútil, de corações entorpecidos pela fortuna e uma horda de criminosos com os quais se envolve, o nosso personagem deambula na solidão, na incerteza, na falta de identidade.
Ele vive em permanente equilíbrio precário entre o sonho e a vigília, o real e o pesadelo, a inquietação e o medo, sempre na margem do mundo. Vítima da modernidade, ele narra-nos os seus dramas submetendo a eles todo o percurso narrativo, num monólogo interior em que narrador, personagem e autor se misturam.
Perde-se o sentido da vida; perdem-se as raízes do ser…
A cidade transforma-se num imenso deserto, onde tudo perdeu o sentido.
Podemos dizer que este livro é a expressão máxima da solidão humana.
Sem dúvida um livro cheio de beleza literária onde faltará, porventura, uma estrutura narrativa capaz de enredar o leitor naquilo que a maioria de nós procura num livro: uma estória. Estorvo não é uma estória: é a alma de um homem que é estorvo no mundo. Ou melhor, a estória de um mundo que é estorvo para um homem.
E para todos os que, como eu, idolatram o GÉNIO que enfrentou a ditadura com as letras, aqui fica uma das coisas mais GENIAIS alguma vez escrita e cantada:

terça-feira, 9 de novembro de 2010

After Dark, Os Passageiros da Noite - Haruki Murakami

Fascinante.
Maravilhoso.
Alguém escreveu há tempos uma frase que define na perfeição esta obra de Murakami: “Um livro magnificamente estranho”. Impossível definir melhor esta viagem pela noite e pelo maravilhoso mundo das personagens fascinantes do grande mestre japonês.
A calma e o fascínio da noite que escondem mistérios impenetráveis… a noite de Van Gogh… Mari e Takahashi vagueiam na noite de Tóquio confrontando-se com sensações únicas, acontecimentos inauditos, dramas silenciosos: uma prostituta agredida violentamente, um funcionário exemplar mas envolvido no crime, uma banda misteriosa em que Takahashi toca trombone. E do outro lado da noite está Eri, a irmã de Mari. Eri dorme profundamente; um televisor ligado absorve-a no sonho; uma câmara de filmar guia-nos no pesadelo de Eri; tudo é possível na noite, até mesmo o sonho. Até mesmo a fuga para dentro de nós mesmos, como Eri.
Murakami tem esta fascinante capacidade de escrever a paz entre o drama, de exprimir a vida atordoante dos nossos tempos entre o misticismo envolvente do espírito japonês. A magia da calma, da paz, entre os dramas mais violentos. E por todo o lado, a música, essa paixão de que Murakami não prescinde; os sons calmos que acompanham a noite.
No início do livro, uma lenda japonesa dá o tom: três irmãos, perdidos numa ilha desabitada, preparam-se para subir uma montanha à procura de um local para se fixarem; um Deus ordena-lhes que transportem um rochedo. Um fica junto do rio onde há imenso peixe; outro fica a meio da montanha onde dispõe de frutos e algum peixe. Mas nenhum deles poderá ver o mundo. O terceiro sobe até ao topo da montanha; aí terá dificuldade em arranjar alimento mas verá o mundo por inteiro. Estas são as opções da vida. Nós, a maioria, preferimos a segurança do sopé. Poucos transportam o rochedo para o alto. Alguns, como Mari e Takahashi vivem para ver e viver o mundo do alto da montanha; outros, como Eri, dormem e sonham.
Em suma, mais um livro maravilhoso de Murakami, cheio de mistério e encanto. Um livro que se lê sem esforço e que penetra fundo na nossa alma.
Ninguém permanece igual depois de ler Murakami. A sua escrita mexe-nos na alma e deixa-nos impávidos perante o fascínio de uma simplicidade transcendente.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O Disco de Jade - Os Cavalos Celestes - José Frèches

Ainda pouco conhecido entre nós, José Frèches é um escritor francês que se iniciou na ficção aos 52 anos, com uma trilogia (O Disco de Jade) em que este volume (Os Cavalos Celestes) é o primeiro número.
Surpreendente é o melhor adjectivo para caracterizar esta narrativa. Emocionante, exótica, bem escrita, num estilo por vezes poético, outras filosófico mas sempre objectivo, com um ritmo narrativo excelente, que prende o leitor até à última página e deixa “água na boca” para os números seguintes.
Trata-se de uma história colossal, que se desenrola no misterioso mundo oriental, mais exactamente durante a afirmação do reino de Qin que viria a dar origem à actual China, no séc. III a. C.
Narra-se a vida de Lubuwei, um mercador de cavalos muito rico que compra por preço exorbitante um magnífico disco de jade que, julga ele, lhe trará a fortuna e a imortalidade. A partir daí o destino de Lubuwei cruza-se com a vida das grandes senhores de Qin, o rei, a família real, os nobres e altos funcionários, os eunucos que procuravam controlar a corte e uma miríade de personagens que procuram a qualquer preço alcançar o poder. O reino de Qin passava por uma dramática escassez de cavalos e o nosso herói encontra assim terreno fértil para se afirmar como personagem de vulto naquela teia intrincada de interesses devoradores.
Ao longo de todo o livro é notório o confronto permanente entre as tradições confucionistas e taoistas que moldaram a mentalidade daquele povo e a superioridade cultural chinesa. De facto, numa altura em que a Europa vivia mergulhada na economia rural pré-romana, emergia o embrião do gigante chinês.
O filósofo gago Hanfeizei, por sua vez, encarna uma terceira força: uma sabedoria independente das crenças religiosas, em que se baseará, afinal, o poder político do Grande Império emergente. A sua teoria política, o legalismo, viria a ser a base do sistema imperial. O segredo do sucesso baseia-se na capacidade deste sistema legal para dominar os grandes interesses feudais, algo que poucos sistemas políticos conseguiram até à época contemporânea. Numa interpretação um pouco “livre”, esta concepção legalista do poder faz lembrar esse teórico pioneiro dos sistemas políticos modernos que foi Maquiavel, cerca de 1700 anos depois: o homem não é, na sua base, virtuoso, pelo que só reage mediante prémios ou castigos. Daí a necessidade de justificar um poder político autoritário e personificado num líder.
Aos poucos o legalismo vai superando a predominância da tradição taoista: o reforço do poder político justifica-se pela necessidade de dominar os interesses particulares, egoístas e obscuros. Mas, no reverso da medalha, ao perseguir o Tao, o poder está a roubar aos pobres (que sempre constituíram a maioria silenciada) aquilo que lhe restava: a paz interior.
A admiração do autor pela civilização chinesa nascente manifesta-se também noutros aspectos, como a arquitectura das cidades, predominantemente funcional mas também com padrões estéticos requintados, a música com toda a sua envolvência mística e o erotismo de um povo que aprendeu a cultivar o corpo como complemento da mente e da alma.
Num romance palaciano como este não podiam faltar as intrigas e traições, os jogos de interesses e maquinações diabólicas, que o autor manobra com mestria, prendendo o leitor num enredo bem urdido.
Curioso o papel que Frèches reserva à mulher. As mulheres têm sempre um papel decisivo no jogo político. Os homens controlam mas, no fundo são sempre controlados por elas, através dos seus jogos sensuais e da sedução.
Está de parabéns a editora Bertrand por nos oferecer este magnífico livro a um preço sensacional (cerca de dez euros). Fica a pergunta: se é possível publicar livros como este por este preço, como se justificam alguns "saques" que vemos por aí?

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A melhor leitura do mês - Outubro

Outubro foi um mês de maior qualidade do que quantidade.
Pelas mãos, pela vista e pela mente passaram-me:
- Um decepção bem grande com um clássico frustrante: Nossa Senhora de Paris, do grande Victor Hugo que aqui se revela mais filósofo e historiador do que romancista; por mim, prefiro guardar do corcunda a imagem que me ficou da Disney :)
- Uma decepção de quase mil páginas: um livro que quis ser manual de História e romance ao mesmo tempo e do qual resultou uma caricatura do Guerra e Paz: A Queda dos Gigantes, de Follett.
- Uma surpresa agradável: A Arte de Morrer Longe de Mário de Carvalho. Um livro divertido que vai dizendo umas coisas sérias pelo meio. Um escritor que merece mais atenção por parte da opinião pública.
- Uma revelação: Ana Cristina Silva em As Fogueiras da Inquisição. Um livro triste, revoltante, profundo. Uma autora que pode vir a ser um caso sério se aprimorar melhor a vertente ficcional.
- Uma confirmação: o génio de Mia Couto, um escritor que não faz obras-primas mas anda sempre por perto.
E TRÊS LIVROS MAGNÍFICOS de 9.5 na escala de 0 a 10:
- O livro mais divertido do ano: Royal Flash de George MacDonald Fraser. Este segundo volume da Odisseia de um Cobarde consegue ser ainda mais hilariante que o primeiro.
- O topo (até agora) da carreira de José Luís Peixoto, com o Livro.
- A confirmação de um génio da nova literatura portuguesa: Valter Hugo Mãe com o formidável A Máquina de Fazer Espanhóis.
Perante isto... como escolher o melhor livro do mês...
A tarefa revela-se árdua.
No entanto...
Decidido "sobre a linha da meta"... the winner is...



:)