Confesso que a literatura fantástica nunca me atraiu. Nem um bocadinho. No entanto, a avalanche deste tipo de romances tornou-se incontornável. Talvez fruto dos tempos de crise que vivemos e do inevitável movimento apocalíptico que já se faz sentir, a magia e o revivalismo aparecem-nos por todo o lado.
Neste contexto, alguém de extremo bom gosto literário me aconselhou este livro. Com algum masoquismo à mistura, lá decidi embarcar na aventura. 730 páginas de letra miudinha depois, foi com pena que fechei o livro. Por mim, bem poderia ter mais 730 páginas. Fascinante, espectacular, genial!
O livro conta a história de dois magos ingleses no início do século XIX, quando a Inglaterra tentava sobreviver às invasões napoleónicas. Strange e Norrell tentam restaurar a magia inglesa, perdida desde os tempos medievais do mítico Rei Corvo. Assim se desenrola uma trama fascinante de acontecimentos fantásticos, onde pontifica a luta entre as forças do mal representadas pelos elfos e as forças da magia humana que Norrell e Strange encarnam.
Nessa altura a magia inglesa estava confinada aos magos teóricos, fiéis estudiosos e gurdiões dos livros dos grandes magos de outrora. Mas a magia, como a vida, não termina nos livros. Strangre e Norrel trazem a magia para a vida; os seus actos mágicos são descritos de forma absolutamente fascinante por Susanna Clarke, acompanhando sempre as descrições com um fino e cativante sentido de humor. Este constante tom de humor faz com que a escrita de Clarke se assemelhe a um diálogo com o leitor, criando uma relação de proximidade que cativa. Por vezes o sorriso do leitor é substituído por saudáveis gargalhadas como quando Strange ressuscita soldados mortos e mutilados, desloca o curso de rios para enganar Napoleão, muda de lugar uma cidade espanhola causando a ira do governo que queria “tudo no sítio”, coloca Bruxelas na América com todos os seus habitantes, etc.
No mundo dos homens, o governo inglês recorre aos magos para derrotar Napoleão. E até os portugueses entram em cena: Wellington, o general inglês que veio para Portugal com o encargo de evitar as invasões napoleónicas recorre a Strange para, por exemplo, acabar com a praga que eram as lastimosas estradas portuguesas (já nessa altura). No mundo dos elfos, pelo contrário, reina a escuridão; alguns seres humanos são por eles atraídos de forma traiçoeira. Pelo meio fica a memória fascinante do reino de John Uskglass, o mundo perdido daquele que foi o maior mago de sempre e rei da Inglaterra Meridional, grande rival do reino dos Elfos, a terra de Faerie.
Embora seja clara a oposição entre o reino do mal e o reino dos homens, é admirável a forma como a autora se recusa a colocar o confronto em termos de oposição entre o bem e o mal, sendo o leitor encarregado de tal tarefa. Também entre Norrell e Strange, os homens não resistem a colocar-se do lado de um dos dois grandes magos (comparando essa tendência à questão política inglesa entre trabalhistas e conservadores) mas é sempre o leitor quem constrói tais juízos, como se o bem e o mal estivessem sempre à disposição dos homens para que estes escolham livremente.
Em suma, um livro fascinante que é já parte da história da literatura fantástica. Sem dúvida um clássico do género, imperdível para quem cultiva este género literário. E não só.
Para além de tudo o mais, esta obra constitui uma das mais belas homenagens que alguma vez se fizeram aos livros: eles são a fonte de todo o conhecimento mas o seu conteúdo precisa de ser transposto para a vida. É na vida e na felicidade dos homens que o conhecimento se torna significativo. E aí reside também a magia.
E a magia, indubitavelmente, existe. Ela está sempre onde estiver a nossa imaginação e, acima de tudo, a magia é tudo o que não compreendemos.