Adolescente (1874-1875) é o menos conhecido dos cinco longos romances produzidos por Dostoiévski entre 1866 e 1880, o seu período de plena maturidade literária. Escrito na primeira pessoa, é a história de um filho ilegítimo. Mais um herói humilhado e ofendido, que cresceu entre estranhos, sem quase ter visto a mãe nos seus primeiros anos de vida, e atormentado por uma existência parental «dupla» - o pai biológico e o marido de sua mãe, que lhe deu o nome - divisão acentuada ainda pela diferença de estrato social entre essas figuras parentais. A história de Arkádi é assim uma espécie de «educação sentimental», extremamente complexa pela multiplicidade de contradições que dividem o jovem. Todos os grandes temas de Dostoiévski estão aqui presentes: a luta entre o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas, a degradação moral inerente à condição humana e a possibilidade de redenção...Dostoiévski evidencia nesta obra os sinais terríveis que são o reflexo dessa dicotomia em todos os estratos da sociedade russa nos meados do século XIX.
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Comentário:
Esta é uma das obras mais complexas de Fiodor Dostoievski. Ao longo do livro, deparamos com uma personalidade muito complexa, a do jovem Arkadi, que Fiodor explora com a precisão de um relojoeiro. Nesta obra, mais do que em qualquer outra do génio russo, a alma e o cérebro do protagonista são esmiuçadas até ao limite, revelando-nos algo de extremamente complexo: uma personalidade perdida entre impulsos e emoções, uma inteligência que se esvai paulatinamente, perdida entre esses impulsos emotivos que traem qualquer racionalidade.
Nunca gostei do título de mestre do romance psicológico que vulgarmente é atribuído a Dostoievski, porque tal atributo é manifestamente redutor. Mas o certo é que se há obra em que essa designação pode encaixar, é esta. O próprio enredo parece ser deixado em segundo plano; ou melhor: o enredo serve apenas para reforçar toda uma abordagem psicológica do comportamento de Arkadi; o enredo é a expressão das hesitações, dúvidas e impulsos do jovem. É por isso que este livro pode ser considerado maçador por alguns leitores mais impacientes: a ação decorre de forma muito lenta.
Um dos motivos que me leva a considerar Fiodor um génio ímpar é a forma como ele lê e interpreta a alma humana. Ao ler estas páginas, ficamos com a sensação que Fiodor leu e estudou profundamente as obras de Freud. No entanto, ele viveu várias décadas antes da publicação das obras do fundador da psicanálise. E os fenómenos descritos por Freud, como a neurose ou o peso dos traumas de infância na vida das personagens, estão lá, em todas as obras de Fiodor. Arkadi sofreu as consequências de uma infância conturbada, onde não faltou um pai ausente, uma mãe que abandonou o marido e até um amigo violento. Essas marcas fizeram dele o adolescente intempestivo e com um caráter peculiar, cheio de dúvidas e contradições: ele é muitas vezas apático, mesmo medroso e de repente assume atitudes de enorme coragem; a sua relação com Versilov exibe sempre um inacreditável misto de paixão e ódio; o seu estado de espírito oscila entre a depressão e a alegria exaltada, sem meios termos; a sua vida é pautada pelo irracional, pela emoção, mas ele não deixa de ser dotado de uma inteligência brilhante. Quer dizer: Arkadi é um somatório de contradições.
Por outro lado, a impulsividade e emotividade de Arkadi simbolizam também o caráter que o autor atribui ao povo russo, muito emotivo, deixando-se dominar pelo sentimentalismo, em desfavor da inteligência. Por outro lado, ao longo de toda a obra, está bem patente a crítica ao servilismo relativamente ao estrangeiro, desde o "vicio" snobe de falar francês até à influencia inglesa na politica e na economia. Há mesmo um momento hilariante no que respeita a esta crítica, quando Fiodor no conta um episódio anedótico mas cheio de intenção crítica:algures numa estrada havia um enorme penedo a dificultar o trânsito; o governo mandou fazer um estudo e gastou-se dinheiro; houve propostas que chegaram ao ponto de construir uma via férrea, que os ingleses contratariam por alguns milhões de rublos, para tirar dali a pedra. E depois de muitos estudos e de planos milionários, os mujiques (camponeses) encontraram uma solução: abrir um buraco ao lado, empurrar para lá a pedra e cobri-la de terra. Assim se fez. Mas a tentação é sempre esta: lá como cá, ontem como hoje, é preciso gastar dinheiro e entregá-lo a alguém...
Em termos formais, este é o romance mais inovador de Dostoievski; a ação decorre no passado, em que os flashbacks se sobrepõem, sem linearidade mas também sem deixar que o leitor alguma vez perca "o fio à meada".
Como não podia deixar de ser numa obra deste escritor, a critica social está sempre presente; a fidalguia russa, muitas vezes ociosa e sempre pouco produtiva, vai alimentando um estatuto baseado nas aparências burguesas mantido na maior parte dos casos por fortunas apenas aparentes e recorrendo constantemente ao crédito. Na verdade, na sociedade peterburguense do século XIX era normal que estes fidalgos vivessem do crédito, alimentando inúmeros usurários. Por outro lado, vícios públicos como a prostituição e o jogo (do qual o próprio autor foi vítima) estão também por todo o lado. Dostoievski tinha plena consciência de que nunca poderia haver uma verdadeira evolução na vida da Rússia sem uma verdadeira revolução ao nível das relações sociais; e não se tratava apenas do problema da servidão; essas réstias de feudalismo eram apenas os sinais de toda uma sociedade caduca que viria a provocar as graves convulsões do início do século XX. E (também) nesse sentido, a obra de Fiodor foi premonitória.
Mas é no âmbito filosófico que, a meu ver, este romance tem um alcance mais modernista. A geração de Arkadi, a nova geração russa da segunda metade do século XIX: o caráter de Arkadi que expus acima representa a geração russa de finais de século, marcada pela influência política do socialismo e do anarquismo e pela influência filosófica de um certo niilismo. Este assunto, aliás, parece ser transversal a toda a obra de Dostoievski mas é em Os Irmãos Karamazov que explana melhor esta ideia: a de uma geração descrente, assente sobre a desconfiança no futuro e uma certa resignação perante um presente em que as ideias revolucionárias não se afiguram muito concretas. O século XX mostraria, mais tarde, que, afinal, essas ideias revolucionárias podiam concretizar-se...