segunda-feira, 30 de junho de 2014

O Adolescente - Fiodor Dostoievski

Sinopse:
Adolescente (1874-1875) é o menos conhecido dos cinco longos romances produzidos por Dostoiévski entre 1866 e 1880, o seu período de plena maturidade literária. Escrito na primeira pessoa, é a história de um filho ilegítimo. Mais um herói humilhado e ofendido, que cresceu entre estranhos, sem quase ter visto a mãe nos seus primeiros anos de vida, e atormentado por uma existência parental «dupla» - o pai biológico e o marido de sua mãe, que lhe deu o nome - divisão acentuada ainda pela diferença de estrato social entre essas figuras parentais. A história de Arkádi é assim uma espécie de «educação sentimental», extremamente complexa pela multiplicidade de contradições que dividem o jovem. Todos os grandes temas de Dostoiévski estão aqui presentes: a luta entre o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas, a degradação moral inerente à condição humana e a possibilidade de redenção...Dostoiévski evidencia nesta obra os sinais terríveis que são o reflexo dessa dicotomia em todos os estratos da sociedade russa nos meados do século XIX.
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Comentário:
Esta é uma das obras mais complexas de Fiodor Dostoievski. Ao longo do livro, deparamos com uma personalidade muito complexa, a do jovem Arkadi, que Fiodor explora com a precisão de um relojoeiro. Nesta obra, mais do que em qualquer outra do génio russo, a alma e o cérebro do protagonista são esmiuçadas até ao limite, revelando-nos algo de extremamente complexo: uma personalidade perdida entre impulsos e emoções, uma inteligência que se esvai paulatinamente, perdida entre esses impulsos emotivos que traem qualquer racionalidade.
Nunca gostei do título de mestre do romance psicológico que vulgarmente é atribuído a Dostoievski, porque tal atributo é manifestamente redutor. Mas o certo é que se há obra em que essa designação pode encaixar, é esta. O próprio enredo parece ser deixado em segundo plano; ou melhor: o enredo serve apenas para reforçar toda uma abordagem psicológica do comportamento de Arkadi; o enredo é a expressão das hesitações, dúvidas e impulsos do jovem. É por isso que este livro pode ser considerado maçador por alguns leitores mais impacientes: a ação decorre de forma muito lenta.
Um dos motivos que me leva a considerar Fiodor um génio ímpar é a forma como ele lê e interpreta a alma humana. Ao ler estas páginas, ficamos com a sensação que Fiodor leu e estudou profundamente as obras de Freud. No entanto, ele viveu várias décadas antes da publicação das obras do fundador da psicanálise. E os fenómenos descritos por Freud, como a neurose ou o peso dos traumas de infância na vida das personagens, estão lá, em todas as obras de Fiodor. Arkadi sofreu as consequências de uma infância conturbada, onde não faltou um pai ausente, uma mãe que abandonou o marido e até um amigo violento. Essas marcas fizeram dele o adolescente intempestivo e com um caráter peculiar, cheio de dúvidas e contradições: ele é muitas vezas apático, mesmo medroso e de repente assume atitudes de enorme coragem; a sua relação com Versilov exibe sempre um inacreditável misto de paixão e ódio; o seu estado de espírito oscila entre a depressão e a alegria exaltada, sem meios termos; a sua vida é pautada pelo irracional, pela emoção, mas ele não deixa de ser dotado de uma inteligência brilhante. Quer dizer: Arkadi é um somatório de contradições.
Por outro lado, a impulsividade e emotividade de Arkadi simbolizam também o caráter que o autor atribui ao povo russo, muito emotivo, deixando-se dominar pelo sentimentalismo, em desfavor da inteligência. Por outro lado, ao longo de toda a obra, está bem patente a crítica ao servilismo relativamente ao estrangeiro, desde o "vicio" snobe de falar francês até à influencia inglesa na politica e na economia. Há mesmo um momento hilariante no que respeita a esta crítica, quando Fiodor no conta um episódio anedótico mas cheio de intenção crítica:algures numa estrada havia um enorme penedo a dificultar o trânsito; o governo mandou fazer um estudo e gastou-se dinheiro; houve propostas que chegaram ao ponto de construir uma via férrea, que os ingleses contratariam por alguns milhões de rublos, para tirar dali a pedra. E depois de muitos estudos e de planos milionários, os mujiques (camponeses) encontraram uma solução: abrir um buraco ao lado, empurrar para lá a pedra e cobri-la de terra. Assim se fez. Mas a tentação é sempre esta: lá como cá, ontem como hoje, é preciso gastar dinheiro e entregá-lo a alguém...
Em termos formais, este é o romance mais inovador de Dostoievski; a ação decorre no passado, em que os flashbacks se sobrepõem, sem linearidade mas também sem deixar que o leitor alguma vez perca "o fio à meada".
Como não podia deixar de ser numa obra deste escritor, a critica social está sempre presente; a fidalguia russa, muitas vezes ociosa e sempre pouco produtiva, vai alimentando um estatuto baseado nas aparências burguesas mantido na maior parte dos casos por fortunas apenas aparentes e recorrendo constantemente ao crédito. Na verdade, na sociedade peterburguense do século XIX era normal que estes fidalgos vivessem do crédito, alimentando inúmeros usurários. Por outro lado, vícios públicos como a prostituição e o jogo (do qual o próprio autor foi vítima) estão também por todo o lado. Dostoievski tinha plena consciência de que nunca poderia haver uma verdadeira evolução na vida da Rússia sem uma verdadeira revolução ao nível das relações sociais; e não se tratava apenas do problema da servidão; essas réstias de feudalismo eram apenas os sinais de toda uma sociedade caduca que viria a provocar as graves convulsões do início do século XX. E (também) nesse sentido, a obra de Fiodor foi premonitória.
Mas é no âmbito filosófico que, a meu ver, este romance tem um alcance mais modernista. A geração de Arkadi, a nova geração russa da segunda metade do século XIX: o caráter de Arkadi que expus acima representa a geração russa de finais de século, marcada pela influência política do socialismo e do anarquismo e pela influência filosófica de um certo niilismo. Este assunto, aliás, parece ser transversal a toda a obra de Dostoievski mas é em Os Irmãos Karamazov que explana melhor esta ideia: a de uma geração descrente, assente sobre a desconfiança no futuro e uma certa resignação perante um presente em que as ideias revolucionárias não se afiguram muito concretas. O século XX mostraria, mais tarde, que, afinal, essas ideias revolucionárias podiam concretizar-se...

domingo, 22 de junho de 2014

Joana, a Louca - Linda Carlino

Sinopse:
Joana, a Louca é o primeiro romance da autora Linda Carlino. Um romance histórico, onde Carlino ficciona a biografia de uma das personalidades mais intrigantes da história do século XVI europeu. A obra tem início em 1496, quando a jovem filha dos Reis Católicos, com apenas 16 anos, embarca para a Flandres para desposar Filipe, o Belo, e acompanha toda a sua vida até ao final dos seus dias, encarcerada em Tordesilhas pelo próprio filho, Carlos V, imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Um romance com uma nítida descrição da personalidade de Joana, uma mulher de inteligência arguta e sentimentos nobres, de espírito inquebrantável que a fez resistir à traição por parte daqueles que lhe eram mais próximos e que lhe valeu o injusto epíteto de Louca
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Comentário:
Linda Carlino, infelizmente falecida em  2010, foi uma escritora inglesa de ficção histórica que nunca teve grande impacto em Portugal, pelo menos até ao lançamento no nosso país, no ano de 2009, deste livro sobre a rainha Joana. E o sucesso (embora relativo) que este livro teve no nosso mercado, estou convencido que se ficou a dever mais ao nome da Rainha Joana do que ao nome da autora ou à qualidade literária da obra.
Para ir direto ao assunto, estamos perante uma grande história num livro que poderia ter sido uma obra-prima. A riqueza e o encanto da história de Joana justificava um romance bem mais interessante.O que Linda Carlino faz é, apenas, contar a história da vida de Joana. Só por si, esse é já um importante ponto a favor do livro; não é preciso mais nada; basta contar a história e ela tem força suficiente para agarrar o leitor. 
Joana era filha dos Reis Católicos, Fernando e Isabel, réis de Castela aquando da descoberta da América. Vitima da necessidade de estabelecer relações de aliança com a Flandres e a Casa de Áustria, Joana é destinada ao casamento com um dos políticos mais pérfidos de toda a história da Europa Ocidental: o irascível Filipe, o Belo. Um casamento condenado ao fracasso e à desgraça de Joana, que mesmo assim viria a ser uma mulher que marcou a história da Europa, ao dar origem ao império dos Habsburgos.
Mesmo assim, parece que a autora desperdiçou várias oportunidades para alcançar um sucesso bem mais retumbante:
- A história tem pouca "estória"; falta aqui o sal da imaginação e o encanto da criatividade; trata-se de muita história e pouco romance. Obviamente, isto tem um lado positivo: o caráter pedagógico do livro. Na verdade, este romance pode muito bem funcionar como um manual de história dos tempos dos Reis Católicos e do império de Carlos V. Mas não é isso que se espera de um romance histórico.
- Mesmo ao nível da história propriamente dita, Linda Carlino podia e devia ter explorado muito melhor um episódio crucial em toda esta história e que no livro a autora teve a infeliz ideia de contornar: a morte de Filipe, o Belo foi, ao que tudo indica pela historiografia, provocada; ele terá sido envenenado. Perante a incerteza deste facto e a incerteza do autor do crime caso tenha existido, a autora prefere contorna-lo. Perdeu, a meu ver, uma oportunidade de melhorar o enredo, tornando-o bem mais interessante.
- Como acontece em muitos romances históricos, também neste livro há um exagero no que respeita a descrições do ambiente da época. É caso para dizer que não era necessário ser tão verossímil
Perante tudo isto só me resta concluir que o livro tem um grande valor pedagógico por ser muito fiel à verdade histórica. Para quem não conhece o drama de Joana a Louca, esta pode ser uma excelente leitura; mas para quem já conhece o assunto, esta pode tornar-se uma leitura algo fastidiosa.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

O Ladrão Honesto e Outras Histórias - Fiodor Dostoievski


Sinopse:
Este décimo terceiro volume da colecção «Obras de Fiódor Dostoiévski» é uma colectânea de contos e novelas que reúne quatro obras escritas ou publicadas entre os anos de 1848 e 1849. São elas "O Ladrão Honesto", "Uma Festa com Árvore de Natal e Um Casamento", "O Pequeno Herói" e "Nétotchka Nezvánova". Os dois últimos títulos ficarão para sempre associados às circunstâncias conturbadas que envolveram a sua concepção — "Nétotchka Nezvánova", originalmente projectado por Dostoiévski para ser um romance, foi abruptamente interrompido pela prisão do autor, que só anos mais tarde o viria a concluir, com grandes alterações, e optando por transformá-lo num conto; "O Pequeno Herói" foi escrito durante o encarceramento na cela solitária da Fortaleza de Pedro e Paulo. Não obstante as vicissitudes biográficas, o génio de Dostoiévski nunca deixou de se manifestar em todas as páginas da sua obra, e é com deleite que o reconhecemos, uma vez mais, nesta colectânea que espelha com nitidez o conhecimento profundo que o escritor tem da alma humana e a sensibilidade ímpar com que retrata as suas variegadas expressões e idiossincrasias
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Comentário:
Em narrativas curtas, este livro apresenta-nos uma valiosa amostra de todas as características que fizeram de Fiodor Dostoievski um escritor único: o seu humanismo, a sua sensibilidade em relação às injustiças sociais, a capacidade de crítica social objetiva e mordaz e, acima de tudo, aquela magnífica capacidade de penetrar nas profundezas da mente humana, através de personagens reveladoras dos dilemas e conflitos interiores que caraterizam o ser humano.. É isto que faz dele um dos pioneiros e mestres do chamado romance psicológico.
O conto "O Pequeno Herói", escrito na prisão, é um notável exercício literário em que o autor se coloca na pele de uma criança, interpretando e expondo com genialidade todos os dilemas da criança rejeitada e incompreendida, vítima de uma sociedade fútil e egocêntrica. Uma criança esmagada por essa sociedade feita de rivalidades e aparências, vai descobrindo o feminino como refúgio e encanto da alma. Mas também depressa esses encantos esbarram nos vícios e na própria degradação da condição feminina, também ela esmagada pelas constrições sociais.
O conto de maior dimensão, já próximo do romance, Netotchka Nezvánova, é uma extraordinária incursão pela mais profunda miséria da sociedade russa do século XIX, dominada pela frivolidade e pelo vício. A protagonista, Netotchka, é vítima das tremendas desigualdades sociais da época, marcada ainda pela servidão feudal dos tempos do czar. A miséria revoltante e o ambiente de violência doméstica em que vive, num meio onde predomina o álcool e a degradação, constituem o quadro de vida de Netotchka. A miséria em que vive vai criando na criança uma estranha sensação de culpa, que mais não é que o reflexo do esmagamento da personalidade. No entanto, não são apenas as condições sócio-económicas que preenchem este quadro de miséria e infelicidade: quando Netotchka  se vê num meio social elevado, depois de adoptada por um príncipe, nem por isso ela encontra a felicidade; a miséria material é substituída por outros vícios e injustiças. O estigma da sua condição social permanecerá e a sua personalidade permanecerá esmagada.
A prosa de Dostoievski, no seu realismo e humanidade, contradiz todo o preconceito de que este génio é vítima em alguns tipos de leitores; este livro contradiz todos aqueles que continuam a afirmar que Dostoievski é chato e difícil. Difícil é apenas sentir a miséria e suportar a infelicidade dos seus personagens, uma vez que a arte do génio leva o leitor a sofrer como se revivesse a história. A escrita, essa, é objetiva e fluida. Aí reside um dos aspetos mais geniais deste grande escritor: a facilidade com que as misérias que descreve entram na mente de quem lê, de forma fácil e clara. Talvez este seja o livro ideal para quem pretende iniciar-se na leitura de Dostoievski ou então para quem pretende reformular a sua opinião.

domingo, 15 de junho de 2014

Os Segredos de Jacinta - Cristina Torrão


Sinopse:
Os anos entre 1138 e 1147 foram decisivos para a formação do reino de Portugal, acontecimentos como a Batalha de Ourique, o casamento de D. Afonso Henriques e a Conquista de Lisboa influenciaram igualmente a vida dos mais humildes, que foram afinal os primeiros portugueses da História.
Jacinta, a personagem principal deste romance, é uma dessas pessoas.
Seguindo o percurso desta jovem, o leitor é introduzido na forma de vida do século XII, em que virtude e pecado andavam lado a lado, sendo ténue a fronteira entre o aceitamento e a maldição. Quem não se conformava com as normas caía facilmente na marginalidade.
«E porque haveria de consentir no nascimento de uma criança que seria igualmente alvo da crueldade daquela gente?
Jacinta cerrou as mãos em punho, por baixo da mesa, ao surgir do pensamento que a assustava. Sabia que havia guisas de evitar que uma criança nascesse. E que a bruxa do Serro do Cão era sábia nesses procedimentos…»
Violação, aborto, adultério, bruxaria e prostituição são algumas das situações em que Jacinta se vê enredada, enquanto a História de um condado feito reino segue o seu curso. 

Comentário:
Tal como nas suas obras anteriores, também neste livro, Cristina Torrão leva-nos pela mão a um passeio pelo Portugal Medieval com todos os seus encantos e terrores. Mais do que a conturbada situação política e militar da época, está em cena o enquadramento mental, social e moral desse período, salpicado por descrições objetivas e agradáveis dos usos e costumes da época.
Não se pense, no entanto, que este é um livro apenas sobre o século XII; o que está em causa é muito mais que a formação de Portugal; é a formação da mentalidade portuguesa, com todos os vícios e qualidades com que hoje nos identificamos: a bondade natural do nosso povo, uma certa ingenuidade que tanto conduz à solidariedade como à fácil assunção de comportamentos e atitudes ditadas pela pressão social dos grupos privilegiados; em suma, é a construção do nosso quadro mental que está em jogo neste livro.
Os usos e costumes da época são precisamente apresentados como testemunho deste quadro mental. Por exemplo, as festas populares são momentos de profunda religiosidade, de humilde submissão aos ditames da santa madre igreja, ao mesmo tempo que são ocasião para as mais profanas diversões, onde tudo funciona como uma catarse social face ao rígido quadro de valores imposto pela moral cristã que mais não é que uma forma de submissão do povo aos ditames do poder. A festa religiosa tal como nos é descrita neste livro assume portanto um caráter ambivalente onde a religiosidade tem o seu contraponto na extroversão de atitudes mentais reprimidas.
Ao contrário do que acontece nos livros anteriores da autora, o acento tónico é colocado no povo, enquadrado numa sociedade de ordens fortemente estratificada. No topo da pirâmide, o alto clero, que rodeia o poder político e o condiciona. Ao lado desta elite eclesiástica, os fidalgos, a nobreza terratenente que nasceu da elite guerreira constituída pelos líderes dos exércitos cristãos, compensados, também eles, pelo poder político pela doação de terras. Por outro lado, o povo é constituído por uma maioria de pobres vivendo do trabalho agrícola nas terras dos “filhos de algo”, os nobres, e por uma minoria de pequenos proprietários como Ataúlfo, o pai de Jacinta.
A rigidez desta sociedade, bem como o conservadorismo extremo que a sua manutenção implicava, conduz a maioria da população a um estado de miséria social e, por outro lado, à manutenção de um quadro mental fundado sobre a ignorância e o preconceito. Portanto, a vida conturbada de Jacinta, o esmagamento da sua personalidade enquanto mulher e ser humano tem muito menos a ver com as precárias condições de vida do que com esse quadro mental de obscurantismo e preconceito, funcionando como verdadeiros alicerces de um quadro social que se pretende cimentar.
Um dos temas fundamentais do livro é constituído pela abordagem da condição feminina, num mundo em que o masculino é preponderante a vários níveis. Mas o papel da mulher na sociedade medieval não é apenas secundário; ela é frequentemente associada às forças demoníacas, por via do pecado de Eva que constitui um estigma para toda a condição feminina. O próprio aborto provocado é de certa forma justificado porque o pecado mortal estava já cometido e o inferno era o destino incontornável. Dessa forma o aborto apenas confirmava o triunfo de Lúcifer. Esta associação de ideias entre a mulher e o diabo justifica também uma outra prática cujo papel é fulcral no mundo medieval – a bruxaria. O papel da bruxa é ambivalente: por um lado ela é o protótipo da mulher pecadora, condenada e amaldiçoada. Por outro ela é a salvadora; aquela que tem poder para expulsar o próprio demónio. 
No entanto, há estratégias de superação deste bloqueio mental; e Jacinta procurara-as desesperadamente. Segundo a bruxa, as únicas mulheres que conseguem escapar a esta pressão social eram as monjas e as próprias bruxas, precisamente aquelas que optavam de forma voluntária pela solidão. A solidão voluntária é uma via de libertação.
Na verdade, o tema da bruxaria é um dos mais complexos na historiografia medieval – se, por um lado, é reconhecido à bruxa o poder de afastar o próprio diabo, por outro, elas próprias são associadas ao demónio, sendo perseguidas e condenadas por isso.
A autoexclusão social é, portanto, uma forma de escapar a todas aquelas constrições sociais. O mosteiro surge aqui como um espaço de liberdade mas também de tolerância; só aí Jacinta encontra a paz interior porque só aí lhe é permitida uma identidade, uma autonomia enquanto ser humano livre e pensante. A própria oração é encarada por Jacinta como um momento de escape e de reencontro consigo própria; como se o verdadeiro Deus existisse dentro dela, no seu espírito e não como um ente superior e castigador.
É genial a forma como a autora estabelece um paralelismo entre Joana, a irmã monja de Jacinta e a soldadeira moura Zaida: duas personagens só aparentemente opostas, uma freira e uma prostituta, duas mulheres livres que conseguiram levar a paz ao coração de Jacinta.
Mas o preço da independência pessoal é sempre elevado: Joana, Zaida e a bruxa conseguiram essa rara autonomia, essa paz interior, mas tiveram de prescindir de algo: Joana prescindira dos sentimentos; a bruxa da sua identidade social e Zaida prescindira do próprio corpo. Para ser livre é preciso abdicar de algo. Na verdade, se o mundo humano, com as suas contradições e injustiças é uma ameaça permanente à paz de espírito, o amor não o é menos, apresentando-se como uma fonte de tormentos e de conflitos interiores. Mesmo que disfarçado de idílio e sonho, o Amor é uma vigorosa e trágica fonte de sofrimento e de dependência.
O talento literário de Cristina Torrão radica no seu estilo objetivo, cinematográfico, como já o adjetivei a propósito de obras anteriores, mas não é só isso. Há nas suas obras um humanismo notável, uma sensibilidade apurada mas também uma dimensão de análise psicológica profunda, uma capacidade de entrar na mente das personagens, a fazer lembrar grandes mestres neste domínio como Dostoievski ou James Joyce. 

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Campeonato do Mundo de Escritores

Na próxima segunda feira Portugal defronta a Alemanha no Campeonato do mundo de futebol.
Como este é um blogue sobre livros, imaginei o que seria um Campeonato do Mundo com escritores em vez de craques da bola.
Se assim fosse, na segunda feira entrariam em campo estes senhores:
PORTUGAL
Luís de Camões
Camilo Castelo Branco
Mário de Carvalho
José Luís Peixoto
Valter Hugo Mãe
Eça de Queirós
Fernando Pessoa
José Cardoso Pires
José Saramago
António Lobo Antunes
Manuel Alegre
 ALEMANHA
      Bertolt Brecht
Günter Grass
Hermann Hesse
Thomas Mann
Karl Marx
Friedrich Nietzsche
Erich Maria Remarque
Bernhard Schlink
Patrick Süskind
Eckhart Tolle
Leopold von Ranke

Com estas equipas não tenho grandes dúvidas de que ganhávamos o jogo com goleada; a Alemanha, com estes jogadores apenas teriam uma estratégia com alguma possibilidade e sucesso: adormecer os nossos jogadores, principalmente o guarda redes que, como se sabe, só tem um olho.


quarta-feira, 11 de junho de 2014

Uma outra voz - Gabriela Ruivo Trindade


Sinopse:
José Mariano Serrão foi um republicano convicto que contribuiu decisivamente para a elevação de Estremoz a cidade e o seu posterior desenvolvimento. Solteiro, generoso e empreendedor como poucos, abriu lojas, cafés e uma oficina, trouxe a electricidade às ruas sombrias e criou um rancho de sobrinhos a quem deu um lar e um futuro. É em torno deste homem determinado, mas também secreto e contido, que giram as cinco vozes que nos guiam ao longo destas páginas, numa viagem que é a um tempo pessoal e colectiva, porque não raro as estórias dos narradores se cruzam com momentos-chave da história portuguesa. Assim conheceremos um adolescente que espreitava mulheres nuas e ria nos momentos menos oportunos; a noiva cujos olhos azuis guardavam um terrível segredo; um jovem apaixonado pela melhor amiga que vê a vida subitamente atravessada por uma tragédia; a mãe que experimentou o escândalo e chora a partida do filho para a guerra; e ainda a prostituta que escondia documentos comprometedores na sua alcova e recusou casar-se com o homem que a amava. Por fim, quando estas vozes se calam, é tempo de ouvirmos o protagonista através de um diário escrito noutras latitudes e ressuscitado das cinzas muitos anos mais tarde.
Baseado em factos reais, Uma Outra Voz é uma ficção que nos oferece uma multiplicidade de olhares sobre a mesma paisagem, urdindo a história de uma família ao longo de um século através das revelações de cada um dos seus membros, numa interessante teia de complementaridade.
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Comentário:
O simples facto de a narrativa ser feita em cinco vozes dá ao livro um aspecto original que muito terá contribuído para o prémio Leya com que foi agraciado. Na verdade, trata-se de um estilo algo inovador que nos permite ter uma visão global de uma personalidade, vista por cinco narradores bem distintos.
Por outro lado, o livro associa com algum sucesso a ficção à biografia. Se acrescentarmos a isto uma escrita fluída, clara e um autêntico passeio pelo século XX português, encontramos talvez a explicação completa para a seleção do júri deste prestigiado prémio.
Mesmo assim, eu, leitor comum e desinteressado, não deixo de ficar algo surpreendido. O livro tem qualidade mas a verdade é que não consigo encontrar nele nada que verdadeiramente traga inovação. Por outro lado, a narrativa acaba por se perder em bruscos saltos temporais que dão ao livro um aspeto de "manta de retalhos" sendo que alguns deles parecem claramente desenquadrados do tema central, a vida do benemérito republicano João José Mariano Serrão. 
Talvez a expetativa fosse demasiado elevada quando parti para a leitura, no entanto fica a sensação de que falta aqui algo que distinga realmente o livro das centenas que todos os meses se publicam em Portugal.
Esperava mais e melhor, é certo. No entanto, como referi, a obra tem qualidade. 
O aspecto mais positivo centra-se na forma como a vida do protagonista testemunha momentos chave da nossa história, como o movimento republicano, com as suas contradições, dificuldades e conflitos, bem como a ascensão do Estado Novo, que terá precipitado a fuga para África do protagonista. 
Passando pelos últimos tempos da Monarquia, pela Primeira Republica, pelo Estado Novo e mesmo pelos primeiros anos da democracia, fica bem patente a força do conservadorismo luso, não só na evolução política como, acima de tudo, nos costumes e na mentalidade, o que acaba por se plasmar num quadro social dominado pelo preconceito, pela intriga interesseira e por uma certa perpetuação do obscurantismo.
Em suma, estamos perante um grande prémio para uma pequena desilusão.

domingo, 8 de junho de 2014

A Guarda Branca - Mikhaíl Bulgákov


Sinopse:
Primeiro romance de Mikhaíl Bulgákov, largamente inspirado nas suas experiências pessoais, A Guarda Branca apresenta-nos a cidade de Kíev, em 1918, através dos olhos dos irmãos Turbin. Mergulhados no caos da guerra civil, Aleksei, Elena e Nikolka constituem um retrato brilhante das crises existenciais provocadas pela guerra e pela perda de alicerces sociais, morais e políticos.
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Comentário:
Se é difícil compreender o que actualmente se passa na Ucrânia, é incrível como um livro escrito em 1926 nos pode ajudar  a  contornar essa dificuldade.
A povo ucraniano foi um dos mais martirizados pelo incrível processo de mudanças políticas nos primeiros 25 anos do século XX: na sequência do domingo sangrento, em 1905, em que tropas do czar assassinaram milhares de camponeses famintos, o processo revolucionário foi despoletado e viria a culminar com a revolução bolchevique de 1917. Entretanto, a Rússia abandonara a primeira guerra mundial, deixando vários territórios nas mãos da Alemanha, pelo vergonhoso tratado de Brest-Litovski. Dessa forma, os ucranianos ficaram abandonados a uma multiplicidade de conflitos: os Alemães, derrotados na guerra, rapidamente abandonaram os ucranianos; os Russos encontravam-se mergulhados no conflito entre os socialistas moderados do Exército Branco e os Bolcheviques do Exército Vermelho; na Ucrânia, uns sonhavam com o regresso à paz czarista e autocrática, outros alinhavam com a revolução bolchevique e outros encaravam o exército branco de Kerenski como o compromisso de salvação. Outros ainda apoiavam um cacique local, o sanguinário Petliura, que se afirmava nacionalista mas não hesitando em massacrar os seus opositores ucranianos.
É entre esta terrível encruzilhada de interesses que encontramos os irmãos Turbin, generosos e ingénuos, lutando como podem pelo poder branco, aquele que consideram mais justo.
O irmão mais velho, Aleksei, é o alter-ego do autor, médico e combatente algo ingénuo mas um verdadeiro resistente. Nikolka, o mais novo, é um generoso combatente. Por todo o lado,  no entanto, reina a violência e o horror da guerra; uma guerra terrível, entre compatriotas, abandonados por russos e alemães, entregues aos mais violentos oportunistas.
O mais terrível deste livro é que nele encontramos uma assustadora actualidade; entre ideologias e interesses, é o povo quem se sacrifica sempre.
No estilo profundamente poético de Bulgákov encontramos, no entanto, a sua tendência para a dramaturgia; em muitos momentos o leitor dá conta de estar a ler uma verdadeira peça de teatro. Assim, é notável a junção de uma escrita poética a uma magnifica objectividade das descrições e clareza dos diálogos.
Ou seja, estamos perante um bom exemplar da melhor literatura russa, se bem que muito longe daqueles que eram os ídolos de Bulgakov, então em início de carreira, principalmente na influência notável da análise psicológica e crítica social que caracterizaram esse grande mestre que foi Fiodor Dostoievski.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Os livros que devoraram o meu pai, na opinião da Catarina Macedo


Hoje volto a dar a palavra aos meus caros jovens. A minha aluna Catarina Macedo, de 14 anos, leu Afonso Cruz e gostou.
Aqui fica, pois, a sua opinião sobre esse interessante livrinho que foi o primeiro êxito deste novo nome grande da literatura portuguesa:
A obra “Os livros que devoraram o meu pai” foi um dos melhores livros que li.
Nesta história muita fantasia é envolvida, o que dá um toque interessante. Este livro, escrito por Afonso Cruz, fala sobre Vivaldo Bonfim que passava o seu tempo a ler. Um dia ficou preso no livro “A Ilha do Dr. Moreau” fazendo com que o seu filho, seguindo os seus passos de leitura, o procurasse por todas as obras lidas por Bonfim. Este vai interagir com autores e personagens, entrando dentro das histórias, à procura do seu pai.
A única crítica que podia fazer a este livro é o facto de, por vezes, durante a leitura, não se percebe se na realidade, o filho de Vivaldo está dentro ou fora do livro.
É uma história com muita fantasia e com algumas partes de humor que eu aconselho a toda a gente. É verdadeiramente uma aventura no mundo literário que desperta interesse.
Catarina Macedo

terça-feira, 3 de junho de 2014

O Fundamentalista Relutante - Mohsin Hamid





Sinopse:
Numa mesa de café em Lahore, um paquistanês com barba conversa com um desconhecido e apreensivo americano. Enquanto anoitece, o paquistanês começa a contar a história que conduziu a este encontro fatídico…Changez está a viver o sonho americano. À frente da sua turma em Princeton, é contratado por uma firma de "avaliação" de elite, a Underwood Samson. Ele prospera na energia de Nova Iorque e a sua paixão pela bonita e elegante Erica é uma promessa de entrada na alta sociedade de Manhattan. Mas após o 11 de Setembro, a situação de Changez na sua cidade adotiva altera-se subitamente e a sua relação com Erica é eclipsada pelo despertar dos fantasmas do passado desta. A própria identidade de Changez sofre também uma enorme mudança, revelando fidelidades mais fundamentais do que o dinheiro, o poder e talvez até mesmo o amor.
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Comentário:
O protagonista dá pelo nome de Changez e não é por acaso: esse é um derivativo do nome Gengis, do famoso imperador mongol Gengis Khan e, ao mesmo tempo, imperativo do verbo "changer". Na verdade, ele é o protagonista de um mundo em mudança; uma mudança brutal provocada pelos atentados de 11 de Setembro. Mas, ao contrário que que muito se escreveu, este não é um livro sobre os atentados de Nova Iorque. É, acima de tudo, uma análise muito inteligente do impacto e das consequências desses atentados nas relações dos EUA com o mundo árabe (e não só). Mais do que uma reflexão política estamos perante uma crónica de um mundo em profunda e dramática mudança.
A narrativa baseia-se num diálogo entre Changez e um homem de negócios americano, na cidade de Lahore, no Paquistão; o jovem paquistanês vai narrando a sua passada aventura nas terras do tio Sam. Tudo começara com o fascínio pelo ocidente; com a sua brilhante ascensão numa empresa de sucesso, em que Changez se encarregava de avaliar empresas. E muitas vezes essas avaliações determinavam falências e despedimentos, ou seja, todas as consequências do fascinante mas (afinal) medonho capitalismo.
Tudo se precipita com o 11 de Setembro; a partir daí o sonho americano dá lugar à loucura americana; às perseguições insanas a todos os que, como Changez, fizessem lembrar essas figuras demoníacas vindas do oriente. Para o americano comum, o inimigo já não é apenas Bin Laden ou a Al-Qaeda; é qualquer ser humano cuja aparência se assemelhasse a um árabe. Nessa altura, o fascínio que Changez sentia pela América é substituído por um avassalador sentimento de traição; o fascínio pela capital do capitalismo é, agora, é encarado como um ato que atraiçoou as suas próprias raízes e a sua identidade: traição!
É precisamente essa loucura americana que conduz Changez àquilo que a América decidiu chamar fundamentalismo e que aqui surge como uma simples, natural e lógica defesa contra a ira irracional da América.
Tudo isto faz deste pequeno livro uma obra genial. A inteligência com que a mensagem passa é notável. Até a estória romântica de Changez com Erica se desenrola num notável plano simbólico; Erica está doente como a América; ela não será capaz de amar Changez porque está ferida de morte na sua própria alma.
Por outro lado, é notável a forma como o autor constrói um personagem que só aparentemente é secundário: o interlocutor quase silencioso de Changez. O americano nunca assume no livro o discurso direto; ele ouve e tem medo. Tal como o americano comum, tudo o que é paquistanês é assustador. No entanto, age com indiferença. Com a mesma indiferença com que os EUA encararam a guerra entre a Índia e o Paquistão em que este, teoricamente aliado, é agredido brutalmente pelo exército indiano perante a passividade hipócrita dos americanos. Da mesma forma, o interlocutor de Changez, nunca nomeado, sente medo mas é totalmente passivo; assusta-o um empregado de café demasiado sério mas não o assusta as descrições brutais da miséria paquistanesa. 
Um pequeno pormenor do livro pode servir para avaliar a inteligência desta pequena e genial obra: após o 11 de Setembro, Changez é vítima daquele controlo insano nos aeroportos. E Changez sente-se culpado, sem que nada o justifique! Um pormenor que constitui um poderoso motivo de reflexão.