quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Eva Luna - Isabel Allende


Comentário:
Quem decide ler um romance de Isabel Allende não pode esperar grandes surpresas: terá a certeza que vai ler um livro excelente. E essa excelência, também patente neste livro reside essencialmente naquele estilo que viaja sempre entre o real e o fantástico, estilo esse a que se convencionou chamar “realismo mágico”. A autora consegue manter a narrativa numa fronteira entre essas duas dimensões, levando o leitor a aceitar como verossímeis algumas situações que, vistas à distância, só caberiam numa obra de literatura fantástica.
Assim é Eva Luna, a história encantadora de uma menina e moça que vai construindo uma história de vida fascinante. Recorrendo, tal como é típico da literatura sul-americana, a numerosos personagens, a autora apresenta-nos um quadro social fascinante (comum a outras obras suas) entre revoluções e ditaduras. Do lado de Eva Luna estão os deserdados, os marginalizados, que acabam envolvidos na teia dos terroristas que, neste caso estão longe da definição atual do termo. Na verdade, Huberto Naranjo, por quem Eva se apaixona na primeira fase do livro, é a imagem do guerrilheiro que arrisca a vida com a ingenuidade de quem defende a causa coletiva dos injustiçados. 
É nesse meio, por vezes miserável e violento, que encontramos Eva Luna construindo a sua felicidade individual. Ela era a rapariga que contava histórias e com elas libertava as pessoas da desgraça em que viviam; é na procura dessa fantasia, desse caminho pessoal que os personagens podem encontrar a felicidade, como Mimi, o travesti que sofreu todas as agruras imagináveis, vítima dos preconceitos mas que não resiste até ser feliz. Também fundamental no enredo é a presença de Rolf Carlé, um europeu que sofrera as injustiças da ditadura que presumimos nazi e que emigra para a América do Sul onde se torna guerrilheiro; ele é a imagem da internacionalização da revolução, do carácter universal da luta dos povos pela justiça social.
Escrito em 1987, este livro é apenas o quarto da longa bibliografia da autora; no entanto está já aqui presentes todas as qualidades da escrita de Allende, bem como essa predileção pela defesa dos injustiçados, assim como uma propensão para a abordagem da história recente do Chile, cheia de conflitos políticos e ditaduras sanguinárias, das quais se destaca o governo fascista de Pinochet, responsável por milhares de crimes.
O único aspeto que não me agradou totalmente neste livro foi o facto de o enredo não criar no leitor aquela expetativa quanto ao final que muitas vezes encoraja a leitura. Seja como for este é, sem dúvida, um livro que merece ser lido e saboreado.

Sinopse (in wook.pt)
Em Eva Luna, Isabel Allende recupera o seu país através da memória e da imaginação. Eva, a cativante protagonista da narrativa, constitui um nostálgico alter ego da autora, pois também ela acredita que radica nas histórias o segredo da vida e do mundo. Filha da selva, do analfabetismo e da pobreza, Eva luta tenazmente por conquistar o seu espaço no mundo, sem nunca perder o encanto feminino.
Nesta obra, marcada por um profundo humanismo, Isabel Allende consegue fundir o destino individual com o coletivo através de uma fulgurante prosa, confirmando-se como uma das maiores escritoras dos nossos tempos.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O Mel e as Vespas - Fernando Évora


Comentário:
Tal como escrevi na altura, quando li as obras anteriores de Fernando Évora, fiquei com a impressão de “saber a pouco”. Naturalmente, gostei muito dos livros mas fiquei com a sensação que os respetivos enredos podiam ter sido mais desenvolvidos. Neste livro encontrei aquilo que procurava em Fernando Évora: um enredo mais intrincado, com personagens muito diversificadas e estórias de vida bem significativas. 
Este enredo, centrado em duas famílias, deixa clara uma certa influência da literatura sul-americana, especialmente se associarmos esse facto ao tom de realismo mágico que se pode saborear ao longo de todo o livro. Na verdade é este um dos maiores méritos de Évora: o de criar situações bem-humoradas de personagens com comportamentos “estranhos” mas que não deixam de nos encantar pelo exotismo mas também por um estranho realismo fundado sobre a realidade das nossas populações rurais.
Na verdade, este livro é também uma preciosa e bem-disposta história da ruralidade portuguesa no século XX. Estão ali as pessoas ingénuas e de coração naturalmente bom, facilmente enganadas pelas “vespas”, pelos senhores de Lisboa, daqueles que trazem carros sofisticados e notícias negras. Um dia um dos personagens, Adriano, nome de um dos maiores imperadores romanos, apaixonou-se por apicultura e descobriu que o mel podia ser a fortuna da sua terra; que o mel poderia tirar todo aquele povo da miséria. Mas as vespas vieram dizer que havia a campanha do trigo. Era preciso destruir as colmeias e plantar trigo, mesmo que este nada desse naquelas terras. E Adriano haveria de morrer miserável, com uma vespa enfiada no nariz, numa das páginas mais belas deste livro.
Na parte final do livro, Évora deixa-nos um certo tom de pessimismo em relação ao presente e futuro da nossa ruralidade: o “Portugal profundo” está entregue aos interesses de alguns senhores do dinheiro que nada se preocuparão com as almas das gentes, com as vidas dos que fizeram este país, à custa de sangue, suor e muitas lágrimas.
Tal como nos seus livros anteriores, Évora revela um talento muito especial para analisar a alma humana, especialmente nos estratos sociais mais desprotegidos e vítimas dessa indescritível injustiça que marcou três quartos do século XX português. Estas são almas que sofrem, que são injustiçadas, mas não se pense que o autor rejeita o lado menos colorido deste povo; para lá de uma admiração nítida pela cultura popular em todas as suas vertentes, aqui estão também as superstições, as invejas, as maldades que não deixam de existir em qualquer comunidade humana.
Mais uma vez, o estilo de Fernando Évora é um dos fatores mais positivos da sua obra: um estilo límpido, poético sem perder uma tremenda objetividade, são elementos que convidam o leitor a sorrir quanto percorre as páginas do romance.

Sinopse (in www.wook.pt)
Cancino, vila perdida na serra algarvia, é o cenário deste livro. Porém, este não é um livro sobre uma vila perdida, é antes uma espécie de revisitação da História de Portugal mais recente, num olhar profundamente humanista, que navega entre a miséria e o humor, o destino e o sonho, e também o acaso. Personagens inesquecíveis de carne e osso, narradas com a ironia queirosiana e a originalidade que encantam, que inebriam, e que, no fundo, caracterizam Fernando Évora.