segunda-feira, 4 de setembro de 2006

O Lobo das Estepes - Hermann Hess

Profundamente auto-biográfica, esta obra revela todo o pensamento tortuosamente poético de Hesse. Numa síntese perfeita do seu misticismo oriental e da sua dimensão poética, Hesse constrói uma narrativa angustiada mas sentida, poética mas real, complexa mas terrivelmente bela. Harry Haller é o rosto da tristeza, o Lobo das Estepes, melancólico, perdido na vida, na busca permanente de um sentido que o faça compreender a existência. Sem destino definido, sem explicações a dar a si mesmo para a impossibilidade de compreender o mundo, Harry é um ser errante, dilacerado pela dúvida, pela desesperada necessidade de compreensão da alma e da busca da sua libertação. Recusa o mundo sem forças nem coragem para dele se demarcar. Anti-burguês, tortura-se porque não consegue demarcar-se de uma vivência burguesa, como que encarcerado no ambiente que o rodeia. No meio da tortura da vida, vai descobrindo que a dualidade do seu ser: o lobo que de vez em quando se torna burguês ou o ser emotivo que por vezes assume a racionalidade; o lobo ou o homem. Mas a sua angústia não se resolve com a constatação destes antagonismos; a pouco e pouco, no entanto, vai descobrindo que o ser humano não é duo mas múltiplo: ele não é a soma de dois “eus”, duas forças mais ou menos antagónicas que o ser humano por vezes parece ser. A sua personalidade é um campo de batalha entre muitas forças que por vezes se complementam outras se digladiam. Mas na maior parte das vezes estas faces do caleidoscópio revelam-se incompatíveis, causando angústia e desespero. Só enfrentando esta multiplicidade e assumindo estas múltiplas dimensões, o ser humano pode encontrar a felicidade. Tornar-se-á louco aos olhos do mundo; no entanto, feliz! A necessidade de auto-conhecimento, de compreensão profunda do ser e do sentido da vida avassala Harry até ao dia em que, no limiar da salutar e redentora loucura, descobre a verdadeira raiz da felicidade: o humor. Compreende o que consegues compreender e ri-te de tudo o resto, poderia ser uma espécie de lição a retirar deste livro. Daí a referência recorrente a Mozart: o exemplo da loucura saudável, do génio que ri daquilo que não compreende. Esta descoberta faz com que o final da obra seja surpreendente. A angústia, o medo, o desespero dão lugar ao hilariante mundo da loucura, das mil e uma faces da alma.

domingo, 3 de setembro de 2006

A Noite do Oráculo - Paul Auster

“A Noite do Oráculo” é, antes de mais, um extraordinário e genial exercício literário de Auster. Ele exprime com eloquência todo o génio deste escritor, um dos mais brilhantes da actualidade. Trata-se de um romance complexo mas de leitura muito agradável sobre a maior quimera da existência humana: a descoberta do sentido da vida. Histórias dentro de histórias, “A Noite do Oráculo” é uma obra literária que se insere no enredo de uma outra, sobre a vida de Nick, escritor, que por sua vez é uma criação Sydney Orr, o protagonista de Auster. Em primeira instância, trata-se de uma reflexão sobre o poder da literatura e sobre a interacção entre o escritor e o livro. As histórias, à medida que vão sendo criadas interpenetram-se e influenciam-se, confundindo o real e misturando-o com a ficção que verte da imaginação do escritor. As personagens vão sendo assim condicionadas pelos três planos em que a acção se desenrola, como se fossem três mundos diferentes mas que dependem uns dos outros. Assim, o tempo e lógica causa-consequência tornam-se relativos, perante a multiplicidade de tempos e de dimensões que Auster nos oferece. Na vida de Nick os acontecimentos inesperados sucedem-se, deixando sempre uma misteriosa ligação com o enredo do livro que vai escrevendo. Na sua mente a ficção parece determinar a realidade e não apenas o inverso, misturando assim de forma dramática a verdade e a imaginação. Por outro lado, esses acontecimentos surgem por acaso. Na obra de Auster parece ser determinante esta preocupação com o acaso. Como no filme “Magnólia” o autor parece querer dizer que os acasos, os acontecimentos aparentemente fortuitos são aqueles que, de facto, determinam o sentido da nossa vida. Mas trata-se também de uma obra sobre os sentimentos humanos: perdido no mundo imaginado do seu livro, Nick depara com o maior drama da sua vida: o amor duplo da sua esposa: por ele mas também pelo seu melhor amigo. O maior desafio de Nick é agora o perdão. A questão surge, dramática e real: até onde pode um ser humano perdoar?

sábado, 2 de setembro de 2006

O Amor nos Tempos de Cólera - Gabriel Garcia Marquez

Logo nas primeiras páginas revela-se a genial fantasia da literatura sul-americana: o doutor Juvenal Urbino descobriu que os sintomas do amor são idênticos aos da cólera asiática. Trata-se de uma obra bem ao jeito de Marquez: o humor e a leveza da escrita misturam-se de uma forma genial com um curioso desdém pela própria América Latina; as guerras civis que se sucedem, a miséria crónica das populações desprezadas por políticos corruptos, a destruição das florestas, vítimas de interesses económicos capitalistas. Por todo o lado reina a corrupção, os interesses egoístas, o desprezo pelos outros e a inveja. E, no meio de tudo isto, uma belíssima história de amor. Durante 51 anos, 9 meses e 4 dias, Florentino Ariza amou Fermina Danza à distância, sem qualquer contacto entre os dois. Um amor que só declarou no dia em que Femina enviuvou, aos 72 anos. Na sua juventude, Florentino comia pétalas de rosa e bebia frascos de água de colónia para se sentir perto de Fermina. Tocava violino para ela escolhendo o lugar da serenata conforme o rumo do vento para que ela o escutasse. Depois escrevia manifestos de embarque em rima, de tal maneira que até os documentos oficiais pareciam cartas de amor. Durante toda a vida entreteve a paixão com episódios de amor carnal, enganando a alma com a carne. Durante mais de cinquenta anos manteve aquela força vital que só um amor profundo pode dar ao ser humano, resistindo ao tempo mas também a um sofrimento atroz. O amor puro e insatisfeito de Florentino contrasta com as imposições da carne, expondo de forma sublime essa dualidade entre a carne e o sentimento que preenche de forma avassaladora a vida humana. O final do romance é, pela surpresa e sentido de humor um dos mais geniais da literatura contemporânea.