Ao permitir a publicação destas cartas, Lobo Antunes abre-nos, descaradamente, a porta à sua privacidade. Muitas vezes, ao longo do livro, o leitor sente-se um intruso na intimidade do autor. É impressionante a forma como o grande escritor exprime de forma honesta e comovente os seus sentimentos mais íntimos, uma intensa vida interior que só a solidão proporciona. O amor e a saudade são os temas gerais das cartas. O subtítulo do livro (“Cartas da guerra”) é, de certa forma, enganador. A guerra é sentida como um monstro estúpido e absurdo, do qual se evita falar. Por dois motivos: porque era vedado ao soldado transmitir informações relevantes e porque, para Lobo Antunes, falar da guerra era algo doloroso. É como se as cartas funcionassem como uma forma de escapar ao monstro e não para dar notícia dele. São desabafos íntimos e, acima de tudo, uma imensa manifestação de amor. Um dos aspectos mais surpreendentes das cartas é a manifestação dos gostos literários do autor. Surpreendente a forma como revela um certo criticismo em relação a escritores muito conceituados, como se o auto-conceito de Lobo Antunes como escritor superasse todas as estrelas da literatura universal. Mas não; trata-se apenas de momentos de euforia que, em breve, são substituídos por fases de depressão em que se considera o mais fracassado dos escritores. Ao longo das cartas, vai-nos dando conta, a par e passo, da escrita da sua primeira grande obra: ”Memória de Elefante”. Aqui reside um dos maiores motivos de interesse destas cartas: o relato do sofrimento do escritor, dos seus momentos de euforia e de crises de inspiração. Interessante também a forma como se esforça por recusar influências, se bem que nunca esconda a sua admiração por escritores como Faulkner, Céline ou Garcia Marquez. Intimamente, Lobo Antunes vagueia entre uma modéstia exagerada, deprimida, e um convencimento entusiasmado. Talvez essas oscilações sejam o reflexo do momento depressivo que vivia. Mas são também, sem dúvida, traços característicos da genialidade do grande escritor; um escritor que sonhou com o Nobel e que, cada vez mais, o merece. Mas para lá da genialidade do escritor, da sinceridade das suas confissões, da bravura do soldado/médico, sobressai a grandeza do homem: um homem bom, delicado, sensível, altruísta, generoso – um homem comoventemente bom.
. O que um escritor nos dá não são livros. O que ele nos dá, por via da escrita, é um mundo. Mia Couto
quinta-feira, 1 de dezembro de 2005
domingo, 20 de novembro de 2005
A Curva do Rio - Vidiadhar Naipaul
Trata-se de uma das mais lúcidas leituras do processo de descolonização africana. Algures num país da África Central, emerge um regime ditatorial, na sequência do caos provocado pela descolonização. Um líder apodado de “Grande Chefe”, defendendo ideias pseudo-marxistas, assume-se como o garante da felicidade africana mas mais não consegue do que colocar o país em estado de guerra permanente, conduzindo à desgraça e à pobreza extrema. O Grande Chefe, sem nome, faz lembrar o senhor do Castelo de Kafka – a distância garante o respeito e o medo. Os retratos do Chefe, espalhados por todo o lado, realçam o mito. Salim, um indiano, procurava a fortuna em África. Mas é aprisionado na teia de dos conflitos que emergem. A vida dos emigrantes asiáticos é esmagada pelo conflito. Emerge um choque cultural tripartido: africano, europeu e asiático. A cultura e os costumes europeus, mau grado a descolonização, permanecem como modelos que, consciente ou inconscientemente conduzem os africanos. “A África, retornando aos seus velhos hábitos com meios modernos, seria um continente difícil durante algum tempo”. Ao mesmo tempo, a pobreza e a ignorância são campos férteis para a emergência de um regime autocrático e violento. Surge a guerra civil. No meio de tudo isto, o ser individual perde-se. A vida de Salim é um processo constante e desesperado de procura da identidade perdida. O ser individual devastado em nome de “ideais”. Só no interior de si encontra algo de concreto: quando se apaixona por Yvette, Salim vê o seu mundo reduzir-se; “e quanto mais reduzido se tornava o seu mundo, mais obsessivamente eu vivia nele”.
sábado, 19 de novembro de 2005
Goa ou o Guardião da Aurora - Richard Zimler
O enredo passa-se na colónia portuguesa de Goa, em finais do século XVI. Nessa época, reinad0o de D. João III, o Império Português iniciava o seu período de declínio. Necessitando de recuperar a solidez ameaçada, o Império procurava suster os elementos de desagregação, nomeadamente a divisão religiosa. Neste livro entrecruzam-se três religiões: o catolicismo português, o Hinduísmo e o Islamismo. A Inquisição fazia enormes progressos na sua missão de impedir todos os «bruxos» - quer fossem nativos hindus, quer imigrantes judeus - de praticarem as suas crenças tradicionais. Zimler, estudioso das religiões, faz derivar todo o enredo deste choque multi-cultural e religioso. Os que se recusavam a denunciar outros ou a renunciar à sua fé eram estrangulados por carrascos ou queimados em autos-de-fé. Goa ou O Guardiã da Aurora faz reviver de forma brilhante esses tempos de terror. Ao viver nos limites do território colonial, a família Zarco consegue manter firmes as suas raízes luso-judaicas. Tiago e a irmã, Sofia, gozam uma infância pacífica aprendendo com o pai a ilustrar manuscritos e mergulhando no caos inebriante das festividades hindus celebradas pela sua amada cozinheira, Nupi. Quando as crianças atingem idade adulta, a família é destroçada quando, primeiro o pai e depois o filho, são presos pela Inquisição. Mas quem poderia tê-los traído? O rigor histórico é notável. Simultaneamente, trata-se de um policial histórico magnífico, atingindo situações de suspense que prendem o leitor, mau grado o volume da obra. A incerteza mantém-se até ao final. No entanto, fica a sensação de um desenlace profundamente marcado pelo mal e pela tragédia, fazendo lembrar algumas obras de Shakespeare. Na linha dos seus romances históricos anteriores - O Último Cabalista de Lisboa e Meia-Noite ou O Princípio do Mundo, traduzidos em vários países com grande sucesso tanto comercial como da crítica, dá-nos um livro imaginativo, estimulante e profundamente sensível.
sexta-feira, 18 de novembro de 2005
O Processo - Franz Kafka
De todas as obras de Kafka esta é aquela em que mais nitidamente o autor consegue aliar o obscuro ao real. Caricatura do real? Talvez. Mas mais do que isso, é uma história que leva ao extremo a angustia de um homem perdido num mundo aparentemente irreal em que está inserido. A existência de Joseph K. transforma-se numa procura desesperada de conhecimento e compreensão da vida que alguém lhe destinou. Angustiante. Deprimente. Real. Em O Processo estamos perante uma das mais comuns e significativas razões da angustia humana: a necessidade de conhecer e compreender; o desespero provocado pela ignorância, quando esta coabita com a necessidade do conhecimento. Mas este é apenas o ponto de partida! O Processo retrata o desajuste entre o ser humano, entendido na sua dimensão individual, e um Estado totalitário, impessoal, que paira num universo desconhecido, longínquo… Franz Kafka é o escritor do “absurdo”, como o tinha sido Dostoievsky, como seria Camus. Mas o absurdo de Kafka, ao contrário do filósofo francês, é um absurdo transcendental; reside na incomunicabilidade do homem com o homem, formando uma trama de relações pessoais sem sentido, impostas por circunstâncias alheias ao homem. Joseph K. não consegue chegar até à justiça, que, lentamente, se transforma numa entidade misteriosa e quase irreal. Joseph não compreende a justiça. Nem os homens, nem Deus. O absurdo está na ausência de compreensão mas ela deriva da ausência de comunicação. Daí o desespero, a solidão e o absurdo que cobre o mundo dos homens. A culpa de Joseph é a sua existência; única resposta possível para a angustia do desconhecimento da acusação. É o culminar de uma espiral de desespero que revela uma visão dolorida da alma humana e, acima de tudo, da sociedade humana.
terça-feira, 17 de maio de 2005
Ao Encontro de Espinosa - António Damásio
“Os sentimentos de dor ou prazer são os alicerces da mente” – é com esta frase eloquente que Damásio inicia uma obra marcada pela coragem e pelo rigor científico. Trata-se de um português infeliz e injustamente pouco reconhecido em Portugal, mesmo sendo um dos melhores neurocientistas mundiais. Os sentimentos, como a tristeza, a alegria ou o medo são características fundamentais do ser humano. A sua importância na vida sempre foi reconhecida mas nunca se colocou a hipótese de uma análise neurobiológica que permitisse avaliar a sua importância nas construções mentais. Nesta obra Damásio demonstra algo que já tinha ocorrido a Espinosa mas que só a ciência actual pode comprovar: a origem neurobiológica dos sentimentos e emoções (o cérebro é essencial para o seu desencadear) e o seu contributo decisivo para todos os comportamentos relevantes nas maiores criações do espírito humano. Trata-se de uma obra que alia de forma admirável o humanismo à ciência, a partir da ideia de que mente e corpo são inseparáveis. Os sentimentos são, antes de mais, estados particulares do corpo. São percepções que se apoiam essencialmente em mapas cerebrais do estado do corpo. Se fosse possível remover esse contributo deixaria de ser possível exprimir qualquer sentimento. Todo o processo tem início num estimulo externo competente (ligado a um estado de corpo) que promove a execução de um programa pré-existente de emoção. A partir daí são elaborados mapas neurais que desencadeiam um estado mental (alegria, tristeza, etc.) Assim, o sentimento envolve um estado de espírito mas também um “estado de corpo”. Exemplo dessa componente é o efeito do bloqueio de uma substância – a ocintocina – que impede a ligação afectiva. Quais são então as fontes do sentimento? Para que este se verifique são necessárias 4 condições ao nível somatossensitivo: a existência de um sistema nervoso, a criação de padrões mentais (imagens), a consciência (também ela entendida como resultado de um processo neurobiológico) e um cérebro capaz de criar estados corporais. Tradicionalmente, os sentimentos são apontados como um dos traços distintivos mais importantes do ser humano. Damásio confirma esta ideia mas desmistifica-a: nenhuma inteligência artificial seria capaz de “fabricar” sentimentos, apenas porque eles têm origem na organização do cérebro, a um nível muito profundo e complexo. Damásio analisa também o efeito dos sentimentos em vários níveis da vida humana, como o comportamento social, no raciocínio, no pensamento religioso, etc. A construção de todas as estruturas culturais depende de todas as características neurobiológicas que constituem o conhecimento do si. Dentro dessas características neurobiológicas incluem-se os sentimentos e as emoções. Essa construção do si, ou do connatus (expressão de Espinosa) constituem a matéria-prima para a construção de liberdade e da felicidade. Enfim, uma obra inovadora, atraente, magnífica. Única.
segunda-feira, 16 de maio de 2005
Viagem ao Fim da Noite - Louis Céline
França, durante a 1ª Guerra Mundial. Ferdinand Bardamu é um jovem francês que gasta uma vida toda entre a carnificina das trincheiras, o inferno das colónias, a solidão de Nova Iorque e, finalmente, a paz pobre de uma França saída da Guerra. Uma França triste e miserável. Por todos estes destinos errantes estendeu-se uma vida feita de miséria, infortúnio e a pior das desgraças, uma solidão involuntária, uma condenação perpétua ditada por uma personalidade abatida, esmagada. Mau soldado, colono frustrado, médico fracassado, Bardamu percorre a vida entre a desgraça universal, impotente e miserável. Ainda, e sempre, a dualidade solidão-loucura Por toda a obra perpassa a revolta pelas condições riais da existência de Ferdinand e da maior parte das personagens. Aqueles que escapam à miséria, os ricos, são vistos como abutres, personagens principais de um mundo repleto de injustiça. Trata-se, portanto, de uma visão profundamente pessimista do mundo e de uma humanidade enterrada na guerra, no colonialismo absurdo e desumano. Este pessimismo torna-se mais evidente na descrição de uma sociedade injusta e cruel. Mas todo este contexto, toda esta vida de sofrimento, não faz de Ferdinand um herói nem um mártir. As desgraças da vida fazem dele um ser frio, cruel e egoísta. A miséria degenera a alma e endurece o coração. A luta pela sobrevivência transforma a sua vida numa luta cruel e permanente contra tudo e todos. Aí reside um dos valores mais altos desta obra: a análise psicológica das consequências da miséria, lembrando Dostoiévski. Talvez ainda mais negro do que a miséria material é o vazio de sentimentos revelado pela maioria das personagens de Céline. Amor? Amizade? Solidariedade? Tudo palavras vãs, insignificantes, mesmo ausentes. Espíritos desprovidos de carácter e de sentimentos, almas vazias em corpos mirrados pela noite cerrada que é a vida. Uma das visões da humanidade mais negra, pessimista e real que alguma vez se escreveu. Brilhante.
domingo, 15 de maio de 2005
Portugal Hoje - O Medo de Existir - José Gil
Trata-se de uma visão algo pessimista do ser português, uma análise da alma portuguesa que privilegia os seus traços mais negativos. É portanto, uma visão extremamente crítica. Para Gil, o povo português é, por natureza, avesso àquilo a que chama “inscrição”, ou seja, afasta-se voluntariamente daquela perspectiva crítica e interventiva que seria essencial para a plena democracia. Atribui grande parte dessa tendência ao período salazarista que, na sua perspectiva, marcou os portugueses de forma indelével, retirando-lhes o sentido de participação democrática. Fica a sensação de um certo reducionismo. É pouco crível que, por um lado, as marcas do fascismo tenham perdurado de forma tão marcante até aos nossos dias e, por outro lado, que este fenómeno seja especificamente português. É comum ouvirmos e lermos observações deste tipo noutros países ditos civilizados. Como explicar, por exemplo, as elevadas taxas de abstenção eleitoral em países que nunca viveram em ditaduras? Um outro traço característico que aponta ao “ser” português é o pensamento “pequeno”. Os portugueses gostam de tudo o que é pequeno, recusando-se a abraçar planos a longo prazo. Falta ambição e auto-estima para que o talento e o trabalho resultem em progresso. Mais uma vez, fica a pergunta: será isto assim tão típico e exclusivo do povo português? No entanto, neste aspecto, não é difícil dar razão a José Gil. Uma outra característica da alma lusa será a inveja. O português não quer ser melhor que o outro: quer que o outro lhe seja inferior. Por isso, não valoriza as suas potencialidades, preferindo desvalorizas as dos outros. Mas não será essa uma tendência natural do ser humano? Estas características essenciais do carácter português estão a contribuir, na perspectiva do autor, para a perda de uma oportunidade única para afirmar o nosso país no contexto europeu. No entanto, é caso para perguntar: quantas oportunidades “únicas” já perdemos ao longo da História de Portugal? No meio de tudo isto, Gil é bastante crítico em ralação ao papel da Comunicação social e das estruturas políticas. Os meios de comunicação social alimentam a preguiça mental e os políticos cultivam o imobilismo. Parece-me que esta obra cai em três equívocos fundamentais: - Exagero no papel negativo do regime fascista. Não duvido dos seus efeitos negativos. No entanto, há problemas de fundo que ultrapassam em importância a responsabilidade de Salazar. - Falta de uma perspectiva histórica mais profunda: o ancestral saudosismo, o velho pessimismo saudosista, a tendência para o lucro fácil herdada dos descobrimentos e do ouro brasileiro são fenómenos históricos que marcaram indelevelmente a alma portuguesa e que Gil esquece. - Falta de profundidade. Fica a ideia de uma obra escrita para o grande público, também ela voltada para aquele objectivo que Gil tanto critica: o sucesso fácil. Sobre este tema seria certamente muito mais proveitosa a leitura de O Labirinto da Saudade: Psicanálise Mítica do Destino Português, do grande Eduardo Lourenço (1978).
sábado, 14 de maio de 2005
Bichos - Miguel Torga
Escrito em 1940, Bichos é um clássico da literatura portuguesa. Livro simples, transparente, honesto e sentido. Um grito amargo e profundo da terra que encerra os homens. Uma fusão total entre a terra e o ser humano, como se tudo emergisse de uma amálgama onde terra, bichos e homem fossem a pasta de onde nasceu a ordenação universal das coisas e dos seres. A rudeza das torgas, a aspereza das montanhas, a magreza das terras e a solidão do tempo, misturam-se num universo, cantado em poesia por um mestre que foi apenas um homem. Um homem que viveu e lutou contra um mundo ainda mais agreste, ainda mais hostil: o mundo da ditadura. Bichos é, também, o retrato fiel do viver transmontano; uma vida de suor e lágrimas, por entre escolhos e lobos, mas sempre repleta daquela alegria que só o sofrimento pode justificar: a alegria de ser, de viver em comunhão total coma natureza, em fusão permanente com os elementos. Miguel Torga fez desta obra um testemunho impar da união natural entre os Homens e os Bichos – a simbiose da vida. No meio dos dois, a terra, o traço que lhes dá vida. No trabalho, nas paixões e nas dores, os bichos compartilham com os homens as esperanças e as desgraças. Curiosa a palavra: “bichos” e não “animais”. Bichos são, talvez, os animais humanizados, irmanados com o homem na mesma luta; na vida. A linguagem, simples mas cuidada é uma das mais belas expressões da cultura popular: um vocabulário fidelíssimo à realidade transmontana. Quem conhece aquelas terras, reconhece-se em Torga. Mas a poesia latente por detrás destas estórias não é de Torga. É da terra. Por isso, este livro não é só uma criação do seu autor; é muito mais do que isso: é uma emanação da terra. E neste conceito de “terra” podemos englobar os homens e os seus irmãos “bichos” – os três elementos constituem um todo, um cosmos único onde Torga participa como mensageiro, personagem e intérprete.
sexta-feira, 13 de maio de 2005
Dona Flor e seus Dois Maridos - Jorge Amado
O maior mérito desta obra é o retrato eficaz da realidade brasileira, principalmente ao nível mental e religioso. O vocabulário utilizado é riquíssimo e reflecte precisamente essa multi-culturalidade própria do Estado da Bahia, onde se desenrola a acção. A religiosidade que mistura ao mesmo tempo o catolicismo e o candomblé, colocando as personagens do candomblé lado a lado com os santos e heróis do catolicismo (algo que, na verdade, se enquadra na religiosidade baiana, já que Salvador tem mais igrejas que qualquer outra cidade do Brasil e ainda assim é centro das religiões de origem africana). A outra característica vem a ser o facto de que Vadinho e Teodoro são metáforas para o id e o superego, respectivamente. Vadinho é rebelde, impulsivo, espontâneo e dado ao caos (no seu caso, o jogo); Teodoro é metódico e controlado ("Um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar" é seu lema, pendurado na farmácia). Assim, a imagem de Flor pacificamente com os dois, totalmente feliz, invoca o ideal de equilíbrio entre os dois. Não é, a meu ver, uma obra de grande alcance literário: excelentes descrições, humor a rodos, linguagem muito atractiva e um vocabulário rico não compensam a falta de profundidade das ideias expostas. Nem seria talvez essa a intenção de Amado. Mas é precisamente a leveza, a graciosidade, que impedem essa abrangência, essa profundidade que caracterizam as obras-primas. Talvez estas características ajudem a explicar o sucesso das adaptações de Amado às telenovelas. Enfim, um livro que, mau grado a sua incrível extensão, se lê com agrado, mas do qual pouco fica no arquivo da memória.
quinta-feira, 12 de maio de 2005
O Jogador - Fiodor Dostoiévsky
“O Jogador” não é uma obra-prima; porque foi escrito por Dostoiévsky e os termos de comparação são, obviamente, os seus grandes clássicos. É quase escusado dizer que esta obra não tem o fôlego, a profundidade nem a genialidade de “Crime e Castigo” ou “Os irmãos Karamazov”. Mas para qualquer outro escritor isto seria uma obra genial. O problema é que aos génios pedimos sempre obras-primas. Mas não deixa de ser uma obra excelente, se tivermos em conta os propósitos que o levou a escrevê-la: conseguir, o mais rapidamente possível, dinheiro para pagar as suas próprias dívidas de jogo. Portanto, trata-se, em grande parte, de uma obra de cariz (ou pelo menos de inspiração) autobiográfica. Trata-se de uma análise magnífica da vida e das angústias de um jogador. A dependência envolve Alexis Ivanovitch até ao limite. Mas não se trata apenas de uma análise psicológica. O enredo envolve uma curiosa e profunda dimensão de análise social e até com implicações de crítica política. O que está em causa é muito mais do que a vida e a desgraça de Alexis. É a critica social à aristocracia feudal que persiste numa Rússia esclerosada e anacrónica. Uma nobreza de nome, empedernida, estupidificada e inútil, simbolizada pelo patrão de Ivanovitch, o General. Tratava-se do meio ideal para que, mais tarde, viesse a eclodir a Revolução Soviética. Num enredo que se desenrola nesse meio aristocrático, o vício do jogo é encarado por Dostoiévsky como um sintoma dessa falta de inteligência de que padeciam as elites nobiliárquicas. Daí a sua admiração pela Inglaterra – um país livre, onde pululavam as ideias progressistas da época e onde sobressaía uma aristocracia culta, investidora, dinâmica.
terça-feira, 10 de maio de 2005
Os Indiferentes - Alberto Morávia
Moravia escreveu esta obra com apenas 22 anos. É a sua primeira obra. Talvez por isso, o livro mistura uma grande simplicidade narrativa com aquele traço de génio tão peculiar em Morávia: um estilo directo, frontal por vezes frio, outras vezes terrivelmente apaixonado. É precisamente nesta primeira fase da sua vida literária, que encontramos o Morávia mais puro, mais profundo, antes de se ter rendido ao êxito fácil. Se excluirmos essa grande obra que é A Romana, este livro é, talvez, o mais conseguido de Morávia. É a história de Leo Merumechi, um comerciante sem escrúpulos que se envolve com a filha da amante, usando a sua relação com ambas como uma estratégia para “deitar as mãos” às propriedades da família. Indiferentes, os 4 ou 5 personagens do romance são arrastados por Leo, inconscientemente, para um processo de dominação em relação ao qual demonstram uma inactividade por vezes desesperante. Trata-se de uma reflexão sobre o medo, ou pelo menos sobre a insegurança, que leva as pessoas a deixar-se arrastar pelos outros quando estes demonstram poder. Por outro lado, há as condições materiais. Na esteira do neo-realismo, Morávia aborda a Itália do pós guerra como um meio decadente, onde o acesso à riqueza se reveste de estratégias pouco claras, onde o recurso à burla se torna banal. Este decadentismo ético e moral conduz a uma vontade de afirmação social que põe em causa os padrões morais da época. Saliente-se ainda o facto de se usarem apenas 5 personagens. Este facto, aliado à dinâmica narrativa deixa adivinhar alguma influência do teatro. Acima de tudo, é uma obra sobre a inacção. Indiferença e cobardia resultam em infelicidade. Parece-me ser esta a ideia fundamental do livro.
segunda-feira, 9 de maio de 2005
Mulheres - Charles Bukowsky
É difícil encontrar um romance de sucesso com conteúdo mais marcadamente pornográfico do que “Mulheres”. A vida de Bukowsky/Chinasky é descrita com uma crueza quase inimitável. Talvez tenha sido essa frieza e o estilo hiper-objectivo os segredos do sucesso deste escritor alcoólico, com o ele próprio se define. Um escritor alcoólico decadente que escreve para poder dormir até ao meio-dia. Para Chinasky a vida é apenas uma sucessão alternada de amor álcool e sexo. No entanto, por detrás desta crueza, desta objectividade extrema e do hedonismo que percorre todo o enredo, há uma vida angustiada e um pessimismo latente que desmascara todos os prazeres que o autor/personagem cultiva. Sempre num estilo cruel mas bem-humorado, Bukowsky deixa transparecer a angústia de uma solidão rodeada de mulheres, seres quase anónimos que preenchem as lacunas de uma vida sem sentido. Um dos aspectos mais interessantes da obra é o contraste entre o estilo bem-humorado e o fundo melancólico, a visão atormentada da vida: “não interessava o que elas faziam, nós acabávamos na solidão e na loucura” – pág. 264 Enfim, um livro divertido e cruel. Como a vida de Bukowsky.
sábado, 22 de janeiro de 2005
Madame Bovary - Gustave Flaubert
Se vivesse no século XXI, Madame Bovary seria cliente assídua de um qualquer psiquiatra. Tomaria doses generosas de sedativos, barbitúricos e anti-depressivos. Mas no mundo fechado da sociedade pequeno-burguesa do século XIX francesa, Emma só encontra a fuga no amor. Num amor puramente carnal, talvez por isso o mais puro. Num amor furioso e desmedido, Madame Bovary, vítima de um marido estúpido e incapaz de a fazer feliz refugia-se no adultério, a partir do qual procura construir uma outra vida. Tudo isso a troco de uns laivos de felicidade que a normalidade, triste e monótona, lhe negava. Enclausurada num mundo em que ser mulher virtuosa significava a negação do ser individual, procura no adultério esse direito que a civilização lhe recusava: a liberdade e o direito a ser feliz. O casamento como convenção. O sexo como redenção. Charles, o marido, é um pobre diabo, vítima da sua própria estupidez, que o torna incapaz de compreender Emma. É neste ponto que Flaubert se torna implacável. Afinal de contas, que culpa tem alguém de ser estúpido? Mereceria Charles tão grande castigo? No entanto, Charles era feliz enquanto Emma alimentava o seu espírito com o ardor do amor proibido. E a felicidade de Charles fundava-se na mentira, na ignorância. Talvez a mentira seja justificada por essa espécie de felicidade. Numa outra perspectiva, a obra poderia ter tido um título como “O triunfo da Estupidez”. No final, o triunfo é desse ícone da estupidez, o farmacêutico Homais. Mas o que mais marca esta verdadeira obra prima da literatura francesa é, sem dúvida, o elogio da liberdade, a redenção da mulher infiel, o encómio de um amor proibido mas redentor que faz de Emma uma verdadeira heroína. Ao mesmo tempo é um poderoso ataque frontal ao conservadorismo da sociedade burguesa do início da época contemporânea.
domingo, 16 de janeiro de 2005
Um Mundo Infestado de Demónios - Carl Sagan
O melhor divulgador científico que a Humanidade já conheceu e um dos homens maiores de todos os tempos escreveu esta obra um ano antes de morrer, vítima de uma estúpida e fatal doença. A pseudo-ciência é um dos alvos da crítica mordaz mas esclarecida de Sagan, por vezes aliada ao poder político, outras vezes sustentada pela crendice, cujo sucesso se deve à facilidade com que acreditamos naquilo que nos fascina. O fascínio é, na verdade, mais poderoso que a verdade. O “rosto humano” da Lua e os “canais de Marte” são dois exemplos práticos de mitos do século XX que prevalecem porque se baseiam na fantasia que encandeia qualquer cérebro desprevenido. Na verdade é fácil acreditar naquilo que se deseja ser verdadeiro. Um dos alvos mais insistentemente visados por Sagan é a crença nas visitas alienígenas. No entanto estas crenças estão muitas vezes ligadas a interesses económicos e políticos que Sagan combate poderosamente. Por exemplo, o secretismo que rodeou a Guerra Fria justificou a desconfiança quanto a informações governamentais. Tal secretismo forneceu o ambiente propício à propagação das “visões” e das crenças. Num terreno extremamente movediço, Sagan arroja-se a relacionar as crenças pseudo-cientificas do século XX com o contexto da religião cristã tradicional que criara fenómenos como a Inquisição, integrando também nesta análise as falácias das visões milagrosas da religião católica. No entanto, fica clara nesta obra a tolerância de Sagan perante toda e qualquer crença religiosa. Não é a religião que está em causa mas apenas as tentativas de explicar fenómenos científicos mediante a crença. A estupidificação da América, na palavra de Sagan é o drama maior do seu/nosso tempo, apontando o dedo a toda uma plêiade de embustes como curandeiros e prestidigitadores que se servem da ignorância das pessoas. No entanto, aponta também o dedo às estruturas do poder político como responsáveis por um sistema educativo ineficaz que permite e até cultiva a ignorância. A relatividade do conhecimento científico, é, no entanto, um facto indesmentível. E é com grande modéstia que Sagan admite os seus próprios erros. Admite também com frontalidade as consequências por vezes dramáticas do progresso cientifico, apontando como exemplo as investigações de Teller que levaram à bomba de hidrogénio. O livro tem como ponto alto a explicação das temíveis equações de Maxell. Talvez nunca ninguém tenha explicado de forma tão simples e atractiva aquelas complicadas relações entre electricidade e magnetismo. Um exemplo de como as ciências matemáticas podem ter implicações práticas preciosas. Nesta obra é impressionante o respeito de Sagan por ideias e concepções tão afastadas da ciência! Ideias que ele reprova liminarmente são sempre analisadas com aquela tolerância que só o conhecimento científico e uma mente brilhante podem suscitar. Impressionante também é o optimismo inabalável perante a ciência, em contraste com uma visão deprimida, profundamente pessimista com que Sagan vê a sua América! Ontem como hoje! Que diria Sagan da América de W. Bush?
sábado, 15 de janeiro de 2005
A Demanda de D. Fuas Bragatela - Paulo Moreiras
Fuas Bragatela, peão e vilão do século XIV, embora distante no tempo, é a imagem do cidadão português do século XXI: iletrado mas espertalhão, pacóvio mas desenrascado. Analfabeto, ignorante, ladrão e bêbado, é uma alma pura e ingénua, vítima do destino que o fez desgraçado. Plebeu da pior espécie é feito Dom por um acaso tolerado pelo Deus dos pobres. Filho de alfaiate miserável, desafiou o destino à procura de um qualquer e honrado futuro. O livro retrata com fidelidade uma época que constitui um autêntico filão para a literatura: o ocaso da Idade Média e o início da época moderna, na madrugada do renascimento e da epopeia dos descobrimentos. O cenário é um Portugal onde persiste o obscurantismo medieval, um país de bêbados e ladrões. Fuas é vítima e actor de todo esse mundo ingrato e desgraçado, onde pululam lendas e crendices, um cosmos fantástico, a tentar iludir uma realidade triste, injusta e revoltante. Ao ler este livro sente-se o mais profundo prazer da leitura – uma linguagem fiel ao português arcaico, riquíssima e plena de sentido de humor. O enredo é repleto de pormenores fieis à realidade histórica, sem anacronismos nem exageros. Esta fidelidade não impede, no entanto, o uso de uma imaginação impressionante. A obra peca apenas pelo incrível exagero nas coincidências factuais que povoam o enredo, tornando-o algo inverosímil.
quinta-feira, 13 de janeiro de 2005
Bouvard et Pécuchet - Gustave Flaubert
Uma caricatura genial de um tipo de conhecimento superficial e fútil, típico de uma burguesia pedante que pululava na sociedade francesa daquele tempo (segunda metade do século XIX). No entanto, a caricatura mantém-se actual, nesta época em que se cultiva o conhecimento “trivial pursuit”. Mas a obra é muito mais que uma caricatura. É uma crítica mordaz e divertida (por vezes hilariante) à ignorância e à soberba. È uma lição de como o conhecimento enciclopédico de nada serve quando não é guarnecido de inteligência ou, pelo menos, de sentido de adaptação à realidade concreta. Sem a flexibilidade, o espírito crítico e a tolerância do espírito inteligente, o saber refugia-se em preconceitos e ideias feitas. No fundo, Flaubert estabelece uma certa identificação da inteligência com o espírito crítico, entendido como forma de avaliar diferentes perspectivas e conciliar opiniões contrastantes. Duas características fundamentais da escrita de Flaubert, para além daquele espírito crítico típico da escola realista: o sentido de humor onde o nosso Eça se inspirou e um extraordinário domínio de vários ramos do saber, indispensável para colocar em ridículo as convicções dos “heróis”. Destaque ainda para um final absolutamente surpreendente e genial, embora apenas esboçado, pois a morte surpreendeu Flaubert antes do termo da obra.
quarta-feira, 12 de janeiro de 2005
O Sol Nasce Sempre (Fiesta)- Ernest Hemingway
Trata-se do primeiro romance de E. Hemingway. Talvez por isso denote uma objectividade de linguagem, uma “simplicidade” assinalável. Mas talvez se trate algo mais: ele consegue construir uma narrativa apenas aparentemente simples: aquilo que escreve são apenas pistas que levam o autor a recriar um enredo mais profundo, como se o autor apenas precisasse de aflorar a ideia, contando com o leitor para construir o quadro. O que mais se destaca nesta obra é a forma pungente, amargurada com que Hemingway aborda o ser humano. Este livro foi escrito em plena década de 20. O mundo (saído da guerra) perdera a inocência e a crença num futuro cor-de-rosa. Daí que deambulasse, como as personagens do romance, entre o terror da morte e o desvario do prazer. Emoções devastadoras, amores confusos e avassaladoras, culminam no entanto num final comovedor, subtil e delicado. Hemingway revela aqui uma visão profundamente amargurada do ser humano. Mas também uma delicadeza emocionada com que analisa a alma humana – uma visão quase ingénua, profundamente crente na bondade humana e na capacidade de amar. O mundo não é mais do que um enorme obstáculo à felicidade. Enfrentá-lo é, no entanto, o único caminho para essa mesma felicidade.
terça-feira, 11 de janeiro de 2005
Fahrenheit 451 - Ray Bradbury
Uma história de ficção cientifica que ultrapassa largamente o âmbito usual do género. Bradbury imagina a sociedade americana mergulhada numa ditadura da democracia onde se condena sem piedade tudo quanto é susceptível de causar perturbação no sistema. Este baseia-se num ideal de igualdade social fundada sobre o obscurantismo, o culto da ignorância, a ausência do pensamento. Os livros tornam-se assim o inimigo a abater e os bombeiros são os soldados do sistema, encarregados de destruir toda a literatura. É preciso abater o espírito humano para diminuir qualquer consciência de inferioridade ou de injustiça. O homem culto é o inimigo da sociedade. É desestabilizador como o aluno “esperto”, que responde a todas as perguntas, é o alvo a abater por todos os elementos da turma. Desta forma, todas as minorias devem ser abatidas, porque escapam ao modelo universal de homem comum, ignorante e obediente. Os livros trazem desigualdade e consciência dessa mesma desigualdade. Portanto, provocam desobediência, logo, são nefastos. Para que a sociedade continue a caminhar para a “harmonia”, o indivíduo não pode ter opções; não pode ter o que escolher. A autoridade deve oferecer-lhe tudo aquilo que é considerado indispensável. Mais do que isso, é função da autoridade fornecer ao indivíduo um modelo único onde se deve integrar plenamente. Em conclusão, não se trata de uma obra de ficção científica mas de um livro premonitório. Escrita em 1953, em pleno pós guerra que abria o caminho à guerra fria, a obra de R. Bradbury parece tornar-se o “1984” do mundo ocidental, nomeadamente do modelo capitalista e neo-liberal norte-americano.
quarta-feira, 5 de janeiro de 2005
A Linha da Sombra - Joseph Conrad
A Linha da Sombra é uma curta mas complexa reflexão sobre a insignificância do homem perante a Natureza e o Tempo. É uma obra sobre a vida humana. O Comandante é a imagem assumida da fraqueza humana, a personificação do carácter quase insignificante do ser humano quando se confronta com a Natureza. Mas a obra de Conrad vai muito mais além. A complexidade das suas reflexões transforma esse tema de fundo numa autêntica trivialidade. É, acima de tudo, uma relexão sobre as diferentes fases da vida, sobre a transição da juventude para a maturidade. Tal maturidade é encarada com um estado de decadência, simbolizada pelo mar calmo, assustadoramente calmo, que impede o navio de seguir viagem. É, por isso, uma obra angustiada e angustiante, uma expressão de melancolia e pessimismo que enreda o leitor numa história monótona, penosa, quase moribunda. As palavras e as frases arrastam-se como o tempo, como a vida adulta… E a vida vai perdendo sentido quando tudo é estagnação, torpor e um medo passivo que conduz à inércia, à impotência. Não é um livro divertido nem apaixonante. Os primeiros capítulos parecem navegar sem sentido definido e o enredo caminha desesperadamente devagar, como o navio e como a morte…
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