sábado, 22 de janeiro de 2005

Madame Bovary - Gustave Flaubert

Se vivesse no século XXI, Madame Bovary seria cliente assídua de um qualquer psiquiatra. Tomaria doses generosas de sedativos, barbitúricos e anti-depressivos. Mas no mundo fechado da sociedade pequeno-burguesa do século XIX francesa, Emma só encontra a fuga no amor. Num amor puramente carnal, talvez por isso o mais puro. Num amor furioso e desmedido, Madame Bovary, vítima de um marido estúpido e incapaz de a fazer feliz refugia-se no adultério, a partir do qual procura construir uma outra vida. Tudo isso a troco de uns laivos de felicidade que a normalidade, triste e monótona, lhe negava. Enclausurada num mundo em que ser mulher virtuosa significava a negação do ser individual, procura no adultério esse direito que a civilização lhe recusava: a liberdade e o direito a ser feliz. O casamento como convenção. O sexo como redenção. Charles, o marido, é um pobre diabo, vítima da sua própria estupidez, que o torna incapaz de compreender Emma. É neste ponto que Flaubert se torna implacável. Afinal de contas, que culpa tem alguém de ser estúpido? Mereceria Charles tão grande castigo? No entanto, Charles era feliz enquanto Emma alimentava o seu espírito com o ardor do amor proibido. E a felicidade de Charles fundava-se na mentira, na ignorância. Talvez a mentira seja justificada por essa espécie de felicidade. Numa outra perspectiva, a obra poderia ter tido um título como “O triunfo da Estupidez”. No final, o triunfo é desse ícone da estupidez, o farmacêutico Homais. Mas o que mais marca esta verdadeira obra prima da literatura francesa é, sem dúvida, o elogio da liberdade, a redenção da mulher infiel, o encómio de um amor proibido mas redentor que faz de Emma uma verdadeira heroína. Ao mesmo tempo é um poderoso ataque frontal ao conservadorismo da sociedade burguesa do início da época contemporânea.

domingo, 16 de janeiro de 2005

Um Mundo Infestado de Demónios - Carl Sagan

O melhor divulgador científico que a Humanidade já conheceu e um dos homens maiores de todos os tempos escreveu esta obra um ano antes de morrer, vítima de uma estúpida e fatal doença. A pseudo-ciência é um dos alvos da crítica mordaz mas esclarecida de Sagan, por vezes aliada ao poder político, outras vezes sustentada pela crendice, cujo sucesso se deve à facilidade com que acreditamos naquilo que nos fascina. O fascínio é, na verdade, mais poderoso que a verdade. O “rosto humano” da Lua e os “canais de Marte” são dois exemplos práticos de mitos do século XX que prevalecem porque se baseiam na fantasia que encandeia qualquer cérebro desprevenido. Na verdade é fácil acreditar naquilo que se deseja ser verdadeiro. Um dos alvos mais insistentemente visados por Sagan é a crença nas visitas alienígenas. No entanto estas crenças estão muitas vezes ligadas a interesses económicos e políticos que Sagan combate poderosamente. Por exemplo, o secretismo que rodeou a Guerra Fria justificou a desconfiança quanto a informações governamentais. Tal secretismo forneceu o ambiente propício à propagação das “visões” e das crenças. Num terreno extremamente movediço, Sagan arroja-se a relacionar as crenças pseudo-cientificas do século XX com o contexto da religião cristã tradicional que criara fenómenos como a Inquisição, integrando também nesta análise as falácias das visões milagrosas da religião católica. No entanto, fica clara nesta obra a tolerância de Sagan perante toda e qualquer crença religiosa. Não é a religião que está em causa mas apenas as tentativas de explicar fenómenos científicos mediante a crença. A estupidificação da América, na palavra de Sagan é o drama maior do seu/nosso tempo, apontando o dedo a toda uma plêiade de embustes como curandeiros e prestidigitadores que se servem da ignorância das pessoas. No entanto, aponta também o dedo às estruturas do poder político como responsáveis por um sistema educativo ineficaz que permite e até cultiva a ignorância. A relatividade do conhecimento científico, é, no entanto, um facto indesmentível. E é com grande modéstia que Sagan admite os seus próprios erros. Admite também com frontalidade as consequências por vezes dramáticas do progresso cientifico, apontando como exemplo as investigações de Teller que levaram à bomba de hidrogénio. O livro tem como ponto alto a explicação das temíveis equações de Maxell. Talvez nunca ninguém tenha explicado de forma tão simples e atractiva aquelas complicadas relações entre electricidade e magnetismo. Um exemplo de como as ciências matemáticas podem ter implicações práticas preciosas. Nesta obra é impressionante o respeito de Sagan por ideias e concepções tão afastadas da ciência! Ideias que ele reprova liminarmente são sempre analisadas com aquela tolerância que só o conhecimento científico e uma mente brilhante podem suscitar. Impressionante também é o optimismo inabalável perante a ciência, em contraste com uma visão deprimida, profundamente pessimista com que Sagan vê a sua América! Ontem como hoje! Que diria Sagan da América de W. Bush?

sábado, 15 de janeiro de 2005

A Demanda de D. Fuas Bragatela - Paulo Moreiras

Fuas Bragatela, peão e vilão do século XIV, embora distante no tempo, é a imagem do cidadão português do século XXI: iletrado mas espertalhão, pacóvio mas desenrascado. Analfabeto, ignorante, ladrão e bêbado, é uma alma pura e ingénua, vítima do destino que o fez desgraçado. Plebeu da pior espécie é feito Dom por um acaso tolerado pelo Deus dos pobres. Filho de alfaiate miserável, desafiou o destino à procura de um qualquer e honrado futuro. O livro retrata com fidelidade uma época que constitui um autêntico filão para a literatura: o ocaso da Idade Média e o início da época moderna, na madrugada do renascimento e da epopeia dos descobrimentos. O cenário é um Portugal onde persiste o obscurantismo medieval, um país de bêbados e ladrões. Fuas é vítima e actor de todo esse mundo ingrato e desgraçado, onde pululam lendas e crendices, um cosmos fantástico, a tentar iludir uma realidade triste, injusta e revoltante. Ao ler este livro sente-se o mais profundo prazer da leitura – uma linguagem fiel ao português arcaico, riquíssima e plena de sentido de humor. O enredo é repleto de pormenores fieis à realidade histórica, sem anacronismos nem exageros. Esta fidelidade não impede, no entanto, o uso de uma imaginação impressionante. A obra peca apenas pelo incrível exagero nas coincidências factuais que povoam o enredo, tornando-o algo inverosímil.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2005

Bouvard et Pécuchet - Gustave Flaubert

Uma caricatura genial de um tipo de conhecimento superficial e fútil, típico de uma burguesia pedante que pululava na sociedade francesa daquele tempo (segunda metade do século XIX). No entanto, a caricatura mantém-se actual, nesta época em que se cultiva o conhecimento “trivial pursuit”. Mas a obra é muito mais que uma caricatura. É uma crítica mordaz e divertida (por vezes hilariante) à ignorância e à soberba. È uma lição de como o conhecimento enciclopédico de nada serve quando não é guarnecido de inteligência ou, pelo menos, de sentido de adaptação à realidade concreta. Sem a flexibilidade, o espírito crítico e a tolerância do espírito inteligente, o saber refugia-se em preconceitos e ideias feitas. No fundo, Flaubert estabelece uma certa identificação da inteligência com o espírito crítico, entendido como forma de avaliar diferentes perspectivas e conciliar opiniões contrastantes. Duas características fundamentais da escrita de Flaubert, para além daquele espírito crítico típico da escola realista: o sentido de humor onde o nosso Eça se inspirou e um extraordinário domínio de vários ramos do saber, indispensável para colocar em ridículo as convicções dos “heróis”. Destaque ainda para um final absolutamente surpreendente e genial, embora apenas esboçado, pois a morte surpreendeu Flaubert antes do termo da obra.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2005

O Sol Nasce Sempre (Fiesta)- Ernest Hemingway

Trata-se do primeiro romance de E. Hemingway. Talvez por isso denote uma objectividade de linguagem, uma “simplicidade” assinalável. Mas talvez se trate algo mais: ele consegue construir uma narrativa apenas aparentemente simples: aquilo que escreve são apenas pistas que levam o autor a recriar um enredo mais profundo, como se o autor apenas precisasse de aflorar a ideia, contando com o leitor para construir o quadro. O que mais se destaca nesta obra é a forma pungente, amargurada com que Hemingway aborda o ser humano. Este livro foi escrito em plena década de 20. O mundo (saído da guerra) perdera a inocência e a crença num futuro cor-de-rosa. Daí que deambulasse, como as personagens do romance, entre o terror da morte e o desvario do prazer. Emoções devastadoras, amores confusos e avassaladoras, culminam no entanto num final comovedor, subtil e delicado. Hemingway revela aqui uma visão profundamente amargurada do ser humano. Mas também uma delicadeza emocionada com que analisa a alma humana – uma visão quase ingénua, profundamente crente na bondade humana e na capacidade de amar. O mundo não é mais do que um enorme obstáculo à felicidade. Enfrentá-lo é, no entanto, o único caminho para essa mesma felicidade.

terça-feira, 11 de janeiro de 2005

Fahrenheit 451 - Ray Bradbury

Uma história de ficção cientifica que ultrapassa largamente o âmbito usual do género. Bradbury imagina a sociedade americana mergulhada numa ditadura da democracia onde se condena sem piedade tudo quanto é susceptível de causar perturbação no sistema. Este baseia-se num ideal de igualdade social fundada sobre o obscurantismo, o culto da ignorância, a ausência do pensamento. Os livros tornam-se assim o inimigo a abater e os bombeiros são os soldados do sistema, encarregados de destruir toda a literatura. É preciso abater o espírito humano para diminuir qualquer consciência de inferioridade ou de injustiça. O homem culto é o inimigo da sociedade. É desestabilizador como o aluno “esperto”, que responde a todas as perguntas, é o alvo a abater por todos os elementos da turma. Desta forma, todas as minorias devem ser abatidas, porque escapam ao modelo universal de homem comum, ignorante e obediente. Os livros trazem desigualdade e consciência dessa mesma desigualdade. Portanto, provocam desobediência, logo, são nefastos. Para que a sociedade continue a caminhar para a “harmonia”, o indivíduo não pode ter opções; não pode ter o que escolher. A autoridade deve oferecer-lhe tudo aquilo que é considerado indispensável. Mais do que isso, é função da autoridade fornecer ao indivíduo um modelo único onde se deve integrar plenamente. Em conclusão, não se trata de uma obra de ficção científica mas de um livro premonitório. Escrita em 1953, em pleno pós guerra que abria o caminho à guerra fria, a obra de R. Bradbury parece tornar-se o “1984” do mundo ocidental, nomeadamente do modelo capitalista e neo-liberal norte-americano.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2005

A Linha da Sombra - Joseph Conrad

A Linha da Sombra é uma curta mas complexa reflexão sobre a insignificância do homem perante a Natureza e o Tempo. É uma obra sobre a vida humana. O Comandante é a imagem assumida da fraqueza humana, a personificação do carácter quase insignificante do ser humano quando se confronta com a Natureza. Mas a obra de Conrad vai muito mais além. A complexidade das suas reflexões transforma esse tema de fundo numa autêntica trivialidade. É, acima de tudo, uma relexão sobre as diferentes fases da vida, sobre a transição da juventude para a maturidade. Tal maturidade é encarada com um estado de decadência, simbolizada pelo mar calmo, assustadoramente calmo, que impede o navio de seguir viagem. É, por isso, uma obra angustiada e angustiante, uma expressão de melancolia e pessimismo que enreda o leitor numa história monótona, penosa, quase moribunda. As palavras e as frases arrastam-se como o tempo, como a vida adulta… E a vida vai perdendo sentido quando tudo é estagnação, torpor e um medo passivo que conduz à inércia, à impotência. Não é um livro divertido nem apaixonante. Os primeiros capítulos parecem navegar sem sentido definido e o enredo caminha desesperadamente devagar, como o navio e como a morte…