quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Ficções - Jorge Luís Borges

Sinopse:
Ficções reúne os contos publicados por Borges em 1941 sob o título de O jardim de veredas que se bifurcam (com exceção de "A aproximação a Almotásim", incorporado a outra obra) e outras dez narrativas com o subtítulo de Artifícios. Nesses textos, o leitor se defronta com um narrador inquisitivo que expõe, com elegância e economia de meios, de forma paradoxal e lapidar, suas conjeturas e perplexidades sobre o universo, retomando motivos recorrentes em seus poemas e ensaios desde o início de sua carreira: o tempo, a eternidade, o infinito. Os enredos são como múltiplos labirintos e se desdobram num jogo infindável de espelhos, especulações e hipóteses, às vezes com a perícia de intrigas policiais e o gosto da aventura, para quase sempre desembocar na perplexidade metafísica. Chamam a atenção a frase enxuta, o poder de síntese e o rigor da construção, que tem algo da poesia e outro tanto da prosa filosófica, sem nunca perder o humor desconcertante. 

Comentário:
A narrativa fantástica de Borges é, além de pioneira, única e peculiar.
Este livro de contos tornou-se um marco na literatura do século XX pela sua perfeição de estilo, pela abrangência filosófica e por uma estética interna feita de rigor e delicadeza formal.
A capa exibida acima, de uma edição brasileira, é uma síntese magnífica dessa delicadeza formal, construída sobre uma espécie de geometria, como se todos os contos fossem traçados a régua e esquadro.
Borges não escreve “ao correr da pena”; a sua escrita parece ter saído de um laboratório, em que cada palavra foi medida e pesada. Não há adjetivos como adorno de linguagem, nem frases construídas em função da estética. Há, isso sim, um rigor quase matemático que torna a leitora difícil para um leitor que apenas procure diversão.
Na realidade, estas ficções não foram construídas para divertir, mas sim para exprimir sensações, sentimentos e pensamentos em torno do mundo, do ser, da morte, da imortalidade, do tempo e da sua relatividade.
Alguns contos, com estrutura que os aproximam da literatura policial podem considerar-se mas “leves”, em termos narrativos. Mas por detrás de todos eles há uma visão pensada, refletida, do sentido da vida humana e do tempo.
Por vezes, o fantástico que percorre todo o livro faz lembrar o surrealismo, pela forma absurda com que o real é exposto; assim é, por exemplo, no primeiro conto. Aí deparamos com uma verdade universal escondida pro detrás das palavras e da estória: toda e qualquer leitura do real será sempre absurda; porque todo o real é absurdo. Esta ideia parece-me ser transportada para outros contos, fazendo desta narrativa inicial uma espécie de mote para todo o livro.
Confunde-se no livro, como na vida, o real com o ilusório; o fantástico com o objetivo. Mas também o passado com o presente e o interior de um homem com o que lhe é exterior. O homem de Babilónia, no conto “A Lotaria de Babilónia” afirma que conheceu “o que os gregos ignoram: a incerteza”. “A lotaria é parte principal da realidade”. Assim é o pensamento de Borges: muito mais do que realista – surreal, fantástico, metafisico, transcendente.

Numa nota pessoal posso dizer que me senti mais pequeno perante este livro de Borges: o mundo e a vida são demasiado complexos para julgarmos que os conhecemos. E tudo aquilo a que chamamos fantástico, ou irreal, ou até errado pode ser tão verdadeiro como a morte.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A sondagem - Bimbys ou coisas que nos moam o juízo?


Agora sim, está fechada a sondagem. Já com um número de participantes minimamente representativo (76) conclui-se que 44 deles (57%) preferem ler nas férias livros mais reflexivos, em vez dos tão propalados “levezinhos”.
Já tivemos também aqui uma interessante discussão sobre o que se considera ser levezinho. Pode tratar-se de literatura light, literatura de cordel, literatura de casa de banho. Ou, para ser mais simpático, uma espécie de literatura Bimby, fácil de cozinhar, fácil de comer.
Mas pode tratar-se também de literatura conceituada mas com leitura fácil e agradável, como por exemplo os magníficos exemplares da literatura romântica francesa do século XIX. Seja como for, estes livros parecem ser preteridos, pelo menos pela maioria dos frequentadores deste blogue, em favor das obras que apelam mais à reflexão.

Sem qualquer pretenciosismo acho que estes números são surpreendentes; na verdade, a maioria das editoras encaram o verão como um período em que as pessoas procuram principalmente os tais “levezinhos”. Talvez não seja bem assim, afinal…

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A Náusea - Jean Paul Sartre


Sinopse:
A Náusea foi o primeiro romance de Sartre e foi saudado aquando do seu aparecimento como a revelação dum escritor de grande talento. Através do diário diurno íntimo do protagonista, Antoine Roquentin, Sartre retrata com um realismo digno de Maupassant a vida e os habitantes duma cidade da província, explorando a fundo o absurdo da condição humana, tema que mais tarde o tornaria um autor incontornável.

Comentário:
A aversão aos outros, o culto de um determinado tipo de evasão solitária, o pessimismo angustiado são algumas das ideias base deste livro, ideias essas que vieram a tornar-se fulcrais em toda a literatura existencialista francesa.
Não há dúvidas que estamos perante uma obra de charneira naquela corrente literária e um exercício literário único na vida deste filósofo que um dia afirmou que “o Inferno são os outros”.
No entanto, mau grado a dimensão filosófica da obra, ela é-nos apresentada num estilo algo poético, que cativa por uma subjetividade por vezes pungente, dramática. Roquetin é um homem solitário. Ou melhor, um homem que construiu a sua própria solidão, de forma voluntária.
No período da sua vida a que o livro se refere, Roquetin é assolado frequentemente por uma sensação de náusea que o atinge especialmente em determinadas situações de confronto com os outros. Eles surgem quase sempre como veículos de sofrimento. Todos exceto Anny. No entanto, na parte final do livro, nem Anny haverá de o ajudar a ultrapassar esse sofrimento.
O que mais choca o leitor (e terá sido essa uma das principais intenções de Sartre) é a sensação de impotência do personagem perante o mundo que o rodeia: perante os outros e perante as coisas. Tudo serve para subjugar Roquetin que se refugia numa profunda e irritante inação. Uma inação assumida, é certo, mas que a espaços se confunde com o mais atroz egoísmo.
Da inação ao desprezo pelos outros vai um pequeno passo; mas depressa Roquetin cai em contradições que talvez sejam próprias da alma humana: despreza os outros porque eles vivem em rotinas monótonas mas ele próprio, por outras vias, cai no mesmo tipo de rotinas, agravadas pela subjugação total da sua personalidade. Roquetin entende que não tem qualquer obrigação de ajudar os outros porque eles em nada servem para a sua felicidade mas fica bem patente que Anny, que não deixa de ser um “outro”, seria a única escapatória à desgraça.
Roquetin abomina especialmente os humanistas, considerando-os ingénuos. No entanto, nem ele escapa à tentação de ajudar desesperadamente o seu único amigo (o Autodidata, um humanista que ele abomina também) no momento em que ele se encontra numa situação perigosa.
Enfim, ficamos sem saber se estas são as contradições de um Roquetin condenado à inação ou se estas serão mesmo as contradições de todas as almas humanas.
Goste-se ou não, concorde-se ou discorde-se, este livro foi um duplo marco na cultura do século XX: um marco literário nas letras francesas e um marco filosófico, num livro de charneira no existencialismo europeu.

Um livro que se lê com alguma dificuldade tal é a profundidade psicológica e filosófica do enredo mas, ao mesmo tempo, uma obra fascinante pela abordagem corajosa embora pessimista, profunda embora deprimida da alma humana.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

E se for rapariga chama-se Custódia - Luís de Sttau Monteiro

Sinopse
Que circunstâncias levam dois homens a revelarem o que de mais íntimo têm em si, que circunstâncias determinam que dois homens procurem ultrapassar os seus medos, procurarem libertar-se da solidão que os oprime...?
O Mais Velho e o Mais Novo são dois homens que, numa noite na prisão revivem memórias num diálogo acompanhado pela noite e pela solidão.

Comentário:
 “A derrota, pensou o mais novo, seria aceitável se deixasse um homem sem futuro – o futuro constrói-se, falseia-se – mas deixa um homem sem passado.”
Falecido em 1993 com sessenta e sete anos e tendo sido perseguido pela censura da ditadura salazarista, Sttau Monteiro escreveu pouco. Foi essencialmente dramaturgo, tendo como obra-prima essa magnífica peça de teatro, Felizmente Há Luar. No que respeita à prosa de ficção escreveu e publicou apenas quatro obras, sendo uma delas, de 1966, este E Se For Rapariga Chama-se Custódia.
Trata-se de um relato impressionante de uma conversa entre dois homens, na prisão. Um diálogo que é confissão, desabafo, libertação.
É na prisão que estes homens encontram a paz suficiente para pensar e conversar; no campo o trabalho não lhes deixa tempo para tais devaneios. Mas aqui, entre quatro paredes, o pensamento acarreta a solidão; é por isso que a noite cai sobre eles.
O tom poético da escrita de Sttau Monteiro é encantador para quem lê e reforça o ambiente de doce solidão que os envolve. Porque só nessa solidão podem vir ao de cima os sentimentos.
O quadro é sóbrio e cheio de intensidade dramática; é uma espécie de microcosmos desse universo fascista castrador, aterrorizador, numa realidade de opressão escondida, velada, sofrida na sombra. É neste quadro sombrio e ao mesmo tempo poético que vai emergindo um amor, primeiro nebuloso depois triunfal por Custódia.
A prosa de Sttau Monteiro é também expressão de um profundo humanismo na forma como os homens confessam as suas fraquezas e limitações.
E o valor da solidariedade: Um homem não vive só como um chaparro velho num montado: basta-lhe estender a mão.
Custódia é muito mais que memória; é sonho, futuro e… liberdade. Mas é também memória; uma memória avassaladora, por vezes doentia, perante a qual o discurso de desabafo do “mais velho” funciona como uma catarse e, ao mesmo, redenção de um passado doloroso. No entanto, nas memórias do mais velho mistura-se a dor com a esperança. E há-de ser com esperança que o livro há-de terminar, porque como escrevera Manuel Alegre um ano antes, Mesmo na noite mais triste / em tempo de servidão / há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz não.


domingo, 1 de setembro de 2013

Contos do Caneco - Fernando Évora, João Pedro Duarte, José Teles Lacerda, Luís Miguel Ricardo e Vítor Encarnação

Apresentação:
Em Maio de 2013 o Clube dos Poetas Vivos reuniu, numa célebre tertúlia, cinco escritores cuja vida e obra estão, de algum modo, ligadas ao Alentejo. Os escolhidos foram Fernando Évora, João Pedro Duarte, José Teles Lacerda, Luís Miguel Ricardo e Vítor Encarnação. Foi um fim-de-semana de conversas com leitores, trocas de opiniões, passeios, petiscos e muito mais. Um fim-de-semana inspirador para que esses cinco autores viessem a escrever cinco contos cujo cenário são as terras de São Teotónio e Zambujeira do Mar. Cinco “Contos do Caneco”.



Comentário:
Em boa hora tomei conhecimento deste livrinho de contos, proveniente de um dos sítios mais encantadores de Portugal: a região do Mira. Recebi-o num dia e acabei de o ler 24 horas depois. Só isto diz bem da forma agradável como se lê.
Cinco escritores oferecem-nos outros tantos contos, todos eles com um denominador comum: as terras do Mira; do calor humano de Odemira ao azul mágico da Zambujeira, passando pelas festas coloridas de S. Teotónio e com um saltinho cheio de mistério ao assustadoramente belo Cabo Sardão.
Para mim, pessoalmente, foi um regresso a esse Alentejo tão belo, no seu cantinho sudoeste- Gente pura, gente de trabalho e amizades fortes, todos eles, os alentejanos, estão nestes contos, dando vida a paisagens encantas e searas escaldantes.
Nunca foi um adepto deste género literário, os contos. No entanto, aqui senti-me voltar à grande tradição do conto popular, ouvido com quase devoção na soleira da porta de uma casita branca e azul, ou nas eiras do Minho, em volta de um cesto de espigas de milho acabado de desfolhar. Reerguer este conto popular, parece ser o valor maior desta obra. O conto nascido da emoção, imaginação mas também do sofrimento do povo que somos nós e contado por sábios diplomados pela carta de rugas que trazem no rosto, 
O humor matreiro, bem patente em alguns destes contos é o veículo da sátira, por vezes ligada de forma genial à atualidade deste nosso reyno, assim como a ironia fina, a crítica social, por exemplo com essa figura magnífica que é o Chef Raton do conto “Paris Existe?” são armas de grande alcance nestes magníficos textos.
Talvez não o devesse fazer (porque são cinco contos magníficos) mas não resisto a destacar dois deles porque me agradaram sobremaneira. Refiro-me a Terno Tesouro, pelo espírito de intervenção social a fazer lembrar as cantigas do Vitorino: um patrão que é um símbolo da prepotência dos líderes da ditadura mas também de muitos “coirões” atuais e um operário que luta contra tudo e todos, incluindo a sua própria loucura. E destaco também Paris Existe? Talvez o conto mais elaborado deste livro, com um tom de crítica social divertida e atual, um sentido de humor a que o autor já nos habituou e, acima de tudo, por uma mensagenzinha que me ficou na mente: talvez o destino de qualquer homem seja procurar a sua Paris e talvez ela só se encontre bem junto das suas raízes…
Apresentação e foto de http://www.riomira.com