quarta-feira, 22 de maio de 2013

Viajar na leitura




Às vezes um livro não é mais que um pedaço de mundo que coloco à frente dos meus olhos, como quem quer esconder algo demasiado visível. 
Regra geral é um pedaço de um mundo distante, suficientemente perdido para que não possa ser tangível, para que não possa fornecer a ilusão do realizável. Quero eu dizer: é bom que a fantasia fique claramente definida! Nada de confusões: aquilo é um livro, é ficção, o meu mundo não é aquele. 
Pode até ser tudo muito bonito; pode até ser um conto de fadas, com ou sem saias, com ou sem tentações pecaminosas. Mas é sempre um pedaço de mundo ao qual eu não terei, nunca, qualquer tipo de acesso. A não ser, é claro, por essa via etérea e estúpida que é o sonho.
Sim, pelo sonho posso lá ir. Mas isso é suficientemente estúpido para que eu nem por sombras pense em viajar para o interior do enredo que leio. Isso são coisas do Afonso Cruz…
Então que diabo de feitiço têm os livros de ficção que, sem me fazer sonhar, me transportam para outros lados? Talvez haja mesmo um mundo alternativo dentro dos livros... 
Ou serão eles, apenas (e já não seria pouco) uma forma alternativa de viajar neste mesmo mundo, o mundo real?
Há quem diga que há outra espécie de livros: aqueles que só falam de coisas reais. A tal "não ficção": livros sobre política, economia, ciência... 
Mas sobre esses eu tenho uma opinião muito sólida: não prestam para nada! Para que pode servir um livro se não diz nada que não seja verdadeiro? 
Ainda está para nascer o inteligente que me responda cabalmente a esta pergunta. 
(imagem daqui: http://bibliotecaescolarstoisidoro.blogspot.pt/ )

segunda-feira, 20 de maio de 2013

A Paixão segundo G.H. - Clarice Lispector




Sinopse:
A escultora G.H. conta-nos a sua experiência vivenciada a partir do instante em que entra no quarto da ex-empregada, vê o surgimento de uma barata no guarda-roupa e esmaga-a na porta. Daí em diante, tomada por uma mistura de medo e repulsa, G.H. vive com a barata durante horas e horas a sensação de ter perdido a sua "montagem humana". A incapacidade de dar forma ao que lhe aconteceu, a aceitar este estado de perda, a leva a imaginar que alguém está segurando a sua mão. Desta maneira, o leitor passa a viver junto com a personagem esta experiência singular.
Romance original, desprovido das características próprias do gênero, A paixão segundo G.H. conta, através de um enredo banal, o pensar e o sentir de G.H., a protagonista-narradora.

Comentário:
Com tão pouco se faz um grande livro: uma mulher e uma barata!
Um intenso e profundo monólogo interior. Uma mulher de classe média alta, artista solitária, uma barata esmagada na porta de um armário, o quarto despido da empregada despedida, um intenso e pesado silêncio, uma alma inquieta e um livro, este que Clarisse Lispector compôs como uma sinfonia, cuidado em cada palavra, esmerado em cada vírgula, pensado, sentido, pesado, sofrido.
Mulher e inseto que se fundem devagar, uma mulher cujo passado se desfolha e cuja alma se despe, à medida que a matéria gelatinosa, esbranquiçada e nojenta, sai vagarosa do corpo esmagado da barata. Com Kafka à espreita, um mundo interior vai-se revelando, cheio de chagas, de matéria pútrida, de sonhos que esbarraram na solidão e nas interrogações intermináveis que a existência coloca.
A arte de Clarisse Lispector leva o leitor a, imagine-se, encarar como natural que a mulher acabe por comer a barata! A fusão perfeita; a simbiose entre o humano e o passado que a barata (animal quase fóssil) representa. A identidade plenamente atingida. A resposta a todos os dilemas de G.H.
Perante a barata esmagada assomam à memória de GH os episódios mais negros da sua vida, como o aborto que provocara. A barata torna-se assim testemunha da angústia existencial de GH mas também sua confidente; aos poucos, elas vão-se identificando uma com a outra. O inacreditável começa a surgir na mente de quem lê: GH e a barata terão um destino comum…
A essência procurada através da linguagem no monólogo e a linguagem, lentamente, transformando-se na própria essência do livro, como a massa esbranquiçada que sobressai do corpo da barata de GH comerá, numa ânsia paradoxal de encontrar o próprio âmago do seu ser.
Perturbador, melancólico, este livro faz-nos lembrar, várias vezes ao longo da leitura o existencialismo perturbado de Jean Paul Sartre ou a procura interior em confronto com a frieza do real, de Simone de Beauvoir.

sábado, 18 de maio de 2013

Um Blues Mestiço - Esi Edugyan



Sinopse:
Se não contares a tua própria história, alguém o fará. E possivelmente fá-lo-á mal...
Paris, 1940. Em plena ocupação alemã, Hieronymous Falk, um jovem e brilhante trompetista de jazz, é detido num café, desaparecendo completamente de circulação. Tinha apenas vinte anos, era cidadão alemão e... negro.
Cinquenta anos depois, Sid, antigo companheiro de banda e única testemunha desse fatídico acontecimento, ainda se recusa a falar do assunto. No entanto, quando Chip, outro ex-companheiro, lhe mostra uma misteriosa carta que recebeu de Hieronymous, vivo e de boa saúde, Sid enceta uma dolorosa viagem ao passado. Da agitação dos bares clandestinos da Berlim do início da Segunda Guerra aos salões de Paris, irá reviver a paixão pela música, a camaradagem e a luta diária de então, mas também as invejas, as traições em nome da arte e o sentimento de culpa...
Um romance extraordinário sobre o mundo do jazz, mas também sobre os limites da amizade, o racismo e a fragilidade dos que vivem à margem.

Comentário:
 Em linguagem futebolística, este livro é um penalti falhado. Ou seja, a autora parece ter perdido uma enorme oportunidade de marcar um grande golo. Na verdade, o romance oferece pistas e caminhos que poderiam ter proporcionado uma obra de enorme qualidade; no entanto, na minha opinião, o livro perde muito com uma narrativa demasiado lenta, entrecortada, espartilhada num constante vaivém temporal.
A autora optou por uma narrativa repartida em três momentos da vida dos personagens: a sua juventude, no primeiro quartel do século XX, o momento em que os membros da banda se separam, durante a segunda guerra mundial em Paris e o reencontro entre alguns deles, em 1992. O problema é que os saltos temporais são constantes e muitas vezes apenas contribuem para cortar o ritmo da narrativa e da leitura.
Por outro lado, a demasiada preocupação com a descrição de determinados aspetos, em detrimento de outros, afeta a “economia” da narrativa e torna-a, em muitos momentos, fastidiosa e lenta.
Os pontos fortes do livro, a meu ver, foram mal aproveitados; refiro-me a determinadas ideias base, como o valor da amizade em facetas muito complexas como a importância do remorso e a forma como ele não abala um sentimento profundo, inexplicável, e que se torna verdadeiramente imortal. Quando, na parte final da obra, estas ideias vêm ao de cima, contribuindo até para um final belíssimo, já se tinha perdido o livro, por entre dezenas de páginas que ao leitor parecem estar na fronteira do inútil.
Outro aspeto muito interessante no livro é a forma como a autora utiliza uma linguagem cheia de erros gramaticais, fiel ao falar dos personagens. No entanto, numa breve observação do original em língua inglesa, verifica-se que algo se perdeu na tradução, nomeadamente o falar típico dos personagens afro-americanos.
Finalmente, o aspeto que talvez mais tenha contribuído para o sucesso deste livro: a sensibilidade da autora para compreender e exprimir a força da música, nomeadamente o jazz, um estilo de música onde a alma se sobrepõe às notas; o sofrimento dos personagens, os seus dramas e as suas alegrias estavam naquele trompete.
Em suma, um livro que se lê com algum interesse, num estilo fácil e fluente, mas onde falta o desenvolvimento de ideias que podiam ter feito deste livro uma autêntica obra-prima.

terça-feira, 14 de maio de 2013

O Mestre - um balanço da minha Maratona Saramago




Lidos que foram 15 dos 18 romances de Saramago, mais um livro de contos e uma peça de teatro, senti necessidade de fazer uma síntese para memória futura; assim, deixo aqui a lista dos livros lidos com um brevíssimo comentário em forma de tópicos.
Volto a dizer o que já escrevi muitas vezes: não sou ninguém para fazer crítica literária e muito menos para avaliar José Saramago; o que aqui deixo são apenas impressões pessoais das minhas leituras. A notação reflete apenas o grau de prazer que me proporcionou a leitura.

Caim – Brincando com coisas sérias. Interessante pelo sentido de humor; não acrescenta nada à bibliografia de Saramago. 8.2/10
Objecto Quase – Uma grande surpresa. Contos geniais. Exercícios literários soberbos. 9.6
Levantado do Chão – Pungente, sublime, sofrido. Dói só de ler. 9.7
O Ano da Morte de Ricardo Reis – Arte em estado puro. Genial. Arrojado e vencedor. 9.8
Ensaio sobre a cegueira – mordaz na crítica generalizada a este mundo de cegos. 9.6
A Jangada de Pedra – Criatividade literária e inteligência na abordagem política. 9.6
Manual de Pintura e Caligrafia – Um “treino” para o futuro grande Mestre. À procura de um estilo. Titubeante. 7.8
O Evangelho Segundo Jesus Cristo – Poderoso, atrevido, corajoso. Um Cristo humano, rodeado de humanidade mas também do ódio de Deus e do Diabo. 9.6
História do Cerco de Lisboa – Não gostei e não sei bem porquê. Talvez porque estou formatado para abordagens mais lineares da História de Portugal. 7.7
O Homem Duplicado – Genial. Os duplicados que há em todos nós. Um espelho da nossa alma. Saramago no seu melhor ao nível da abordagem da alma humana. 9.7
A Caverna – Um livro herdeiro do neorrealismo; cativante na sensibilidade humana do Mestre. Pungente. Às vezes comovente. Um final épico. 9.8
Todos os Nomes – um enredo construído de forma genial. Maravilhoso. 9.8
Que Farei com este Livro – Uma viagem alucinante e humaníssima à vida de Camões. O dedo apontado ao obscurantismo que, ontem como hoje, nos destrói a inteligência. 9.2
Ensaio Sobre a Lucidez – critica mordaz ao sistema político mas pouco mais que isso. Um dos livros mesos poderosos de Saramago. 8.8
Memorial do Convento – Único. Épico. Comovente. Maravilhoso. 9.9
As intermitências da Morte – Uma grande diversão sobre a morte. De como é possível rir dela. Acho que foi a rir que o Mestre morreu. Bem haja para sempre, Mestre 9.7


Imagem daqui: http://www.hojelusofonia.com/lusofonia/jose-saramago/

sábado, 11 de maio de 2013

Caim - José Saramago




Sinopse: 
Quem diabo é este Deus que, para enaltecer Abel, despreza Caim? 
Se em O Evangelho Segundo Cristo José Saramago nos deu a sua visão do Novo Testamento, em Caim regressa aos primeiros livros da Bíblia. Num itinerário heterodoxo, percorre cidades decadentes e estábulos, palácios de tiranos e campos de batalha pela mão dos principais protagonistas do Antigo Testamento, imprimindo ao texto o humor refinado que caracteriza a sua obra.  
Caim revela o que há de moderno e surpreendente na prosa de Saramago: a capacidade de fazer nova uma história que se conhece do princípio ao fim. Um relato irónico e mordaz no qual o leitor assiste a uma guerra secular, e de certa forma, involuntária, entre o criador e a sua criatura. 

Comentário:
Este é talvez o livro em que Saramago melhor explanou o seu sarcástico e agudo sentido de humor; um humor à beira do escárnio, ainda mais tratando-se de um tema intocável para o comum dos mortais: a mensagem bíblica. De facto, não fosse Saramago o escritor de nome feito aquém e além-fronteiras e teriam caído Carmos, Trindades, Mosteiros e Catedrais. No entanto, na fase final da sua imensa carreira, Saramago já tinha ultrapassado todas as fronteiras do medo e todos os limites do intocável.
É que, neste livro, é-nos apresentado o Deus do Antigo Testamento, mas um deus (assim mesmo, com minúscula) envolto em sangue e ódio. Na verdade, como o próprio Saramago afirmou, a Bíblia está cheia de violência. E este livro retrata-a nesse aspeto, sem dó nem piedade, da mesma forma que nem o próprio Deus teve dó ou piedade do filho condenado de Abraão, das crianças inocentes de Sodoma e Gomorra, dos pobres habitantes da martirizada Jericó, da família inteira do bom e honesto Job e mesmo a humanidade inteira afogada sob o impiedoso dilúvio.
No mínimo, podemos afirmar que estamos perante a mais refinada arte de brincar com coisas sérias. Logo no início, em contraste com o “peso” do assunto, o tom leve e descontraído da linguagem fica bem patente nestas palavras: “ Deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, adão disse para eva, Vamos para a cama”.
No máximo, podemos dizer que este livro testemunha uma espécie de guerra aberta declarada por Saramago a Deus – um deus maldoso, que sacrifica os seus próprios filhos. Depois de descrever vários episódios bíblicos de extrema violência, conclui Caim: “O senhor deus está louco”.
O clímax das catástrofes bíblicas termina com uma impressionante descrição das desgraças de Job, capaz de fazer refletir o mais determinado dos crentes: ele era um homem trabalhador, bom, honesto e fiel a Deus como ninguém. Então, o diabo, de comum acordo com Deus, tirou-lhe todos os haveres, cobriu-o de chagas e matou-lhe todos os filhos. Deus como aliado do diabo, como se o tivesse de contentar, oferecendo-lhe o sacrifício dos seus fiéis seres humanos. Deus mais o diabo, como se o mal e o bem se fundissem num único ser sobrenatural.
Este é também o livro de Saramago com o final mais estranho: após uma leitura trágica e cómica do dilúvio, Saramago encaminha a humanidade para um beco sem saída…
Em suma: cáustico, é o adjetivo que ficou na minha mente após a leitura: cáustico, mordaz, violento mesmo. Penso que se trata de uma das obras mais emotivas de Saramago mas também uma das menos conseguidas em termos de fôlego literário. Tem a enorme vantagem do sentido de humor, com que ameniza um pouco a extrema violência de algumas descrições. Para quem começa a leitura de Saramago com esta obra, talvez seja um livro muito interessante; no entanto, para quem já conhece as suas ideias e para quem já leu o Evangelho Segundo Jesus Cristo, a mensagem deste livro parece um pouco enfática.
Na imagem: Caim e Abel, quadro de Ticciano, séc. XVI