segunda-feira, 7 de setembro de 2015

O Vermelho e o Negro - Stendhal


“É verdade que posso aqui ganhar alguns milhares de francos, e depois escolher com vantagem a carreira militar ou a de padre, consoante a moda que então reinar em França.” 
Escolher entre o vermelho da farda e o negro da sotaina. É este o propósito de Julião e explicação para o título, ponto de partida para este livro que foi um marco na história da literatura.
Julião representa todo um século em que, mau grado os efeitos da Revolução Francesa, a distinção social continua a ser procurada como forma de afirmação pessoal e onde as desigualdades continuam a ser gritantes. A obra foi publicada em 1830. Estava ainda vivo na memória dos franceses o período de Napoleão, última fase do processo revolucionário que deixou a França dividida em 3 partidos: os bonapartistas, aqui representados por Julião, os velhos revolucionários radicais (herdeiros do espírito jacobino) e os ainda fieis à velha realeza, os conservadores. Julião está entre os três partidos como o livro está entre 3 estilos: o velho romantismo herdado do século passado, o realismo nascente e um romance psicológico que apenas germina nestas páginas pioneiras. Mas já voltaremos a esta questão. 

Comecemos por esclarecer melhor o contexto em que se situa o enredo.
O exército e a religião são as vias de acesso ao mundo do poder e da riqueza numa França que ainda não se tornara o país moderno e justo que os revolucionários sonharam e que Napoleão tentou impor pelas armas.
Julião sabe o Novo Testamento de cor: é nítido o esforço de Stendhal para denunciar a futilidade do conhecimento antigo e do próprio clero tradicional. Mas a aristocracia admira-o! Note-se que Julião, bonapartista, é um fingidor; é alguém que se esforça por alinhar com todas as convenções em proveito próprio, embora seja por natureza e por via do seu passado pobre, um revolucionário. 
Um dos aspetos mais “realistas” da obra é o seu sentido crítico, principalmente perante as instituições ligadas ao poder. O Estado e a Igreja. Por vezes, principalmente no início de cada capítulo, é na primeira pessoa que o autor exerce esse sentido crítico. Um exemplo:
“O procedimento habitual do século XIX é: quando um ser poderoso e nobre encontra um homem de carácter, mata-o, exila-o, prende-o ou humilha-o de tal forma que o outro comete a parvoíce de morrer de dor.”
Outro exemplo deste sentido crítico é a descrição que faz do ambiente do seminário como o pior que há no mundo, em contraponto com a riqueza exagerada da igreja.

E, ontem como hoje, a futilidade das relações sociais e os jogos de interesses. Assim, a crítica social incide sobretudo na futilidade, a vaidade, a corrupção, a ignorância, o desprezo pelo saber e pelas ideias… 
O nosso herói, Julião, luta, à sua maneira, de uma forma subtil, contra a diferenciação de classes; nesse sentido, ele é um produto da revolução francesa. No entanto, as circunstâncias obrigam-no a seguir uma conduta de adaptação ao meio em que vive, profundamente injusto e que segrega precisamente homens como ele – nascidos numa classe social inferior.

Uma encruzilhada entre romantismo, realismo e romance psicológico:
Este livro foi considerado como a primeira das obras realistas. Sinceramente, não iria tão longe. É óbvio que evidencia alguns traços que distinguirão o realismo. Refiro-me à análise social ao espírito crítico no que respeita às condições materiais da existência humana, às já referidas críticas à desigualdade, etc. mas, acima de tudo, esta obra parece-me claramente marcada pelo romantismo literário: ainda há aqui muito do drama de Goethe, com o seu sentimentalismo quase radical; as paixões são exacerbadas e a mulher continua um ser algo amorfo, despersonalizada, cujos sentimentos e comportamentos se subordinam à ordem social vigente. Que longe estamos ainda de madame Bovary! É por isso que afirmo: que longe está Stendhal de Flaubert!
O facto de não ser ainda um romance realista não obsta a que se trate de uma obra magnífica e direi mesmo que é uma obra de charneira; mais do que precursora do realismo é precursora do grande romance psicológico. A preocupação do autor para com as ideias, as intenções, as estratégias de comportamento dos personagens, aproximam mais Stendhal de Dostoievski do que dos realistas. Por outro lado, é fundamental a importância que o autor atribui à formação do carácter na infância e juventude do herói do romance. Julião ficou marcado por uma educação paternal brutal, por uma falta de afeto que afetaria toda a formação do seu carácter. Algumas décadas mais tarde, estes aspetos seriam triviais em qualquer romance mas na época em que Stendhal escreveu, a importância da educação seria algo que não preocupava minimamente a maioria dos escritores, filósofos ou políticos…

Sinopse

Um romance histórico psicológico em dois volumes do escritor francês Stendhal, publicado em 1830. É frequentemente citado como o primeiro romance realista. Definido no período entre o final de setembro de 1826 até o final de julho de 1831, trata das tentativas de um jovem de subir na vida, apesar do seu nascimento plebeu, através de uma combinação de talento, trabalho duro, engano e hipocrisia, apenas para se encontrar traído pelas suas próprias paixões.



quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley

Comentário:
Para compreender este livro é fundamental ter em conta o momento em que foi escrito, ou melhor, o contexto da época. A obra foi publicada no ano de 1932. Trata-se de um momento histórico fulcral: nos EUA e nos países ditos capitalistas viviam-se as consequências da crise bolsista de 1929, ou seja, a grande depressão, tão bem descrita por Steinbeck em As Vinhas da Ira. Foi nessa crise terrível que desembocou o crescimento desmedido em desorganizado dos anos 20, em que pontificou Henri Ford, como exemplo máximo do alienante trabalho em cadeia, parodiado magistralmente por Charlie Chaplin em Tempos Modernos. E é precisamente Henry Ford que Huxley ressuscita como uma espécie de ser superior neste livro. Ford é o modelo sagrado.
Por outro lado 1932 é também o ano de afirmação de Hitler na Alemanha. Aí, como em Itália, na Espanha, em Portugal e na União Soviética pontificava o totalitarismo, que é o outro lado do sistema descrito por Huxley neste livro, transposto para o século XXVI.
Está assim traçado o cenário para a distopia de Huxley: uma sociedade em que os cidadãos são submetidos a um processo de estandardização, como nas fábricas Ford e, afinal, como em toda a indústria capitalista moderna, em que a liberdade é uma ameaça e, como tal, totalmente banida e em que, pela mesma razão se eliminam todos os traços de individualidade. A arte, a beleza, a cultura, são também banidos por colocarem em causa o coletivo em nome da subjetividade. O Selvagem, personagem central do livro e que representa uma “réstia” de seres humanos não condicionados, cita Shakespeare e encara o escritor como uma fonte de verdade e de beleza. O próprio título do livro, irónico, é um verso do grande dramaturgo inglês.
Tradicionalmente, este livro é considerado de ficção científica. No entanto, quando falamos deste género referimo-nos normalmente a obras que retratam um mundo tecnologicamente avançado, num futuro distante. Mas neste livro há duas diferenças em relação ao padrão: o mundo imaginado é uma distopia; o nosso mundo é visto no sentido da perda. Por outro lado, a assustadora mudança que o livro nos mostra é bem real e já neste início do século XXI podemos ver no nosso mundo sinais desta distopia, deste futuro negro que pode esperar a humanidade.
O traço distintivo mais dramático desta obra é a ausência de liberdade e a aceitação geral da ideia de que a liberdade impede o progresso. Em contraponto, advoga-se uma espécie de felicidade coletiva, controlada pelo Estado e fundada sobre o condicionamento do indivíduo. Com uma certa dose de humor, Ford é o Deus. Desta forma, Huxley estabelece a ligação entre a felicidade coletiva e o avanço tecnológico. O problema é que esse conceito de progresso só é viável basado na alienação do indivíduo. Os próprios seres humanos deixam de ser concebidos na forma natural para serem “fabricados” em verdadeiras linhas de montagem, estandardizados à maneira dos Ford dos anos 20 do século passado. Assim, condicionamento, alienação, normalização, coletivismo e submissão são as palavras-chave deste admirável/abominável mundo novo.

Em conclusão: estamos perante uma obra de génio, um clássico da literatura mundial, pela lucidez na análise do presente e do futuro da humanidade e do próprio homem: a demência é o resultado da estandardização e da alienação: o ser humano é reduzido à incapacidade de pensar e de agir de acordo com a vontade. Daí a necessidade de eliminar os sentimentos, substituídos por um prazer artificial, puramente físico, obtido com base nas máquinas e em substâncias artificiais. Obtém-se assim uma sociedade onde não há dor nem infelicidade. Mas onde se perdeu a liberdade, a capacidade de amar e, enfim, a própria humanidade.

Sinopse:
Publicado em 1932, Admirável Mundo Novo tornar-se-ia um dos mais extraordinários sucessos literários europeus das décadas seguintes. O livro descreve uma sociedade futura em que as pessoas seriam condicionadas em termos genéticos e psicológicos, a fim de se conformarem com as regras sociais dominantes. Tal sociedade dividir-se-ia em castas e desconheceria os conceitos de família e de moral. Contudo, esse mundo quase irrespirável não deixa de gerar os seus anticorpos. Bernard Marx, o protagonista, sente-se descontente com ele, em parte por ser fisicamente diferente dos restantes membros da sua casta. Então, numa espécie de reserva histórica em que algumas pessoas continuam a viver de acordo com valores e regras do passado, Bernard encontra um jovem que irá apresentar à sociedade asséptica do seu tempo, como um exemplo de outra forma de ser e de viver. Sem imaginar sequer os problemas e os conflitos que essa sua decisão provocará. Admirável Mundo Novo é um aviso, um apelo à consciência dos homens. É uma denúncia do perigo que ameaça a humanidade, se a tempo não fechar os ouvidos ao canto da sereia de uma falsa noção de progresso.