segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Se Numa Noite de Inverno Um Viajante - Italo Calvino

"Se Numa Noite de Inverno Um Viajante" é um romance inteligente. Mas também divertido, original, único. Lê-se com leveza e um sorriso nos lábios. Sentimos o bafo do autor a pedir-nos opinião, a recitar-nos histórias que só começam, pedindo-nos que as continue. Dez histórias que Calvino só inicia, como se nos quisesse desafiar. Ao longo do livro, o que mais encanta o leitor é este diálogo permanente com o escritor, esta familiaridade que vai surgindo. O leitor vai-se tornando interlocutor e actor do próprio enredo, numa espécie de brincadeira que dá um aspecto marcadamente lúdico à leitura.
O enredo é muito peculiar. Um leitor começa a ler o próprio livro de Italo Calvino, mas não consegue porque a edição é defeituosa. E por acasos do enredo, o leitor é levado a empreender outras leituras mas depara sempre com um qualquer obstáculo que o leva de livro em livro sem conseguir concluir nenhum deles.
Ao longo do livro é notória a crítica à mercantilização da cultura, nomeadamente no domínio da edição de livros e da falsificação. Calvino entra mesmo numa reflexão sobre os apócrifos, encarando a falsificação como manifestação da verdadeira natureza humana e da sua hipocrisia. Por outro lado, aquilo que é falso não deixa de ser encantador; a falsidade é o contraponto da verdade e assim lhe dá sentido. Mas vai muito além disso: a impotência que o leitor sente por não poder terminar a leitura de cada um dos dez livros é acompanhada, frequentemente, pela angústia do próprio escritor, quando não consegue, ele próprio, terminar a obra. Nesse aspecto, este romance sente-se também como um desabafo e, mais uma vez vem ao de cima a cumplicidade entre autor e leitor.
Para o leitor, o envolvimento na leitura permite-lhe entrar num mundo encantado. A leitura altera toda a dimensão da vida do leitor. Enquanto lê, ultrapassa todas as barreiras. E quando a leitura é interrompida, instala-se a angústia e o espírito fervilha em busca de uma continuação. Porque o livro só termina com a morte ou com a persistência da vida. Livros que não terminam são apenas pedaços de vida que não têm princípio nem fim; são mundos sujeitos a múltiplos olhares. Dez livros não são, no entanto, apenas dez mundos. São dez mundos a multiplicar por todos os Leitores e Leitoras.

domingo, 23 de novembro de 2008

Paul Auster - Viagens ao Scriptorium

Cada livro de Auster deixa, no final, a questão que se eterniza: o que vai o génio de Nova Iorque inventar de seguida? Grande contador de histórias, Paul Auster é o escritor que mais caminha para dentro de si, à medida que escreve. Nesta obra lê-se e vê-se o autor, os seus sentimentos, angústias e memórias. Cada novo livro parece caminhar mais um pouco na interiorização. A caminhada começou algures por volta da “Triologia de Nova Iorque”, uma caminhada do mundo para dentro de si. “Viagens no Scriptorium” parece ser, mais uma vez, o fim da caminhada. É Auster em 115 páginas.
As histórias rocambolescas como em “As loucuras de Brooklin”; as coincidências incríveis de que a vida é feita, como em “A noite do oráculo”; os enredos cinematográficos, cheios de imagens escritas quase com magia, como em “Mr. Vertigo” parecem já não fazer parte do universo de Auster. Mais ou menos a partir de “Leviathan” o autor parece ter-se voltado para si próprio, em definitivo. Alguém escreveu que este livro marca o confronto de Auster com a sua própria velhice. Não me parece. Mr. Blank é Auster à procura da sua própria identidade, não a explicar ou a questionar o final da existência. O diálogo interior, a introspecção, a procura do âmago mais profundo da alma humana em confronto com o mundo são temas que, afinal de contas, sempre fizeram parte da obra de Auster mas que apenas germinavam nos seus primeiros livros, para agora aparecer em pleno.
Mr. Blank está sozinho, num quarto-prisão sem saber onde nem quando, nem sequer porquê. É a solidão na sua máxima expressão. Porque estar totalmente só é não saber sequer quem é. Algo no seu passado o levou até aquele quarto. Alguém, algum dos seres fantasmagóricos que o rodeiam, o levou até ali. De entre esses seres alguém o ama, muitos o odeiam. Ele sabe que odeia alguém. Mas não sabe quem nem porquê. Mr. Blank tenta reconstituir a sua identidade. Nunca o conseguirá. Mas a maior angústia não é estar só. É depender de todos os outros: os que o amam e os que o odeiam. É o drama maior do ser humano: os outros são o inferno mas só eles podem dar sentido à sua existência, só eles lhe poderão devolver a identidade.
Por mais introspectivo que este livro possa ser (e é), nem assim Auster prescinde de uma das suas características mais interessantes como escritor: o enorme talento de surpreender o leitor com um final inesperado e belíssimo. Auster no seu melhor. Até ao próximo livro.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

O Idiota - Fiodor Dostoiévski

O Príncipe Lev Nikoláevitch Míchkin (o idiota) é o protagonista desta história. Epilético, ele é vítima da incompreensão da doença por parte da sociedade em que se insere. Após fazer um tratamento na Suíça, regressa à Rússia, onde vive toda uma trama de paixão e ódios. Como é peculiar nos grandes romances de Dostoiévski, aqui se encontram retratados os traços essenciais da sociedade russa do século XIX, com todas as suas contradições e conflitos.
Mais uma vez, realça-se a extrema complexidade psicológica das personagens, como se o seu mundo interior fosse maior que tudo o que constitui o mundo. O Homem é, para Dostoiévski, um emaranhado complexo de sentimentos e pensamentos, de tal forma que o encontro com a identidade é uma quimera para a generalidade dos mortais. O leitor, esse, inquieta-se permanentemente com a inquietação das personagens. Neste mundo interior complexo, ninguém é “normal; a loucura não é atributo do idiota; é denominador comum dos seres humanos. O próprio autor, quando aborda assuntos que o inquietam nunca deixa uma afirmação definitiva; tudo fica a pairar no limbo da incerteza: a dúvida sobre a pena de morte, a perplexidade perante a figura de Jesus Cristo que não venceu a morte, a hesitação entre liberalismo e socialismo versus conservadorismo, enfim, nada é definitivo nem definido.
Perante tantas incerteza, afinal, quem é o idiota? Será o doente Lev Míchkin ou qualquer um dos personagens perdidos e incertos que povoam este magnífico romance?
Ser idiota é, acima de tudo, uma definição social. Lev Míchkin é bom, ingénuo, generoso, logo… idiota. O mundo das aparências burguesas em que se afundou faz dele idiota sem culpa formada; na maior parte das situações ele é bode expiatório, bobo da corte ou instrumento de interesses. No entanto é nele que reside a humanidade; ou melhor, a réstia de humanidade no universo social em que se insere.
Neste romance, talvez mais do que em qualquer outro está bem patente a decepção de Dostoiévski perante a humanidade. O formalismo nas relações sociais disfarça a hipocrisia e uma quase repugnância por qualquer espécie de sentimento. Exemplo disso é a total frieza como é encarada a tentativa de suicídio de Ipolit. Este afirma: “Vou olhá-los nos olhos. Vou despedir-me do Homem”. Aos poucos, durante a longa descrição deste episódio, a “humanidade” vai-se restringindo a Lebdev, o bêbado e a Keller, o ignóbil pugilista. Os outros, os socialmente bem-aceites afastam-se e riem de Ipolit.
Trata-se de uma obra muito profunda e, ao mesmo tempo, bem humorada, onde o autor procura pôr em relevo as grandes contradições do ser humano, questões que para sempre ficarão sem resposta: a natureza do bem, do belo, do mal, do ódio, da aversão, do amor, etc

domingo, 7 de setembro de 2008

Diário do Farol - João Ubaldo Ribeiro

João Ubaldo Ribeiro, um dos mais importantes escritores brasileiros da actualidade foi agraciado com o Prémio Camões 2008.
Trata-se da autobiografia de um padre cuja vida foi orientada para dois objectivos (mesmo o segundo tendo surgido de forma acidental no decorrer da narrativa): matar seu pai e a mulher que o desprezou. O autor do diário, refugiado numa ilha deserta algures ao largo da costa brasileira, é a encarnação do mal. Ele reúne tudo o que pode ser considerado “o mal”. Uma infância difícil, cheia de violência e desamor justifica uma vida voltada para a vingança e a violência. Para o autor, ele encarna, no entanto, tudo o que um ser humano é capaz de fazer, no domínio do mal. Todos nós somos assassinos em potência. Nas condições em que se encontra o Brasil no tempo em que se desenrola a acção, esse “mal” pode vir ao de cima em qualquer altura. Trata-se assim de uma abordagem algo catastrofista da violência que reinava e reina naquele país.
Assim , o Diário do Farol, é um livro sobre a realidade. Porque a realidade, no dizer de Ubaldo Ribeiro, é mais irracional que a ficção porque esta procura a lógica e a credibilidade. Todo o homem encerra em si o bem e o mal. Nesse sentido, Mal e Bem misturam-se; não podem separar-se. O caminho que cada um segue é fruto das circunstâncias e, portanto, do acaso. No entanto, o Mal tem explicação; ele provém da rejeição, da falta de solidariedade e de amor. De facto, o ser humano precisa, acima de tudo, de compreensão e afecto. Foi a falta desses sentimentos que fez do protagonista um verdadeiro demónio.
Para comprovar a interacção permanente entre o Bem e o Mal, na mesma pessoa, a técnica literária do autor faz com que o leitor se sinta, ele próprio odiado pelo narrador, ao mesmo tempo que, em determinados momentos, o leitor dá consigo a simpatizar com o protagonista, o assassino em série. O anticlericalismo e a crítica política, bem como o manifesto contra a desigualdade social são os testemunhos vivos de como a sociedade “provoca” o mal. A injustiça faz despoletar a violência.
O valor mais alto desta obra: o leitor é levado a ver a semelhança entre a sua própria pessoa e o assassino, quase se identificando com ele. O leitor, embora insultado pelo narrador/protagonista/assassino, envolve-se com o Mal, compreende-o e é tentado a aceitá-lo com naturalidade. Ao mesmo tempo desmistifica-se a ideia de que um assassino em série não tem amor-próprio. Acontece precisamente o contrário.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

O Último Catão - Matilde Asensi

Mais um sucedâneo do Código da Vinci? Garantidamente, não! “O último Catão” prima pela originalidade, rigor, criatividade e aquela “leveza” cativante que se sorve do género policial, associada ao encanto do romance histórico. Matilde Asenci é nada menos que a escritora espanhola mais lida na actualidade. Este livro vendeu mais de um milhão de exemplares em Espanha. Estes dois factos são suficientes para tornar incompreensível o ter passado quase desapercebido nas nossas montras.
Trata-se de uma obra de romance histórico puro, com um enredo simplesmente entusiasmante e, na linha do melhor policial, com um final absolutamente inesperado. Um dos melhores desfechos que li nos últimos anos.
Tudo se inicia com o assassinato de um etíope que exibe estranhas tatuagens no corpo: sete letras gregas e sete cruzes. Junto ao corpo foram encontrados três pedaços que tudo indica pertencerem à Vera Cruz, a verdadeira cruz de Cristo. A irmã Ottavia Salina, dedicada profissional do arquivo secreto do Vaticano, acompanhada por um arqueólogo de Alexandria, e pelo capitão da Guarda Suíça do Vaticano, recebe o encargo de decifrar as estranhas tatuagens aparecidas no cadáver. Ao mesmo tempo, iam desaparecendo das mais diversas igrejas, um pouco por todo o mundo, as relíquias da cruz de Cristo. Cabe aos nossos três heróis, guiados pela “Divina Comédia” de Dante, descobrir o paradeiro das relíquias e identificar a seita “criminosa”. Numa tentativa de chegarem até aos culpados, o grupo terá de superar sete desafios, associados aos sete pecados mortais, em sete cidades diferentes: Roma pela soberba, Ravena pela inveja, Jerusalém pela ira, Atenas pela preguiça, Constantinopla pela avareza, Alexandria pela gula e Antioch pela luxúria. A viagem por estas cidades é deveras fascinante.
A imaginação de Asensi é assombrosa: o livro está cheio de peripécias que prendem o leitor de forma avassaladora, de tal maneira que as mais de seiscentas páginas desta edição são devoradas a um ritmo alucinante. Por outro lado, este riquíssimo enredo envolve o melhor de um romance histórico: a fidelidade à verdade histórica; aquilo que não é imaginação, é perfeitamente fiel e autêntico. Ao contrário do que acontece noutras obras do género, é fácil ao leitor distinguir a fantasia do fundo histórico. Sendo uma obra de ficção, este livro permite ao leitor enriquecer o seu conhecimento sobre a história da igreja católica e dos vários conflitos com outras religiões ou seitas divergentes.
Por fim, o aspecto mais polémico da obra: a impiedosa crítica da autora à Igreja Católica, ao seu conservadorismo e aos desvios relativamente à doutrina pura do Cristianismo. O enredo situa-se nos últimos tempos do Pontificado de João Paulo II, época conturbada e especialmente propícia aos jogos de interesses e poder que se desenrolam no Vaticano e que Asenci aborda com coragem e desassombro. Por outro lado, os conflitos pessoais dos personagens vão pondo em questão alguns dos dogmas mais teimosamente defendidos pela Igreja, como o celibato e a castidade.
Em suma, um livro sem grandes ambições estilísticas ou de inovação literária mas que funciona como um maravilhoso exercício para usufruir do prazer de ler: leve, corajoso, divertido, interventivo, crítico e, acima de tudo, apaixonante.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O Mestre de Esgrima - Arturo Pérez-Reverte

O Mestre de Esgrima é um dos primeiros romances de Perez-Reverte e aquele que mais contribuiu para transformar este escritor espanhol num dos maiores nomes da literatura contemporânea do país vizinho.
Relata-se a história de D. Jaime de Astarloa, o mestre de esgrima que luta contra a novidade das armas de fogo e, principalmente, contra o desinteresse dos seus concidadadãos pelos valores tradicionais.
O romance decorre no contexto no final do século XIX espanhol. Vive-se um clima de crise política, marcado, não só pelas dúvidas na sucessão do trono mas principalmente pela corrupção e conluios. Ao mesmo tempo, de França, surgem ventos de mudança que fazem despertar o sonho da república. A guerra civil paira sobre Madrid.
Mas aquilo que mais parece deter a atenção de Reverte é a derrocada dos valores morais e éticos de toda a sociedade. Por todo o lado, reina a hipocrisia, a violência e os conluios.
Sempre crítico perante a evolução histórica do seu país, Reverte não deixa nunca de povoar o enredo com marcas de lamento pela crise dos valores da honra que o levam a dar um tom marcadamente quixotesco ao romance. De facto, Miguel de Cervantes parece espreitar por detrás de todos os cenários descritos neste livro. O próprio D. Jaime parece uma reencarnação sofisticada de D. Quixote, lutando contra o futuro, do mesmo modo que aquele lutava contra os moinhos de vento.
Tentando isolar-se deste contexto adverso, D. Jaime procura a todo o custo manter a arte da esgrima, ensinando os seus cada vez mais raros alunos nas artes do florete e da espada. De entre os seus alunos, surge a bela Adela que despertará as suas paixões e revolucionará a sua vida, envolvendo-o num enredo alucinante, de cariz policial. Adela, qual Dulcineia, é misteriosa e encantadora. É esse mistério e esse encanto que levarão D. Jaime às mais inimagináveis aventuras.
Enfim, um livro que vale pelo característico suspense das obras de Reverte, embora ainda sem o fôlego de “Clube Dumas” ou a descontracção das “Aventuras do Capitão Alatriste”. Não se encontra neste livro grande profundidade literária nem ideias inovadoras. Trata-se acima de tudo de um livro divertido, que se deixa ler com facilidade. Nada mais que isso.

sábado, 2 de agosto de 2008

Léon Tolstoi - A Morte de Ivan Ilitch

Este romance do grande mestre Tolstoi é a prova definitiva de que uma obra-prima não tem de ser um livro volumoso. Em pouco mais de cem páginas nesta louvável edição de bolso, Tolstoi escreve quase tudo sobre a vida. Sim, porque não se trata de um livro (apenas) sobre a morte; como diz A. Lobo Antunes no pequeno e excelente prefácio desta edição, “tudo o que somos [ali] se acha em poucas páginas”.
No entanto, a morte não deixa de ser o centro do livro, ou melhor, da vida. A morte de Ilitch, vista pelos outros, representa a alegria dos que vivem; não só dos abutres que sempre esperam ganhar algo com a morte do outro, mas também por todos os que, perante o fim de Ilitch, sentem a alegria de continuar vivos. No entanto, a morte do outro desperta o medo da nossa própria morte; nesse sentido, agudiza o nosso egoísmo. A curiosidade em tomar conhecimento de todos os pormenores da morte de alguém reflecte a nossa vontade de transferir a ideia de morte para o outro.
Durante o caminho para a morte, ou seja, ao longo da vida, Ilitch vive praticamente obcecado pelo trabalho. Neste aspecto, Tolstoi toca nesse ponto que mais tarde constituirá um dos elementos-chave da obra de Kafka: a perda do sentido da vida entre a rotina e a alienação pelo trabalho. Por outro lado há a competição que arrasta consigo a perda de escrúpulos e a entrada em cena da inveja, transformando a vida numa luta sem sentido. A vida é encarada como um conjunto de elementos alienantes. O próprio casamento não foge à regra: Ilitch vive a sua relação marital como um hábito e um conjunto de obrigações formais e sociais. As relações inter-pessoais, por sua vez, são determinadas pelas exigências das relações de poder e pelas hierarquias. O ser humano é sempre ultrapassado pelo formalismo: a Ilich, enquanto juiz, tal como ao médico que trata a sua doença fatal, interessa mais a formalidade do processo do que a relação pessoal com o ser humano. O médico não trata doentes; trata doenças. O juiz não julga o homem, julga o crime.
Ao longo da doença, Ilitch vai-se transformando num empecilho para os outros. Põe-se aqui em causa toda a natureza essencialmente egoísta do ser humano, causadora da solidão e da carência afectiva que era, ao fim e ao cabo, o maior dos males de Ilitch. Um dos pontos altos desta obra, onde a sensibilidade do autor se exprime com eloquência é o episódio em que Ilitch, quase moribundo e sofrendo atrozmente, apenas encontra alívio quando o criado Guarassim o toca e lhe dedica algum afecto desinteressado. Ele é o único que nada lhe esconde e nada pede em troca. Os outros, todos os outros, escondem a verdade ao moribundo, não por piedade mas por egoísmo e hipocrisia: o objectivo é manter o moribundo afastado, é não se envolver e preservar-se a si próprio.
Perto da morte, resta a solidão – a dor maior! Mas mesmo perto do minuto final, quando as dores físicas e da alma são insuportáveis, Ilitch exclama: “Tudo menos a morte”. É assim a alma humana!
Em suma, trata-se de um verdadeiro tratado sobre a vida. O que é viver bem? Questiona-se Ilitch. O que é uma vida correcta? Qual o padrão a seguir? Terá o mundo o direito de nos dizer como devemos viver e morrer? Talvez cada um de nós deva procurar as suas próprias respostas, para que de repente não nos ocorra aquilo que se passou com Ilitch: “Aconteceu-lhe aquilo que lhe costumava acontecer na carruagem do comboio, quando pensava que seguia para a frente e ia para trás, e de repente descobria a verdadeira direcção”!

terça-feira, 29 de julho de 2008

O Crime de Lorde Artur Sevile e Outros Contos - Oscar Wilde

Não deixa de ser surpreendente o fino e inteligente sentido de humor de Wilde ao longo destes contos, particularmente em “O fantasma de Canterville”. A comédia torna-se hilariante no confronto entre o fantasma de 500 anos e a família americana que, com o seu espírito capitalista americano, comprara o respectivo castelo. Para quem leu, por exemplo “De profundis”, essa carta dolorosa de um homem angustiado, não deixa de ser admirável este bom humor.
No conto principal, que dá título à edição, tudo gira em torno da estupidez. Ou melhor, de como a superstição se transforma em estupidez quando um homem se deixa conduzir por ela. Trata-se da história de um jovem aristocrata, pouco inteligente e supersticioso que procura cumprir a “profecia” de um quiromante, uma vez que tem o casamento marcado e não quer consumar o matrimónio sem “despachar” a profecia. Mas a tarefa não é nada fácil: o quiromante garantira que ele haveria de cometer um assassínio; o problema maior era encontrar um alvo.
Wilde que um dia afirmou que o único pecado é a estupidez, demonstra aqui um admirável espírito crítico ao qual não escapa uma sociedade burguesa sem ideias nem ideais, completamente dominada pela futilidade. O subtítulo deste conto (“Um estudo sobre o dever moral”) denota uma genial ironia acerca do conceito de moralidade: ser coerente com os princípios morais pode revelar-se uma armadilha fatal, quando eles estão assentes em crenças e hábitos.
Os dois contos finais são meros exercícios da fértil imaginação de Wilde. O último deles (“O Modelo Milionário”) demonstra uma faceta pouco conhecida de Wilde: a sua sensibilidade perante a solidariedade social e a filantropia.
A ideia geral que perpassa todos os contos é a dualidade e o confronto entre a aparência e a realidade no que toca à personalidade humana. Há sempre um desconhecido por detrás de cada rosto e o confronto com os outros dá-se sempre ao nível da aparência. Quando essa “máscara” cai, todos nós revelamos facetas antes insondáveis e o misterioso torna-se real.

domingo, 27 de julho de 2008

Gente de Dublin - James Joyce

A impotência perante a dureza da realidade, particularmente no que diz respeito às condições económicas, é o tema central desta obra, um dos primeiros livros do autor de “Ulisses”. A Joyce interessa sobretudo a vida da gente simples de Dublin, descrevendo-se uma cidade pobre e muito conservadora, factores que ditam o peso de uma realidade que oprime os seus personagens.
A tentação de sair da ilha é grande, mas o apego à terra é enorme. Para isso contribui uma mentalidade provinciana à qual Joyce aponta o dedo acusador. No final de cada conto, é a realidade que vence; é o costume, a normalidade, que prevalece sempre! No conto “Graça Divina” esta ideia assume uma forma muito curiosa e original: praticamente o conto não tem um final, na acepção habitual do termo; o encerramento da narrativa dá-se com a mensagem de um padre e tudo fica igual. O problema não tem solução, nunca se resolve, pelo que não há final.
O estilo utilizado por Joyce nestes contos é peculiar: as histórias não têm suspense, não se procuram artifícios para captar a atenção do leitor mas, na realidade, a beleza das palavras cumpre esse papel na perfeição. Nestes contos nada acontece de extraordinário. Mas, ao mesmo tempo, tudo é extraordinário: a realidade é sempre a mesma mas a beleza da escrita de Joyce encarrega-se de nos prender do princípio ao fim. Os primeiros contos são verdadeiramente ingénuos; histórias simples e com enredo quase pueril. Ao longo do livro vai crescendo o simbolismo e a “finura” das mensagens de Joyce. O álcool e a embriaguez, fenómenos integrantes do conservadorismo, estão quase sempre presentes, a contribuir para a vida atribulada e infeliz da maioria das personagens. No conto “Embriaguez” o tema é tratado de forma tão crua e directa que nenhum leitor consegue evitar a comoção. A própria religião, fenómeno tão importante na Irlanda, é outro elemento desse conservadorismo que o autor acusa.
Destaque finalmente para o último conto (“O morto”), que constitui uma formidável reflexão sobre a vida, a morte e o amor; não obrigatoriamente por esta ordem mas constituindo uma triangulação da qual ninguém consegue escapar.
Globalmente, esta obra é mais um conjunto de reflexões ficcionados do que um livro de contos na sua concepção tradicional. Tudo gira em torno de um povo que se limita a cumprir o seu destino, com as suas alegrias simples e as suas dores permanentes. Um obra escrita em tons de lamento mas de onde se eleva um estilo narrativo inovador, anunciando já James Joyce como um dos mais originais e marcantes escritores europeus da primeira fase do século XX.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Salammbô - Gustave Flaubert

Trata-se de uma obra a todos os títulos notável. Depois da polémica com Madame Bovary, Flaubert procurou refugio no romance histórico mas nem por isso conseguiu a fuga desejada. Os seus críticos não lhe deram tréguas e se na obra anterior o haviam acusado de provocar escândalo, nesta houve quem o acusasse de sair demasiado da verdade histórica. Seja como for, a liberdade criativa justifica alguns desvios à verdade histórica.
Salammbô é o nome da filha de Amílcar Barca, célebre conquistador cartaginês. Durante as primeiras Guerras Púnicas, este general teve de contratar enormes contingentes de mercenários que depois se revoltaram contra Cartago. Após um festim comemorativo feito pelos comerciantes em homenagem às vitórias, um dos mercenários, chamado Mâtho, apaixona-se pela bela princesa Salammbô, a filha do general. Consagrada para o culto à deusa Tanit, esta conserva-se pura e virginal, desconhecendo a realidade mundana. Entretanto, tem início a revolta dos mercenários, por não terem recebido as prometidas recompensas, sendo Mâtho um dos seus principais chefes. Amílcar encontra-se fora da cidade, que é cercada pelos milicianos. Tomado por sua paixão desenfreada, Mâtho ocultamente penetra em Cartago, o que resulta no roubo do Zaïmph - o manto sagrado da deusa - e no qual nenhum mortal poderia tocar.
O retorno de Amílcar, marcado pela oposição dos seus conterrâneos, dá início a uma longa série de batalhas, vitórias e reveses… O final é surpreendente e apoteótico.
A imaginação incrível de Flaubert permite descrições notáveis dos ambientes da época. Os costumes, as roupas, os edifícios, as armas, tudo é belamente descrito num estilo muito cuidado. A estranheza dos costumes dos povos descritos é, aos nossos olhos, impressionante. Este aspecto leva o leitor a questionar-se sobre o ponto onde acaba a descrição histórica e começa a fértil imaginação de Flaubert.
As barbaridades cometidas pelos exércitos dão-nos uma noção de terror impressionante. À medida que a acção avança, os exércitos vão-se dizimando, mas os seres humanos que os alimentam parecem sempre renascer das mortandades, alimentando sempre a máquina impiedosa inventada pelo ser humano a que damos o nome de guerra.
Em contraponto com o terror, a riqueza! Impressionante a descrição dos tesouros de Cartago, nomeadamente o tesouro pessoal de Amílcar. Ao mesmo tempo, a eterna desigualdade entre os seres humanos, uma vez que as populações em geral passavam crises frequentes de fome. Um aspecto importante que parece realçar do texto é um certo europocentrismo, em voga na época, que considerava como bárbaro todo aquele que não comungasse dos valores europeus. Mas há uma certa admiração por esta “barbárie”. No final da obra triunfam os Deuses; esses mesmos Deuses que Flaubert descreve como impiedosos, vingativos, assassinos mesmo! Mas o triunfo dos Deuses talvez seja a vitória do destino. Por maiores que sejam as riquezas e as ambições, por mais valentes que sejam os homens, há sempre um destino a cumprir e nada podemos fazer para lhe fugir. Todas as guerras e todas as ambições de riqueza são inúteis.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

A Dama das Camélias - Alexandre Dumas, Filho

Um amor desmedido e uma história trágica: eis os ingredientes obrigatórios de uma bela obra segundo os cânones do grande romance francês do século XIX. Neste livro, impressiona o exagero: do amor desmesurado de Armand, da doença trágica e quase inexplicável de Margueritte e de um ambiente social onde predomina o luxo e a depravação. Margueritte é uma cortesã que alimenta o luxo em que vive vendendo o corpo e a alma a fidalgos endinheirados que povoam a cidade de Paris na primeira metade do século XIX. Armand é um nobre de baixa renda, um jovem que, como muitos outros, procura viver da renda, deambulando pela cidade-luz até cair de amores por Margueritte. Esta, inexplicavelmente, abandona o luxo para se dedicar àquele amor caído não se sabe bem de onde.
No entanto, em breve se anuncia a tragédia, quando surge o famoso triângulo amor-ciúme-posse que conduz à desgraça. Embora com lágrimas e mais lágrimas ao longo de quase todo o enredo, tudo corre pelo melhor até se verificar que a renda de Armand não chega nem para os gastos mais elementares, acrescendo a ira do pai de Armand perante aquela relação com uma mulher cuja vida se situa completamente fora dos limites da decência. Vem ao de cima toda a história mil vezes contada da hipocrisia perante a vida pecaminosa destas damas que alimentam os desejos mais ardentes dos homens mas a quem é negada qualquer aceitação em termos morais. Uma coisa é ser amante, outra é ser mulher em todo o sentido do termo.
Todo o drama acontece quando Margueritte quer deixar de ser amante para ser mulher. A sociedade parisiense, perdida algures entre a moral burguesa e o diletantismo de um quadro mental de Antigo Regime, não aceita o fim da aparência. Tudo corre bem enquanto Margueritte mantém a aparência mesmo que todos conheçam a depravação em que vive. Para lá do amor exagerado e da tragédia quase surrealista a que conduz, fica o retrato de uma cidade onde os valores da própria Revolução Francesa parecem não ter penetrado. Por todo o lado, nobres diletantes vivem das rendas pagas pelo povo explorado e faminto, rendas essas que desbaratam em farras e orgias. É incrível como a tolerância, a liberdade, a igualdade e a fraternidade estejam ausentes de um cenário social que foi o mesmo dos revolucionários, algumas décadas antes.
Outro aspecto que impressiona nesta obra é o sentimento que o próprio Dumas parece colocar na escrita, como se a vivesse por dentro (carácter auto-biográfico?). Por mais inacreditável que seja aquela paixão, tudo se passa como se fosse o próprio autor a vivê-la e a senti-la. O próprio Dumas parece envolver-se num quadro moral beatífico, onde os sentimentos cristãos surgem exagerados e contraditórios.
Em suma, trata-se de uma obra cuja importância se prende mais com o testemunho histórico do que com a qualidade literária. Trata-se de um retrato deprimente de uma cidade perdida nas contradições de uma época e de um quadro social que fica algures entre o aristocrata e o burguês, entre o Antigo e o Contemporâneo.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

A Música do Acaso - Paul Auster

A par de Mr. Vertigo, esta Música do Acaso é uma das raras obras de Paul Auster que segue uma linha bem definida; sem recorrer à sua técnica recorrente de histórias dentro da história, Auster desenvolve um enredo simples e linear. É talvez um dos seus livros mais singelos e menos “trabalhado”.
Escrito em 1990, na primeira fase do percurso literário do autor, aborda a história de um bombeiro nova-iorquino de nome Jim Nashe. Aliás a semelhança do nome talvez denote alguma referência ao músico americano Graham Nash que, além da brilhante carreira militar, foi um activista político nos anos 60.
Jim Nashe tal como o seu quase homónimo, não consegue viver sem a música; é uma mescla de bombeiro, cavaleiro andante, libertino e vagabundo. Nashe, o vagabundo culto que lê Rousseau e ouve Verdi, é a liberdade em pessoa. Mas será que alguma vez foi livre? Esta é a questão central do livro. A liberdade existirá?
Jim deixa-se conduzir pelo acaso mas é precisamente esse acaso, uma força aparentemente aleatória, que acaba por conduzir com rédea curta toda a sua vida. Escravo do acaso pode ser uma expressão definidora de Jim e da sua vida. É nesse sentido que o acaso se confunde com o destino. Serão uma e a mesma coisa?
É por acaso que encontra Pozzi, um amigo de ocasião que num ápice se torna o filho, outras vezes irmão, que Jim nunca teve. Perdido no acaso, facilmente Jim encarna uma outra ideia central que perpassa toda a obra literária de Auster: a perda e a busca da identidade. Nash percorrer o livro à procura de si próprio e de um sentido para o seu percurso errante. Essa procura da identidade faz surgir a obsessão; a vontade furiosa de encontrar um caminho. Na parte final do livro, após ter gasto toda a fortuna herdada, Nashe e Pozzi encarregam-se de construir um imenso muro para pagar a dívida do jogo. Auster a lembrar Kafka: o muro como metáfora da perda da liberdade pelo trabalho; como em A Grande Muralha da China, trata-se da perda da individualidade, esmagada pelo peso de algo superior, seja uma autoridade ou, simplesmente um destino ou acaso. E a solidão. A imensa solidão que só termina com a morte. Mas, ao mesmo tempo, o reencontro com uma certa ordem cosmológica, estabelecida pela racionalidade do transporte e alinhamento das pedras. Mas essa racionalidade é provisória; tanto como a liberdade. No final prevalecerá sempre a solidão. A solidão e a incerteza; como Nashe reconhece, nós não sabemos nada. Somos um imenso zero. No entanto, um zero também pode ser um círculo que contenha o mundo inteiro.
Mesmo numa estrutura linear e aparentemente simples, Auster não escapa da sua própria angústia perante o destino e a natureza tristemente irracional do ser humano. Até ao momento em que. De repente, a música se interrompe.

domingo, 6 de julho de 2008

Capitães da Areia - Jorge Amado

Capitães da Areia é um dos primeiros livros da brilhante carreira literária de Jorge Amado. Em parte devido a esse facto a obra revela uma sensibilidade notável em relação aos problemas sociais causadores daquilo a que hoje chamamos a delinquência juvenil. Mas o “purismo” ideológico de Amado não o leva a uma análise simplista do problema; pelo contrário, ele aborda de forma profunda todas as facetas do fenómeno.
“Capitães da areia” é a designação atribuída a um grande grupo de meninos da rua, na cidade de Salvador, algures nos anos 30. A realidade sócio-económica, dramática, empurra estas crianças para uma vida de delinquência forçada e Amado preocupa-se em explicar racionalmente o fenómeno mas sempre com o acento tónico na responsabilização do sistema capitalista, do enquadramento religioso e mental e do sistema político e policial nas raízes da desgraça.
Os meninos são as vítimas; a polícia defende os interesses instalados de forma descarada; a imprensa dá cobertura ao jogo de influências, encobre e justifica todas as injustiças; a religião católica, hipocritamente, está inserida nesse mesmo jogo de interesses. Por arrastamento, a opinião pública não procura compreender; apenas perseguir e castigar aquelas que são as maiores vítimas da injustiça: as crianças.
Mas, para Jorge Amado, os Capitães da Areia são os heróis no estilo Robin dos Bosques. Roubam para sobreviver; roubam porque a isso são forçados. A vida obriga-os a ser adultos à força.
A obra divide-se em três partes: na primeira descreve-se as histórias de cada menino: Pedro Bala, o chefe; professor, o intelectual e artista; Pirulito, o fervoroso católico, Volta Seca, o afilhado do terrível Lampião, sonha ser cangaceiro e dizimar a autoridade; Sem-Pernas, o menino coxo revoltado e abandonado por todos, Querido de Deus, o capoeirista, João Grande, o da alma grande e mais uma centena de meninos que tem em comum a ausência do carinho materno. Todos eles anseiam pelo carinho de uma mãe perdida ou roubada. Por isso, na segunda parte da obra, surge Dora, a menina que aparece no grupo como a mãe de todos embora tenha a sua idade. É nessa fase que a sensibilidade humana do autor atinge a sua máxima expressão. Dora não é uma menina como as outras; é o ombro que nunca tiveram para chorar; é o amor na sua expressão mais pura.
Na terceira parte do livro, o grupo desfaz-se; independentemente do destino de cada um, a maldade, o ódio e a injustiça persistirão; mas a luta também e, sempre, a esperança num futuro sem exploradores nem explorados, nem autoridade vendida, nem religião hipócrita.

domingo, 29 de junho de 2008

Timbuktu - Paul Auster

Esta interessante fábula de Paul Auster, escrito já na era Bush, em 1999, conta-nos a história de um cão de raça indefinida, um daqueles cães vulgares, Mr. Bones e do seu dono, Willy, um sem abrigo, ou melhor, um poeta, que talvez fosse apelidado de esquizofrénico por qualquer intelectual de pacotilha. Na verdade, nem Mr Bones é um cão vulgar, antes um génio canino, nem Willy é esquizofrénico, antes um poeta incompreendido e rejeitado pela sociedade. Willy, ao rejeitar a herança da mãe, é o homem que recusa o materialismo, logo, o mundo dos outros homens.Willy devia ter sido um grande poeta, mas a doença alterou-lhe os planos e fez com que andasse em de terra em terra, pela costa leste dos EUA. Adoptou Mr. Bones, que passou a ser o seu companheiro, protector e confidente. Mais do que isso: Bones é o amigo; o único amigo, a antítese do ser humano: solidário e disponível. A elevação do cão a amigo perfeito é o reflexo da mágoa de Auster perante a natureza egoísta e materialista do ser humano. O ser humano “normal” recusa a liberdade; Willy rejeita o mundo em nome da liberdade.O cão, dotado de extrema inteligência é o único ser que conhece realmente Willy e nos dá a conhecer todo o enredo. Mr. Bones é cão, por isso não está corrompido pela humanidade. É paciente, fiel, inteligente, autónomo, com personalidade, meigo, altruísta e amigo dedicado – tudo o que um ser humano não é. Mais importante do que ser omnisciente, Bones sabe sonhar. Por exemplo, com Timbuktu, a terra para onde todos nós vamos, depois de morrer, e onde, muito provavelmente, cães e homens falam a mesma língua. Timbuktu é “o oásis dos espíritos”, onde o Universo encontra sintonia e único lugar de paz e felicidade.A escrita refinada, deliciosa, de Auster dá ao livro o tom de uma maravilhosa fábula sobre a amizade, a solidariedade e o sonho. O cão e o vagabundo estão unidos contra o desprezo humano. A loucura de Willy não é mais do que a estranheza de alguém que sonha num mundo de homens vegetais voltados apenas para si mesmo. Com um notável sentido de humor e a sua habitual clareza de linguagem, Auster não deixa de emprestar a determinados aspectos da obra uma carga de simbolismo notável e até algum sentido filosófico. Por exemplo, quando Willy decide compor uma sinfonia de cheiros, o autor delicia-nos com uma série de raciocínios sobre as implicações da arte como fuga ao real, mesmo utilizando os sentidos, como o próprio olfacto, como via para essa libertação. Quando Mr. Bones tem acesso a todos os confortos e riquezas, continua a sonhar com Willy. Ou melhor, com a liberdade, única via para a realização completa do ser humano.Em suma, mais uma obra brilhante de Auster, o nova-iorquino que não quer ser norte-americano.

domingo, 15 de junho de 2008

Balada da Praia dos Cães - José Cardoso Pires

Embora seja muito mais do que isso, a Balada da Praia dos Cães é uma história policial; tudo começa com a descoberta de um cadáver numa praia. A vítima era um militar envolvido numa tentativa fracassada de derrubar o regime fascista português. A partir daí, o enredo decorre em constante feed-back, retornando aos últimos dias do oficial, escondido com três cúmplices que são, ao mesmo tempo, suspeitos da morte do oficial e de envolvimento no referido golpe.Perante este cenário, a Policia Judiciária e a PIDE procuram pôr em campo o seu jogo de interesses, num constante bailado de rivalidades e questões políticas entre as duas instituições. O caso acaba por ser entregue à Judiciária. O agente encarregado do processo, personagem principal do romance, Elias Santana é um português típico: está-se marimbando para a política, julga ter solução para tudo, é desleixado, tem um lagarto como melhor amigo e usa unhaca comprida no dedo mindinho. Portugal vivia numa ditadura posta em causa pela independência da Índia e pela ameaça da guerra colonial. O regime tornava-se obsoleto e cada vez mais repressor. Por isso o tom do romance é sempre sombrio e o retrato social apresenta-nos uma realidade dominada pelo medo, pelas intrigas políticas e por uma sociedade de aparências forçadas.O crime em si mais não é do que um pretexto para que os cuidades de “segurança” do regime escondam o crime maior: o de um regime repressor e baseado no medo. Os suspeitos são as vítimas desse crime maior. O castigo imposto a estes suspeitos é o castigo imposto a toda a sociedade; a um país reprimido, manietado, assassinado. No final não há redenção nem compaixão; apenas solidão.O próprio Elias Santana, mais do que um agente da autoridade, é uma vítima aquém não é permitido ter uma opinião nem muito menos uma vida própria; ele é o braço do sistema e por isso depende de tudo quanto o condiciona. O medo e a solidão são, também para ele, os denominadores comuns de todos os aspectos da vida.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Mr. Vertigo - Paul Auster

Mr. Vertigo é uma das obras mais peculiares de Auster; trata-se de uma espécie de fábula moderna onde o impossível se realiza e os sonhos ganham forma; aqui o humano mistura-se com o misterioso e a vida saltita entre o mesquinho e o irreal. Nunca em toda a bibliografia de Auster se chegou tão alto no domínio da fantasia e da imaginação. Trata-se da história, contada pelo próprio, de um ancião que faz o feed-back de toda a sua vida, desde os tempos em que usava voar até ao momento em que, já idoso, recorda todos os altos e baixos da sua vida, da vida da América. Walt é o rapaz Prodígio que, conduzido pelo seu Mestre, Yehudi, aprende a voar e mostra que, afinal, isso é até coisa pouca para um ser humano. Após uma experiencia dura de aprendizagem, ele torna-se o ídolo da América. Até à queda; e daí ao renascimento; até nova desgraça; e de novo o ressurgimento; até ao fim…Walt sonha e isso fá-lo voar. Mas só após o sofrimento; um imenso sofrimento que mestre Yehudi lhe apresenta como o preço da felicidade. Walt, um indigente, pobre e renegado, vive e realiza o seu sonho com a ajuda de uma índia velha, um negro e um judeu húngaro (o mestre); os heróis são aqueles que surgem das minorias mais reprimidas, mais espezinhadas sobre quem tombou toda a gloriosa história da América. O desejo de voar é o desejo de redenção por parte dessa América assombrada pela história de violência e injustiça. A chacina dos Índios, a perseguição aos judeus e o ódio aos judeus são as manchas que ensombram a Liberdade. Aliás, é a própria Ku Klux Klan quem dá um dos maiores passos para a desgraça do Prodígio. O Mestre, o homem que só lê Epinosa (judeu de origem portuguesa), representa a fusão entre o espírito materialista americano, o homem que quer ganhar rios de dinheiro, e o espiritual, o homem que sabe que o querer faz-nos voar. Quantas desgraças sofreu o Mestre; mas a ambição é maior e Yehudi mostra-nos como a maior e mais nobre das ambições é, afinal, aquela que não se transforma em dinheiro. Walt passou a vida a subir e a descer. Mas descer é muito mais fácil do que subir ou manter a altitude. Na vida como na magia. Na América como em nós. Em rodapé comum a todo o livro, o hino à amizade que Auster nos entoa. Com firmeza e sentimento; com a sua peculiar frieza narrativa mas sempre com aquele toque de humanidade que faz de Auster um dos expoentes máximos da literatura contemporânea.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Leviathan - Paul Auster

Peter Aaron, o narrador, lê a notícia de que um homem não identificado explodiu numa estrada do Wisconsin. Só ele sabe tratar-se de Benjamin Sachs, o seu melhor amigo e um promissor romancista. A partir desse momento, Aaron impõe a si mesmo a árdua missão de desvendar o mistério que envolve a vida e morte de Sachs, empreendendo uma jornada que é, simultaneamente, uma autodescoberta. Com o objectivo único de repor a verdade, revive a amizade que o ligara durante quinze anos a Sachs.
Não se trata de uma das mais bem conseguidas obras de Auster, longe da genialidade de “A Triologia de Nova Iorque” ou da profundidade de sentimentos de “Inventar a Solidão”, até porque se trata de uma das suas primeiras obras. Mas é um livro que revela já aqueles que viriam a ser os traços mais marcantes da obra deste genial escritor nova-iorquino. Desde logo, todo o enredo é marcado por esse tema central do Universo de Auster: a procura da identidade: Peter procura conhecer Sachs procurando por si próprio; a irresistível tentação de conhecer o outro, aliada à quase impossibilidade de compreender a alma humana. O “outro”, neste caso, Sachs é o eu-sombra, aquele que funciona como imagem projectada do narrador. Por outro lado, como em toda a obra literárias de Auster, a crítica mordaz à mentalidade, aos costumes, ao pensamento político e às estruturas sociais da América conservadora.
O tema “terrorismo” e a procura das suas causas profundas surge como consequência de uma sociedade ultra-conservadora e ao mesmo tempo injusta, que despreza valores como a solidariedade e a preocupação pelo outro. Muitos anos antes do 11 de Setembro, Auster anuncia, pela acção de Sachs, um bom homem, as consequências dessa degenerescência social. No domínio dos sentimentos, é um livro sobre amizade, amor e a traição: a complexidade dos sentimentos humanos e o limite ténue entre o amor e a traição, com o desejo a funcional como fiel da balança. Uma escrita predominantemente narrativa mas profunda e complexa. Finalmente, realce, como sempre, para a enorme habilidade de Auster como contador de histórias. O imprevisto do quotidiano que transforma a vida numa sucessão de contradições e mistérios. A bizarria das coincidências revela essa mesma complexidade. Como é próprio de Auster, a incerteza e o mistério do enredo levam o leitor a folhear até à exaustão, levando ao expoente máximo o prazer de ler.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

De Profundis - Oscar Wilde

Escrito na prisão, onde “contava o tempo pelas pulsações da dor” (pág. 33), De Profundis é uma extensa carta dirigida a um amigo especial, alguém que acompanhou Wilde nos momentos de paixão e devaneio em que a sua vida foi fértil. E foi esse amigo quem o conduziu à prisão ao convencê-lo a fazer frente em tribunal ao seu pai, um Lord da alta sociedade inglesa.
Trata-se de um tremendo hino ao esteticismo que o autor cultivou e que aqui exprime da forma mais contraditória possível: toda a beleza, toda elevação da arte contrasta com uma angústia gritante perante o destino que o conduziu à desgraça. A arte assume aqui a forma de dor. A vida desvairada e intensa de Wilde dá aqui lugar a uma imensa melancolia e uma indisfarçável revolta perante um mundo que não o compreendeu minimamente. Por isso, Wilde balança constantemente entre um ego poderoso, um auto-conceito que o leva a colocar-se nos píncaros da arte e uma sensação de desprezo perante ele próprio no que toca aos sentimentos e à forma como os geriu. Ao longo do livro, bem distante do tom optimista de “O retrato de Dorian Gray”, são recorrentes os lamentos e o desespero de um homem que não soube viver e de um artista de génio, incomparável e único. “O supremo vício é a vulgaridade” (pág. 13). O grande pecado de Wilde foi confundir o amor com o prazer e assim caiu na vulgaridade. Aqui Wilde encontra a contradição suprema que o conduziu ao desespero: a contradição entre a beleza da sua arte e a fealdade do mundo que construiu e no qual se sepultou. Foi o factor humano que arruinou a sua arte – crime supremo, este de transportar a vida para a arte que, na sua pureza e perfeição deveria sempre manter-se muito acima do mundo mortal. “Era o triunfo da natureza menor sobre a maior” (pág.23). É ao desprezar e lamentar essa vida gasta no prazer que Wilde valoriza o sofrimento como caminho para uma espécie de contemplação da beleza. Os devaneios e reflexões de Wilde conduzem, por exemplo a uma interessantíssima leitura da vida e obra de Jesus Cristo que identifica como um ideal de beleza, perfeitamente identificada com a dor. Em suma, uma obra que traz à superfície o lado mais negro de Wilde - a decepção perante um mundo que não compreende o génio.