terça-feira, 28 de agosto de 2007

O Velho que lia Romances de Amor - Luis Sepúlveda

Não se trata de uma obra de grande fôlego, a julgar até pela sua brevidade: 121 páginas que o Circulo de Leitores complementou, nesta antiga edição, com o conto “Mundo do Fim do Mundo”. Mas as limitações da obra não se reduzem ao factor “quantidade”. Não há aqui um propósito de escrever um romance mas apenas um conto ilustrativo da importância da preservação da floresta amazónica. O livro, dedicado a Chico Mendes não tem grande mérito em termos de criação literária. Tem, isso sim, uma mensagem importantíssima: ninguém consegue vencer a natureza. Podemos e devemos viver com ela mas nunca contra ela. Os animais e os elementos, ao oongo do livro, como que “troçam” dos homens, brincam sadicamente com eles antes de, invariavelmente, desferirem o golpe final. O convívio com a floresta, protagonizado pelo velho José Bolívar Proaño, é visto como um acto de submissão do homem à natureza. Proaño não tem medo da floresta. Tem-lhe, isso sim, um imenso respeito. E só esse respeito lhe permite viver feliz e em comunhão com animais ferozes e todo o tipo de perigos. Mau grado as contínuas ameaças dos exploradores americanos e das autoridades políticas sul-americanas, os bichos e os índios sobrevivem e triunfam. A escrita é simples e muito bem-humorada. Um estilo delicado e fácil que permite uma leitura rápida e agradável. As personagens, tipicamente sul-americanas, permitem ao autor introduzir deliciosas rábulas de humor quando confrontadas com a civilização distante que só conhecem por testemunhos indirectos. É o caso das deliciosas interpretações que os habitantes de El Idílio fazem de uma descrição da cidade de Veneza. Proaño, um velho viúvo solitário lê romances de amor para enganar a solidão mas também porque prefere a distância em relação a esse mundo “civilizado” que ele não gostaria de conhecer. O sonho é sempre preferível à realidade. Os índios (os Xuares, com quem Sepúlveda chegou a viver) são descritos de uma maneira muito simpática, seguindo o velho padrão do bom selvagem que vive feliz em comunhão com a natureza. Em suma, um livrinho muito agradável que compensa a falta de riqueza literária com a ludicidade da escrita e o valor de uma mensagem que, cada vez mais, devemos ter presente.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo - António Lobo Antunes

A leitura como um jogo. Um desafio e uma construção. Um passeio literário que transporta o leitor para o verdadeiro prazer de ler. Eis o verdadeiro Lobo Antunes. Memórias nostálgicas de África, um tema quase obsessivo em Lobo Antunes. Mas também uma perspectiva crítica mordaz á forma como Portugal procurou tirar de África, a todo o custo, os seus melhores recursos, mesmo à custa de vidas humanas, barbaramente desperdiçadas. Deambulando entre uma escrita profundamente melancólica e um sentido de humor discreto mas eficaz, o Autor presenteia-nos com uma obra complexa mas de uma qualidade literária apenas ao alcance desse pequeno grupo de escritores a que podemos chamar “génios”. Agentes mais ou menos secretos, portugueses, cobiçosos, meros paus-mandados de uma cobiça maior, à procura de alvos difusos. Personagens vulgares, joguetes do poder viajam para Angola, sempre com o mesmo fito: os diamantes, réstia valiosa de um poder decrépito mas sempre desumano. Os Portugueses, os cubanos, os americanos, sempre os americanos, juntos numa amálgama de desespero e ambição. Vidas que se perdem ao serviço de uma causa dita maior. Seabra, Migueis, Morais, Gonçalves, Tavares, ati-heróis, desgraçados ambiciosos e manipulados são gente como nós, gente simples, vítimas de um mundo onde reina a desumanidade. Manipulados pelo misterioso “serviço”, herdeiro de uma colonização mal desfeita, os seus enviados são consecutivamente impedidos de regressar a Portugal. A terra de Angola, vermelha de sangue, funciona como uma força de atracção que os impede de regressar. O romance é apresentado em três livros com prólogo e epílogo. O estilo inconfundível de Lobo Antunes, com a multiplicidade de narradores, envolve o leitor numa trama complexa mas apaixonante. Numa obra com 573 páginas, é espantosa a forma como o autor conduz o leitor a um ritmo de leitura vertiginoso. Na verdade, a escrita de Lobo Antunes, segue a velocidade do pensamento: temas que se misturam, personagens que se multiplicam, enredos que se entrelaçam de tal forma que é ao leitor que cabe compor as peças do puzzle. Dominando como ninguém a língua portuguesa, Lobo Antunes, na sua característica modéstia, lamenta-se constantemente da falta de palavras para descrever situações e sentimentos. Curioso facto, este: um dos maiores escritores de sempre da língua portuguesa, lamenta-se da falta de palavras! A explicação é simples: se bem que a máquina institucional que submerge os personagens seja imensa, e por mais simples e vulgares que sejam as pessoas, o seu interior, os seus pensamentos e sentimentos são sempre imensos. Neste sentido, poderemos talvez adjectivar a escrita de Antunes como intimista: parece haver um esforço incontido de escalpelizar ao máximo todo o espírito humano. Mas o ser humano é tão grande e profundo que as palavras não chegam. Nem ao génio. O epílogo, escrito sob a forma de uma redacção escolar infantil, é um texto de uma excelência literária espantosa. Vem ao de cima a crítica da ambição e do poder e todo o humanismo que caracteriza a escrita de Lobo Antunes. Para ler, reler, guardar e mais tarde reiniciar o ciclo.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Ontem não te vi em Babilónia - António Lobo Antunes

Este livro, às vezes, é como que um bailado de pensamentos, ondulando suavemente entre as páginas, percorrendo linhas e dançando perante os nossos olhos; saltitantes, esvoaçando para dentro dos nosso próprio cérebro, pensamentos que se misturam (os nossos e os dos outros, das personagens e do autor) num livro que se faz e refaz a cada instante, num imenso puzzle a construir por quem lê porque o autor, esse, já fez a sua parte. Um livro onde nunca nada está acabado; nem as frases, nem as ideias, nem a descrição, que narração não importa. Outras vezes, este livro é o turbilhão das dores e angustias, esse somatório desordenado a que alguns chamam sofrimento. Bocados de humanidade. Tempestades de dor, é o que é! Emaranhados confusos de sonhos e pesadelos, cores impetuosas de um quadro surrealista, talvez de Dali, manchadas de sangue e de lágrimas, luzes perdidas no escuro onde se pode ler a vida. Vida entre sonhos, fantasmas, ilusões, fantoches, trapos de bonecas, muros e grilhões de Peniche, onde a maré afoga o sonho. Dois, quatro, oito, dezasseis (não interessa) personagens evoluem numa única noite de insónia e vão passando, à vez, pelo palco da vida, das letras que deciframos. Muitos narradores, uma única noite de insónia. Insónia de cada um, uma noite/vida que é de todos (personagens, autor, leitor – sim, o leitor a tomar parte no banquete da insónia) emaranhados numa única solidão, num contar de tempo que pouco importa, duas quatro, oito, dezasseis vidas perdidas; duas, quatro, seis, oito, horas tanto faz, vidas rasgadas por sonhos/pesadelos, lutas, derrotas, um tempo que não interessa, um país que quase morreu ou quase viveu (riscar o que não interessa). Memórias sombrias, cinzentas, lentas, tortuosamente lentas de um cárcere chamado alma, ou vida, ou passado, também não interessa, o que interessa sim é a esperança – isso, a esperança, isso de que o livro não fala, isso de que o António se esqueceu…… pois……Foi de propósito, não foi, António? Porque isso não existe…… Existe a morte. E a pior de todas elas: a morte na vida; uma morte, uma vida, dezasseis vidas, uma noite – o escuro. Uma frase final: linha 13 parágrafo talvez terceiro, página 479: “porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro”; uma verdade (ou mentira, tanto faz, o leitor é que sabe); talvez verdade na medida em que no escuro se lê o pensamento e é disso que é feito este livro inteiro – 479 páginas de dor, desalento, sofrimento sem redenção, personagens que não heróis, enredo não estória, tramas confusos como pensamentos que se misturam e um leitor que não sabe a quantas anda porque assim é a vida e, muito mais, assim é quem pensa, quem sente as dores de viver. 479 páginas apenas mas que continuam. Talvez na página 1, num ciclo de gerações que não acabam na noite, que sobrevivem na insónia e se multiplicam na aurora. Porque a insónia é eterna. Uma prisão, uma macieira, um quarto de não dormir, pouco importa quem escreve, pouco importa onde (algures a montante da morte), Babilónia, Lisboa, Évora, Peniche, riscar o que não interessa, algures onde tu não estás, onde talvez nunca ninguém tenha estado, nalgum sítio perdido a que alguém possa um dia ter chamado felicidade, que é uma espécie de luz dos planetas extintos. O que fica, afinal? Talvez o génio. A arte de embalar o leitor no pesadelo. António Lobo Antunes e nós à espera da página 480.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

As Loucuras de Brooklyn - Paul Auster

Antes de mais, uma chamada de atenção para o facto de o título original ser muito mais sugestivo: The Brooklyn Follies. No entanto, a palavra "Follies" é, como se compreende, de difícil tradução, pelo que se compreende a solução adoptada ("Ilusões"). Aliás a tradução do habitual tradutor de Auster para a ASA (Pires de Lima) parece-me muito boa. Pelo menos muito atenta, com notas de rodapé muito úteis. As Loucuras de Brooklyn confirma a fixação de Auster num estilo preponderantemente lúdico e narrativo. Atingindo a maturidade como escritor, parece ter neste romance atingido aquele ponto em que já não precisa de inovar. É, por isso, talvez, o romance mais bem conseguido deste nova-iorquino que não norte americano (palavras suas). É, seguramente, o seu livro politicamente mais interventivo e comprometido desde a Triologia de Nova Iorque. Todo o pano de fundo é preenchido pela Nova Iorque dos anos 2000 e 2001: desde a reeleição de Bush à tragédia do 11 de Setembro. Fica mais uma vez clara a revolta do autor perante os caminhos sórdidos e absurdos da política norte-americana, não hesitando em deixar clara a fraude eleitoral cometida pelo partido republicano. Mesmo assim fica a ideia de que Nova Iorque pré-11 de Setembro é um sítio feliz. Magnifica a descrição da gente simples da grande maçã, que Auster admira profundamente. Aí reside grande parte da genialidade deste livro: a maneira eficaz como se conta histórias simples, de gente simples. Neste romance, ao contrário do habitual nos livros de Auster, o protagonista não é escritor. Nathan Glass é um apaixonado pelos livros que, na fase final da sua vida, vítima de uma doença grave decide mudar-se para Nova Iorque a aí procurar um final de vida tranquilo. Mas não é tranquilidadde que ele encontra; encontra os problemas e as peripécias de gente simples a quem acontece um pouco de tudo. Envolve-se com personagens estranhas mas autenticas, quase diria estranhamente reais: homosexuais, assassinos, pobres desgraçados de minorias étnicas, ricaços desprovidos de ética e inteligência e um sobrinho vítima da vida que lhe reabre a porta da família e o enreda em novos laços de ternura que Glass julgava já impossíveis de recuperar. É o ranascer para a vida, é a redenção sempre presente nos livros de Auster: a solidão como caminho para a felicidade, mas sempre uma felicidade difícil, só conseguida por árduas lutas interiores e perante os outros. A afirmação do ser humano como único, só é possível perante uma sociedade que, à partida, o despreza. Mas, neste livro, parece haver um pouco mais de luz do que nas obras anteriores, mais sombrias e pessimistas. Um final feliz na medida do possível, compensam a tragédia que persiste, a espaços, na vida.

O Livro das Ilusões - Paul Auster

Nesta obra, o melhor escritor norte-americano da actualidade põe em cena todo seu conhecimento e sensibilidade cinematográfica, herdadas da sua vasta experiência no género, como realizador e argumentista. Aliás, não deixa de ser curioso que o filme baseado neste livro, a estrear em breve, tenha sido rodado em Portugal, o que prova mais uma vez a predilecção de Auster pelo nosso país. Neste livro, narra-se a vida de um homem que, depois de passar pela dolorosa experiência da morte dos filhos e esposa, se dedica por inteiro à escrita, nomeadamente à reconstituição da vida de um génio do cinema mudo, Hector Mann, misteriosamente desaparecido. Na primeira fase do livro, é tocante a forma como Auster sente e exprime a crueza do sofrimento humano e da solidão. A revolta invade o próprio leitor, perante a crueldade do destino do personagem principal. A partir daí, toda a escrita de Auster embeleza de forma genial a passagem gradual da tragédia à procura da motivação pela vida. A solidão dá lugar à esperança. A tristeza dá lugar ao frémito que impede de pensar, esse "stress" que dá à vida aquela velocidade que nos aliena mas que, ao mesmo tempo, nos anestesia perante a tragédia. Tal como noutras obras de Auster, também aqui perpassa a ideia de que não pode haver felicidade sem sofrimento. Assim, David Zimmer procura uma espécie de redenção perante o passado e fá-lo através da escrita. Mais uma vez, um tema querido a Paul Auster: o próprio acto de criação literária; a envolvência do escritor na obra criada e a amálgama entre o criador e a criação. No final fica o optimismo mau grado o tom trágico que percorre toda a obra. Há qualquer coisa de mágico em Auster: a vida é dolorosa mas preciosa. As alegrias são efémeras mas singulares. Estas ideias, tão caras a grandes escritores que, sem dúvida influenciaram Auster (Dostoievski, Kafka…) são envolvidas numa das maiores qualidades do autor: a sua magnifica vocação de contador de histórias; a sua capacidade de expressão narrativa faz dos seus livros magnificas fontes de entretenimento, retirando a literatura daquele aspecto enfadonho e pseudo-intelectual em que, infelizmente, muitos autores actuais se sepultam.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

A Estrela de Gonçalo Enes - Rosa Lobato Faria

Trata-se de uma obra leve e descontraída sobre a vida e aventuras de dois personagens quase esquecidos da História de Portugal, mais especificamente da época das descobertas. São personagens reais se bem que quase todo o enredo seja ficcionado. Gonçalo Enes ficou na História pela descoberta das grutas de Tassili N’Ajjer. Trata-se de um jovem órfão de pai nascido e criado na aldeia algarvia de Bensafrim. Encantado pela estrela Sirius, que o ilumina e encanta durante toda a vida, o jovem Gonçalo, desiludido por um amor impossível, abre o seu destino às incríveis aventuras do Império que El-rei D. Afonso sonhava construir. Pelas aldeis indígenas de àfrica, pelas cidades encantadas de Marrocos, pelas areias misteriosas do deserto, Gonçalo leva consigo o espírito de aventura e coragem que transformou este pequeno país num mundo inteiro de esperança e riqueza. Fica, desta “estória”, o encanto de um tempo ido, em que a pobreza se enganava com sonhos grandes, do tamanho do Império. Um liuvro belo e fresco, descontraído, sem ambições mas que encanta pela extraordinária simplicidade e singeleza da escrita de Rosa Lobato Faria; uma escritora que tem o dom de encantar pela sua escrita simples e pura. Gonçalo, mal-amado e desprezado, vive no sonho, mas um sonho que o faz feliz. A amizade, a camaradagem, a fidelidade ao sonho são valores que fazem dele um herói, mesmo que esquecido pela História, como tantos outros que, anonimamente, construíram as páginas mais brilhantes da nossa história.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Memórias das Minha Putas Tristes - Gabriel Garcia Marquez

Com as suas singelas 105 páginas, este livrinho lê-se facilmente em poucas horas. Uma leitura leve, divertida mas nada fútil. O início a obra é, no entanto, propositadamente enganador, de forma a quase assustar o leitor perante o choque destas palavras: “No ano dos meus noventa anos quis oferecer a mim mesmo uma noite de amor louco com uma adolescente virgem”. O choque é brutal mas passageiro; na mente do leitor paira o espectro da pedofilia e, por um momento, duvidamos da sanidade mental do autor. Mas, à medida que as páginas vão evoluindo, vamo-nos a percebendo que a prosa se transforma num belo poema sobre a vida. Uma reflexão aligeirada pelo prazer de viver mas sempre humana, sempre profundamente humana! Aos noventa anos, o narrador, escritor e jornalista de profissão, nunca tinha tido sexo sem pagar. Mas o momento de maior loucura, já mergulhado na velhice, é o momento do amor. Pela primeira vez na sua vida, aprende a amar. Mas um amor singelo, puro, sem sexo nem qualquer espécie de despudor. Pela prmeira vez, ele é feliz. Esta “aparição” é o motivo para uma reflexão profunda sobre o sentido da vida. Os obstáculos imensos que se interpõem entre ele e a sua jovem amada poderiam, à partida, contribuir para um tom negro e pessimista do livro. Mas não; todo o enredo tem a ver com a alegria de viver, com o prazer de estar vivo e usufruir do mundo. Ao longo da reflexão que o narrador faz sobre a sua vida prestes a terminar, não há um lamento, não há um arrependimento, como se tudo o que acontece tenha a marca da inevitabilidade, mas sempre num sentido positivo, de gratidão perante o destino. Tudo é celebrado, nada é lamentado.