domingo, 23 de agosto de 2009

O Tambor - Gunter Grass

“O Tambor” é a história de Óscar, um jovem que a vida fez anão, disforme e desprezado, na cidade de Danzig, a moderna Gdansk. Óscar, internado num hospital psiquiátrico após a segunda guerra mundial narra a história da sua vida, desde o nascimento no meio rural da Alemanha dos anos 20, até que a loucura da humanidade se confunda com a dele próprio e o encerre com os grilhões da normalidade. Nesse cárcere final Óscar revive o passado como se fosse o tambor a contar-lhe a história; na verdade, ele confunde-se com o próprio tambor que o acompanhou durante toda a existência. Ao longo da obra, Grass coloca várias vezes o tambor a falar na primeira pessoa, confundindo-se ele próprio com o personagem principal.
À medida que Óscar vai tocando tambor, vai-se apercebendo que ele se torna um instrumento de poder, como a flauta de Hemlin. É ele que faz o povo chorar, como a cebola que se descasca. É a ele que o povo segue, como os ratos seguem o flautista. É a sátira ao poder mas, principalmente à fraqueza de espírito de um povo despersonalizado, anónimo e apático. É a crítica à indiferença do cidadão comum perante as atrocidades da guerra. Óscar simboliza essa massa anónima que “toca tambor” enquanto a matança prossegue.
Óscar é um personagem frio, completamente imune a qualquer sentimento, exptuando o amor pela mãe. Pormenor marcante da narrativa: Óscar entrega o pai adoptivo, bem como o pai verdadeiro às tropas nazis sem qualquer piedade. A sua aparente loucura não é mais do que uma estratégia de sobrevivência.
Num mundo marcado por uma guerra em que se matam freiras que se confundem com franceses, e que perante as atrocidades de Hitler um povo toca tambor, o surreal emerge da superfície real das coisas. E a vida sobrevive, o sentido das coisas passa apenas por aquilo que está “à mão”, nada mais interessa; nem a Pátria, nem a família nem qualquer Deus. Tudo vive ao ritmo do tambor.
Ao longo de toda a obra, Grass deixa bem vincada a sua mordacidade, a sua escrita quase cínica, em busca do grotesco que emerge da vida. Toda a realidade se confunde com o grotesco e o fantástico, sem nunca sair da mais banal sobrevivência quotidiana. Por todo o lado, o sofrimento, mas um sofrimento normal, habitual, como se a vida não tivesse sentido sem esse sofrer. Nem que seja preciso descascar cebolas para chorar ou maltratar uma mulher para a amar. O sofrimento caminha sempre lado a lado com a vida e a felicidade.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Jesusalém - Mia Couto

Jesusalém é a história de Mwanito, o menino. Um menino em África, terra de guerra, solidão e encanto. Jesusalém é também a terra sem tempo inventada por Silvestre Vitalício, pai de Mwanito que, fugido da cidade, procura a libertação numa antiga propriedade colonial. Junto com eles segue Ntunzi, o irmão mais velho e Zacarias, o antigo soldado que combateu do lado errado de todas as guerras.
Vitalício foge da cidade mas também da vida, da culpa e do tempo. Jesusalém seria a terra sem tempo nem dono, onde a solidão resgataria todas as mágoas. Ali, onde não há mulheres nem mundo, tudo é baptizado de novo e só Vitalício decide o que ali acontece. De preferência, procura que nada aconteça porque só o vazio faria sentido. O vazio e o silêncio.
O papel central do romance é assumido por Mwanito, o “afinador de silêncios”. Sobre isto, afirmou Mia Couto na apresentação da obra: “Em África, os silêncios são parte da conversa. O silêncio é uma outra maneira da palavra viver e há coisas que não podem ser ditas de outra maneira”. Mwanito personifica a paz, a única paz que Vitalício encontra e, ao mesmo tempo, a sua única ligação ao passado.
No entanto, não é possível fugir ao tempo nem ao mundo; é nesse aspecto que Jesusalém é uma história desencantada, onde a escrita poética e belíssima de Mia Couto encontra terreno fértil. A literatura ao lado do sofrimento, sem o qual não consegue viver.