domingo, 31 de agosto de 2014

Chama Devoradora - John Steinbeck


Comentário:
Ao contrário do que se passa nas obras mais conhecidas de Steinbeck, em "Chama Devoradora" o acento tónico não está nas relações do ser humano com o meio, quer físico quer social, mas sim nas terríveis lutas interiores que configuram os grandes dramas da existência humana. As "chamas devoradoras" a que o autor se refere são essencialmente chamas da alma, emoções profundas e conflitos interiores.
Livro muito simbólico, talvez não seja o que mais agrada aos admiradores da escrita emocionante de Steinbeck, cheia de ritmo narrativo e incerteza nos desfechos. É talvez a sua obra mais estranha. O próprio autor reconhece ter tentado fazer algo que nunca ninguém tinha feito: um romance-peça de teatro, tentando evitar a exaustão do romance e a dificuldade de leitura de uma peça de teatro.
A estrutura do livro é, por si só, um grande motivo de interesse: o mesmo tema repete-se, em três situações diferentes, correspondentes a três actos: uma jovem mulher grávida, o seu marido, o amigo do marido e o amante da jovem grávida. As três situações desenvolvem-se como se fossem três círculos concêntricos, cada vez mais concisos, até que o último se resume ao desfecho do drama. Nos 3 atos os personagens são os mesmos e o tema é o mesmo (a gravidez da mulher, perante o conflito entre o marido e o amante, mediado pelo amigo). Apenas diferem as profissões e o contexto em que se desenrola o conflito dramático entre as personagens.
O final do livro é belíssimo.
Toda a intensa poesia de Steinbeck numa fala,de um homem que acaba de descobrir a incapacidade de ser pai:
"Acabou-se! A minha geração, o meu sangue, toda a sucessão das idades está morta e eu é só esperar mais uns tempos e morrer também!" - página 100/101
NO ENTANTO:
"Tive de mergulhar nas trevas para saber que todo o homem é pai de todas as crianças e que todas as crianças devem ter por pai todos os homens" - página 112

Sinopse:
"O tema de Chama Devoradora é chocante e até sensacional. Nas mãos de um escritor menor, poderia tornar-se licencioso, mórbido e obsceno. Mas John Steinbeck, que é um dos maiores escritores da América, trabalhou-o com coragem, audácia, lucidez e compaixão. Esta é, afinal, a história do impulso fundamental, a ânsia de procriar, a necessidade premente de continuar a espécie, conduzindo-a à imortalidade… As personagens de Steinbeck encontram-se a braços com uma dolorosa situação humana, em que intervêm as mais importantes emoções do homem, tais como o amor, o orgulho, o egoísmo, a lealdade e a abnegação." Do New York Times
in www.wook.pt

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

O Adeus às Armas - Ernest Hemingway


Comentário:
Escritor extremamente versátil, símbolo da chamada"geração perdida" Hemingway é, sem dúvida, um dos mais brilhantes representantes da literatura americana do século XX.
Se a história da literatura fosse um romance, Ernest Hemingway seria a personagem mais fascinante e mais rica. A sua vida foi agitada como os seus romances. Poucos autores deixaram transparecer a sua própria vida, de forma tão clara, para a ficção.  Neste romance, que se desenrola no norte de Itália durante a primeira guerra mundial está bem patente a experiência do autor na guerra civil espanhola. Tal como Hemingway (que foi repórter mas depois também soldado no conflito espanhol), o protagonista vê-se envolvido na guerra, mesmo não sendo propriamente soldado.
Mas o que encontrei de mais fascinante neste livro foi o paralelismo entre a vida individual do Tenente Henry e a vida coletiva, da Itália e da Europa em geral. Hemingway encara o amor atribulado de Henry por Catherine em paralelo com o desenvolvimento da guerra. E a tragédia pessoal será o corolário de uma aventura individual tão intensa e dramática como a própria guerra. A tragédia de um ser humano não é menor que a tragédia de uma nação, de um continente ou da humanidade inteira porque cada homem encerra em si um universo inteiro.
Em termos de estilo, este livro, um dos primeiros de Hemingway, revela já a sua característica fundamental: uma escrita objetiva, sem rodeios nem floreados mas, ao mesmo tempo, com uma tremenda dimensão poética. É isto que mais ninguém consegue: ser objetivo sem perder a beleza poética da própria prosa.
Eis aqui um dos exemplos:
"Quando me tiravam da cama para me levarem à sala dos curativos via pela janela os túmulos recém abertos no jardim. À porta que dava para o jardim, um soldado, sentado, fazia cruzes e pintava-lhes os nomes, o posto e o regimento dos homens que eram enterrados no jardim." (Pág. 75)

Sinopse:
Adeus às Armas, muito provavelmente o melhor romance americano sobre a I Guerra Mundial, é a história inesquecível de Frederic Henry, um condutor de ambulâncias que presta serviço na frente italiana, e da sua trágica paixão por uma bela enfermeira inglesa. Ernest Hemingway foi um dos autores que mais contribuiu para revolucionar o estilo da ficção de língua inglesa. Veio por isso a receber o Prémio Nobel de Literatura em 1954.
in www.wook.pt

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Uma Fazenda em África - João Pedro Marques


Uma agradável surpresa, esta que nos proporciona a sempre simpática Porto Editora. Com uma capa excelente e uma apresentação magnífica, este livro surpreende, acima de tudo, pelo rigor da abordagem histórica que está por detrás do enredo ficcional mas também pela habilidade com que o autor constrói esse mesmo enredo, gerindo com muita mestria o comportamento das personagens.
Estudar e recriar o funcionamento de uma colónia de pioneiros em África é, só por si, uma aventura. Algumas das grandes obras primas da literatura universal abordaram esta vertente do comportamento humano: o espírito gregário e as relações sociais que se estabelecem entre as pessoas. Aqui, em Moçámedes, como não podia deixar de ser, haveriam de surgir os maus e os bons, os trabalhadores e os diletantes. Por vezes afirmamos que a ficção cai sempre neste maniqueísmo de dividir os seres humanos em bons e em maus, mas a verdade é que essa perspetiva não é mais que um espelho da vida real. E, sem duvida, uma  das vertentes mais interessantes deste livro é precisamente essa dinâmica entre a ética e o lucro, essa oposição constante entre o proveito próprio e a filantropia de um grupo de pessoas que, bem ou mal, queria levar a civilização e os "bons" valores a África.
Mesmo assim, é possível notar que o autor não deixa de cair numa perspetiva preponderante do colonizador. Os negros são muitas vezes descritos como uma espécie de animal exótico ou simplesmente como seres destinados a serem "domados" por via da escravatura. Será interessante que o leitor confronte esta visão tipicamente europeia com uma outra, por exemplo a que encontramos em A Conjura, de José Eduardo Agualusa, em que o autor vê a colonização na perspetiva do angolano.
É que o tipo de colonização empreendido naquela época (segunda metade do século XIX) já nada tem a ver com a exploração comercial dos primórdios da expansão mas, pelo contrário, numa fase pré-Conferência de Berlim, em que se procurava a todo o custo estabelecer o domínio territorial e uma economia de fixação, de cariz agrícola, baseada na escravatura.
Um dos aspectos mais notáveis deste livro é a inteligência com que o autor consegue moldar e transformar o caráter da protagonista, Benedita, que, lentamente, se vai transformando, desde a ingénua donzela até à fortíssima personagem de mulher fatal.
Num país com uma história tão rica, é fundamental que em Portugal continuem a publicar-se obras de ficção histórica como esta. Embora caindo numa perspetiva algo etnocentrica, é uma obra com notável interesse pedagógico. E literário, obviamente.

SINOPSE
"Uma história de amor e aventura nos primórdios da colonização de Moçâmedes.
Ao acordar em sobressalto naquela noite de junho de 1848, a jovem Benedita não podia imaginar a transformação radical que a sua vida iria sofrer. Um ano volvido, tendo perdido tudo o que a prendia a Pernambuco, embarcava com escassos haveres e o coração apertado em direção a Moçâmedes. Consigo seguia mais de uma centena de portugueses que, desiludidos com o Brasil, procuravam uma nova oportunidade, fundando uma colónia agrícola do outro lado do Atlântico.
Uma Fazenda em África acompanha a vida e as histórias dos primeiros colonos numa terra brutal, trazendo à superfície os sucessos e desaires, os perigos e as surpresas da sua fixação num território
inóspito e selvagem.
Baseado numa investigação histórica meticulosa e tendo como pano de fundo a colonização de Moçâmedes, este novo romance de João Pedro Marques leva-nos por uma África simultaneamente
enternecedora e inclemente, carregada de exotismo e em cujos trilhos a aventura e o amor caminham de mãos dadas."
in http://www.portoeditora.pt/

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

A Leste do Paraíso - John Steinbeck

Comentário:
Escusado será de dizer que estamos perante um livro notável. Normalmente atribuo uma avaliação de zero a dez a todos os livros que leio. Até hoje só tinha atribuído a nota máxima a nove livros. Este é o décimo e Steinbek é o único escritor com dois livros nesta lista.
Publicado em 1952, nos alvores da Guerra Fria, este livro transporta consigo uma força tremenda. E essa força deteta-se, desde logo, num título belíssimo e também premonitório: a associação de ideias entre o Leste e o Mal será, ao longo da segunda metade do século XX, uma realidade incontornável (o lado Leste do Paraíso é o sítio para onde se deslocou Caim após ter matado Abel).
Uma das maiores virtudes deste escritor genial é a forma como gere a narração e o desenrolar do enredo, com uma economia narrativa notável: sem excessos de adjetivação nem de descrições, mas também sem lacunas; tudo nos é narrado  de uma forma objectiva, clara.
Quanto à temática do livro, ele tem de se entender na sequência dessa outra grande obra-prima do autor, As Vinhas da Ira (1939); tal como nesse outro grande livro, interessa mais a Steinbeck a compreensão e explicação do espírito humano do que os factos em si.
Outra marca distintiva deste génio é a força dos seus personagens. Em As Vinhas da Ira, Tom Joad e a mãe são os exemplos mais marcantes de força de caráter e bondade humana. Em A Leste do Paraíso, a bondade de alguns personagens aparece-nos em contraponto com uma espécie de maldade natural, mais evidente em Cathy mas também nos personagens Charles e Cal, claramente inspirados no personagem bíblico Caim. Aliás são inúmeras e muito significativas as referencia bíblicas nesta obra. Cathy representa a maldade mais requintada, como se alguns seres humanos nascessem como aberrações, como autênticos monstros. No entanto, em todos os personagens a quem é atribuída essa maldade natural, ela vem enquadrada numa certa lógica, como se o mal fosse inerente ao ser humano. No fundo, o confronto entre o Bem e o Mal constitui o verdadeiro âmago deste livro, como explicarei adiante.
A opção por personagens muito fortes não acontece por acaso; ela deriva da crença de Steinbeck na força do espírito humano; não na força do espírito coletivo, mas na força do ser individual: só individualmente o ser humano é capaz de criar, como o próprio autor explica no início do segundo capítulo.
Tal como em As Vinhas da Ira, também aqui é notável a relação do homem com a terra, como se esta fosse uma extensão do ser humano. No entanto, a Terra é fonte de alimento mas também de sofrimento; a alegria e o prazer parece só ganharem significado em confronto com o sofrimento, da mesma forma que o Bem só ganha sentido em paralelo com o Mal.
Esse confronto é analisado, ao longo de todo o enredo, em confronto com a própria Bíblia. O livro sagrado parece ser encarado como uma espécie de sentença de condenação perpétua que paira sobre o ser humano. Mas, pelo contrário, a religiosidade da personagem Lizzi é enternecedora. A ela só não agrada a ideia de no Paraíso não se trabalhar; por isso ela planeia realizar lá uns serviços, quando morrer,como remendar nuvens ou limpar as túnicas dos santos. Estas personagens positivas, como Lizzi ou Samuel são o contraponto da maldade extrema de Cathy mas também de uma espécie de maldade natural, humana, de Cal ou Charles, os herdeiros de Caim. O mais terrível é que esta luta está dentro de todos os seres humanos; todos nós temos no nosso espírito algo de Caim e de Abel. E essa luta prevalece até à morte, como acontece com Adam...
Lee, o criado chinês paira sobre o enredo como se fosse um elemento exterior ao livro: fruto de uma formação oriental, ele não foi contagiado pela bíblia; por isso ele detém a sabedoria e a racionalidade. É ele quem faz esta afirmação absolutamente notável:
"Fumo os meus dois cachimbos todas as tardes, como fazem os mais velhos, e sinto que sou um homem, e o homem é uma coisa muito importante, talvez mais importante ainda do que uma estrela. Isto não é teologia. Não dobrei a espinha perante os Deuses mas surgiu em mim um novo amor por esse instrumento brilhante que é a alma humana. É uma coisa maravilhosa e  única no mundo. Está sempre a  ser atacada e nunca é destruída porque TU PODES."

Sinopse:
Com acento bíblico, o grande autor de As Vinhas da Ira define o universo de A Leste do Paraíso através das seguintes inspiradas palavras: «O assunto é o mesmo que cada homem tem utilizado como tema: a existência, o equilibro, a batalha e a vitória, na eterna guerra entre a sabedoria e a ignorância, a luz e a treva, o bem e o mal.» A Leste do Paraíso, vasto fresco levantado a partir do relato da vida de várias gerações de duas famílias norte-americanas, os Trask e os Hamilton, num período crucial da história dos Estados Unidos (1860, Guerra da Secessão – 1920, anos imediatos à Primeira Grande Guerra), proporcionou ao malogrado James Dean talvez o mais importante papel da sua carreira.
in www.fnac.pt


terça-feira, 19 de agosto de 2014

A Dama de Espadas - Alexader Pushkin


Comentário:
Para quem, como eu, nutre uma autêntica veneração pela literatura russa, ler Pushkin era uma obrigação.
Alexander Pushkin é considerado por muitos especialistas como o primeiro grande representante da grande literatura russa. Ele nasceu no final do século XVIII (1799) e viria a falecer com apenas 37 anos, num estúpido duelo como suposto amante da esposa.
Puskin foi pioneiro em diversos aspetos. Desde logo, a nível político; ele foi um dos primeiros revolucionários, a lutar contra o absolutismo do Czar e contra as injustiças sociais a ele inerentes e que tanto pesariam na obra dos grandes mestres russos do século XIX, com destaque para Leon Tolstoi, Gogol ou Gorki.
Mas também em termos literários, ele foi um criador. Tendo sido essencialmente poeta, escreveu várias peças de teatro mas também algumas obras em prosa e por isso é considerado um dos pioneiros da ficção russa, no contexto da escola romântica então em voga.
É nesse contexto romântico que se situa A Dama de Espadas. Trata-se de uma pequena novela que viria a dar origem a uma ópera de Tchaikovsky. O enredo é muito simples e linear, narrado a estória misteriosa de uma velha dama da alta sociedade russa que detinha um temível e misterioso segredo que permitia a qualquer jogador de cartas vencer e tornar-se milionário. No entanto, o uso do segredo estava limitado a condições muito excecionais. O ambicioso Herman, um jogador de origem alemã, terá acesso a ele. Mas as consequências serão terríveis. Aparentemente, é apenas uma pequena estória destinada a entreter pelo mistério que envolve, pela fluidez da escrita e pela simplicidade da narrativa. No entanto, envolve também uma inovadora (para a  época) crítica social, perante a já então diletante alta sociedade e o vício do jogo que já se tinha instalado nesses meios e que viria a constituir a desgraça de grandes personalidades desse magnífico país, como foi o caso de Fiodor Dostoievski.
Numa época em que tanto se fala de literatura de fantasia, é bom ler um livro com quase 200 anos e que deixa a milhas, em termos de qualidade, qualquer um desses livrinhos sem nexo e algumas aberrações que por aí se publicam.
Sinopse:
Certo serão jogava-se às cartas em casa do oficial de cavalaria Narumov. A longa noite invernia chegara despercebidamente; a ceia fora servida às cinco da manhã. Aqueles que haviam ganho comiam com grande apetite, os restantes, distraídos, olhavam para os seus pratos vazios. Mas o champanhe apareceu, a conversa animouse, e todos participaram nela.
in www.wook.pt

sábado, 16 de agosto de 2014

O Senhor Ventura - Miguel Torga

Comentário:
O Senhor Ventura é a prova definitiva de como os grandes escritores nos reservam sempre grandes surpresas. Isto porque um grande escritor não se refugia num estilo definido, nem numa temática bem demarcada. Pelo contrário,um grande escritor é versátil. E Miguel Torga é um grande escritor.
Todos nós conhecemos Miguel Torga dos contos de cariz rural, expressando a luta do homem pela sobrevivência, num enquadramento por vezes poético outras vezes profundamente realista da relação do homem com a terra. Neste livro, Torga surpreende com um pequeno romance em que narra das aventuras de um português pelo mundo. Assim, o Senhor Ventura é o aventureiro luso, o português das sete partidas, que correu mundo, encantou e ficou encantado. Mas este não é um herói clássico. Muitas vezes é um anti-herói. As suas aventuras envolvem sempre a matreirice, aquele carácter "desenrascado" que muitas vezes não hesita em sair dos limites da lei. Um malandro, em suma. Mas, como qualquer malandro, o Senhor Ventura também se apaixonou. E, mais uma vez, aí temos o herói preso pelas saias. O amor foi o início da desgraça do Senhor Ventura, uma espécie de D. Quixote encandeado pela sua Dulcineia mas que não deixou de ser, tal como o herói de Cervantes, um porta voz de todas as virtudes e defeitos do seu povo. Na sua matreirice mas também no seu espírito de aventura, O Senhor Ventura é um verdadeiro resumo da alma portuguesa.
Acima de tudo, este livro é uma engraçada caricatura da alma portuguesa. Ao leitor fica a sensação que o autor de divertiu ao escrever este livro, que encarou de forma despretensiosa mas que se tornou, sem dúvida, uma das suas obras mais interessantes. Mesmo assim, há um aspeto muito sério que tem de ser referido: nas entrelinhas há aqui um recado à ditadura, durante a qual Torga escreveu este livro (1943) e contra a qual sempre se bateu...
Em suma, um livro sério mas divertido, cheio de conteúdo embora breve. 

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O homem que via passar os comboios - Georges Simenon


Comentário:
Já aquando da primeira leitura que fiz deste livro, há uns quinze anos, fiquei convencido que esta é uma das três maiores obras-primas da história da literatura policial, a par de O Cão dos Baskervilles, de Sir Arthur Conan Doyle e o eterno Crime no Expresso do Oriente, de Agatha Christie.
"O homem que via passar os comboios" tem tudo o que um grande livro deve ter: emoção, ritmo narrativo, ausência de descrições ou assuntos inúteis ou laterais, correção na escrita, objetividade e aquele toque de bom humor que nos deixa a sorrir durante a maior parte da leitura. 
Tecnicamente, um dos aspetos mais geniais deste livro é a forma como o autor gere a emoção: nós sabemos quem é o criminoso, sabemos quais são os crimes e a sua justificação. Só não sabemos se Popinga vai escapar.Ou até quando. E isso basta para um tremendo suspense. Só um génio literário é capaz deste desempenho!
Um certo exotismo começa logo com a apresentação do protagonista: Kees Popinga. Ele é um vulgar funcionário holandês, protótipo daquilo a que hoje chamamos classe média, com uma família vulgar e aparentemente feliz. Popinga até gosta do que faz. Mas um dia, como diria um adolescente dos nossos dias "passa-se". A empresa onde trabalha vai à falência e Popinga entra num percurso que o levará de discreto funcionário a um assassino apelidado de louco e perseguido como muito perigoso.
O que é absolutamente incrível é como o autor nos apresenta esse percurso como algo normal, credível. Tudo acontece com uma espantosa naturalidade! Isto só se explica pela genialidade de Georges Simenon, o notável criador do inspetor Maigret, que o notabilizou. Mas se o inspetor belga fez um sucesso absoluto, não tenho dúvidas que este Homem que Via Passar os Comboios é uma verdadeira obra de arte!
Há uma afirmação do nosso herói, Popinga, que resume bem o que se passa com este tipo de criminosos, e que ajuda a compreender a mente criminosa: quando lê no jornal, durante o seu refúgio em Paris, que a família e os amigos diziam que ele não estava no seu estado normal (ao cometer os crimes) Popinga diz: "era antes que eu não estava no meu estado normal". 
É óbvio que esta "anormalidade do normal", da loucura que resulta da normalidade, faz lembrar os estudos de Sigmund Freud, sobre a loucura e o seu método inovador, a psicanálise, tão em voga na época em que Simenon escreveu. Mas é muito mais que isso: é a humanidade na sua expressão mais radical. O ser humano não foi criado para se tornar um autómato. Popinga apenas procurava ser ele próprio. Ser livre e feliz. Foi essa procura da liberdade que o conduziu à criminalidade. Certamente, errou e o próprio Popinga reconhece a justiça do castigo que o espera. Mas a sociedade também falhou. E para essa falha não há castigo.

Sinopse:
"O Homem que via Passar os Comboios", publicado no ano de 1938, é uma obra que se insere no género da literatura policial, ou não fosse Georges Simenon o criador do celebérrimo comissário parisiense Jules Maigret. Kees Popinga é o protagonista deste divertido e admirável romance, que permite ao leitor realizar um trajecto pelos recantos mais sombrios da psicologia humana.
Empregado de Julius de Coster, o proprietário de uma empresa de abastecimento de navios, Kees Popinga leva uma vida respeitável e tranquila, sem grandes sobressaltos nem preocupações. Até que o seu patrão, confrontado com a inevitabilidade da falência financeira, decide fugir, simulando um suicídio. O sucedido opera uma profunda transformação em Popinga, que assume uma ruptura repentina com a sua rotina diária, profissão, mulher e dois filhos.
Após abandonar a família e Groninga, viaja até Paris, onde passa a viver numa marginalidade que desde sempre tinha ambicionado. Popinga é agora um lúcido assassino, que mata as suas vítimas com um inesperado sangue-frio, ao mesmo tempo que desafia as autoridades policiais ou escreve para os jornais de Paris a rectificar e comentar as notícias que são publicadas a seu respeito."
in: http://static.publico.pt/docs/cmf/autores/georgesSimenon/amanha.htm

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sábado, 9 de agosto de 2014

O Códice Secreto - Lev Grossman


Quando saio da minha zona de conforto, ou seja, quando quebro a regra de só ler autores que me ofereçam garantias, acontece isto... desilusão. Não entendo muito bem porque é que algumas editoras tão bem conceituadas, tão competentes, como é o caso da Presença, editam livros como este (publicado em 2005). Bem, talvez eu esteja a exagerar. Este livro tem os seus méritos e certamente há por aí muito leitor que discorda desta avaliação negativa.
Na realidade há um ponto bastante positivo: o livro fornece-nos alguns dados interessantes sobre a Idade Média e tem fases de alguma emoção. Por outro lado, o facto de não se inserir em nenhuma etiqueta tradicional, como é enfatizado na sinpose (abaixo),  não deixa de ser um fator positivo. Há, de facto, qualquer coisa de original, de criativo, na forma como o livro é estruturado. No entanto, durante a maior parte da leitura, o ritmo narrativo é lento e esse é o maior pecado possível num livro que se pretendia emocionante.
O "cenário" até é muito bem montado: um génio das finanças, um verdadeiro workaholic, é surpreendido por uma proposta de trabalho muito peculiar: catalogar livros antigos e encontrar a todo o custo uma obra misteriosa do século XIV. Ao mesmo tempo, o nosso génio envolve-se com um jogo de computador altamente "viciante" que, misteriosamente, envolve um enredo cujos elementos se cruzam com a vida real do herói e com a história do tal livro misterioso da Idade Média. Esta ideia base parece-me bastante interessante e até oferece bons momentos literários, mas fica sempre a sensação que os elementos de mistério nunca foram explorados até ao limite.

Sinopse:
O Códice Secreto é um daqueles raros livros que escapam habilmente a uma categorização mais imediata. Thriller literário, histórico, bibliothriller ou romance com laivos de metaficção, a verdade é que este segundo livro de Lev Grossman exerce sobre o leitor uma embriaguês literária que, página a página, se vai transformando, insidiosamente, numa obsessão que só uma leitura ávida poderá aplacar. Aliás, o próprio protagonista, Edward Wozny, partilha com o leitor esse estado de inebriamento obsessivo, uma vez que também ele foi apanhado nas malhas do fascínio por uma obra da literatura medieval, um códice secreto do século XIV, atribuído a Gervase de Langford, e que supostamente encerra, numa mensagem criptografada, um segredo apocalíptico selado durante séculos. Edward estava prestes a gozar umas merecidas férias, depois de vários anos a construir uma carreira de sucesso num prestigiado banco nova-iorquino, quando lhe é pedido que organize a biblioteca privada de um casal de aristocratas britânicos, clientes do banco e fabulosamente ricos. Em breve, aquilo que se afigurava uma tarefa fastidiosa transforma-se numa odisseia de contornos inusitados onde ganham vida uma imaginação electrónica prodigiosa, na forma de um jogo de computador sofisticado e tão viciante quanto a própria procura do códice, e uma indecifrável teia de coincidências e ligações entre a realidade virtual, a lenda medieva e o presente de Edward. Plena de suspense e mistério, esta obra perturba e delicia, com o mesmo grau de intensidade, ao expor perante o nosso olhar a beleza e o incrível poder encantatório que podem envolver uma história bem contada e tornar tão vulnerável o leitor.
in www.wook.pt

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Alfreda ou a Quimera - Vasco Graça Moura


Comentário:
Esta incursão do autor pelo romance tem todas as características de uma atrevida aventura literária. Fracassada, diga-se desde já, pelo menos na minha opinião. O que salva o livro é o estilo. A objetividade da escrita, a clareza, a facilidade de leitura. Aliás,dizer que VGM escreve bem seria uma terrível banalidade. Pode não ter sido um grande romancista mas foi um poeta notável e um grande homem das nossas letras.
Fica claro que VGM não é romancista nem nunca o poderia ter sido. Nesta obra há uma ideia inicial, um leitmotiv bem claro, mas pouco mais que isso. Como o próprio autor confessou, a aventura e a obsessão do personagem principal teve origem num conto que VGM resolveu "encher" com considerações, reflexões e descrições avulsas, transformando o livro numa imensa manta de retalhos, um amontoado de assuntos triviais, misturados com reflexões tão profundas quanto enfadonhas. Pelo meio fica um enredo que parte de uma ideia-base muito interessante mas que não chega para preencher uma estória que se pretendia um pouco mais emocionante. 
Também a incursão pelos assuntos políticos é dececionante, tendo em conta a experiência e a cultura do autor, deixando-nos uma leitura simplista e quase primária dos conflitos laborais.
O ritmo narrativo é muito lento, em grande parte devido ao cruzamento da narrativa com as tais incursões reflexivas e descrições exaustivas. A partir de certa altura o livro parece mesmo perder o sentido, deixando mesmo a impressão que o autor hesita sobre o rumo a dar ao enredo. Isto acontece porque, de facto, a estória é "curta"; a obsessão do cinquentão divorciado e solitário não chega para preencher o romance e o autor tenta colmatar esta falta com devaneios aborrecidos para quem lê e a inclusão de personagens secundárias que em nada enriquecem o enredo.
Há pouco tempo li as mais de seiscentas páginas das Novelas do Minho em cinco dias. Para ler as 230 páginas deste livro levei os mesmos cinco dias e só não desisti a meio por mera teimosia.
Finalmente, uma referencia para uma capa que, na minha opinião, em nada favorece o livro, nesta edição da Bertrand.

Sinopse:
Alfreda ou a Quimera é a história de uma obsessão, de uma paixão por uma bela e misteriosa mulher com quem o protagonista deste romance - um bibliófilo portuense - se relaciona intima e fugazmente. Essa paixão passa a reger a sua vida, os seus interesses, os seus actos, os seus pensamentos, enquanto ele tenta reencontrá-la. Quando a reencontra, ou quando a verdade sobre ela é revelada, apesar do desapontamento que o atinge e do seu desinteresse em reencontrá-la carnalmente, João de Melo renuncia a uma vida normal, a um amor tranquilo e equilibrado que entretanto encontrara com outra mulher, para se entregar à quimera de Alfreda. As histórias que acabam bem não fazem história; mas alguns episódios obscuros e mal resolvidos marcam-nos para sempre. Além da história central do livro, destaquem-se ainda a relação do protagonista com Pips, o seu amigo homossexual inglês, e a relação apaixonada que mantém com o mundo dos livros e com a sua cidade do Porto.
in www.wook.pt