sábado, 29 de dezembro de 2012

A Montanha Mágica - Thomas Mann


Desengane-se quem foi vítima do mito: este não é um livro difícil de ler nem um livro chato.
É uma obra-prima absolutamente notável.
Na minha modesta opinião, um dos melhores livros da história da humanidade, capaz de ombrear, em qualidade literária com D. Quixote de Cervantes, Os Irmãos Karamazov de Dostoievski ou Guerra e Paz de Tolstoi. 
Se tivesse de fazer um top ten dos melhores livros que li até hoje, este teria de lá figurar.
A profundidade dos assuntos tratados e toda a riqueza de conteúdo desta obra monumental levam-
me a dividir o meu comentário em três partes:


1- A magia da montanha 

Lá em cima, no topo de uma montanha suiça, há um sanatório onde tudo é relativo, a começar pelo tempo. Hans Castorp esperava demorar 3 semanas, esperando o primo, Joachim. Mas lá o tempo passa mais devagar. O tempo é uma noção vaga, subjetiva. Da mesma forma o espaço: as montanhas que impressionam Hans são vulgares para Joachim. Os contrastes culminam com a atitude perante a morte: trivial para um, estranha para o outro. Morrer naquelas montanhas era, afinal, o mais comum.
Hospedado numa cama que fora leito de morte no dia anterior, Hans resiste ao drama reagindo com humor à desgraça dos outros. O riso como fuga e como marca do contraste entre a vida e a morte. É nesse leito que foi de morte que Hans recorda a infância, apelando a memórias que marcam a venerações pelas tradições da família e da pátria alemã.
Essas memórias ensinaram a Hans que a morte não é o fantasma terrífico; é um momento solene a quem a religião dá um tom de naturalidade. O drama é apenas corporal, material. O espírito prevalece.
O riso perante a morte é uma constante na montanha. Como se a morte libertasse os homens do mundo ordinário em que vivem: o internado Albin brinca com uma faca e um revólver: uns riem, outros agem com naturalidade, outros ainda, entram em pânico. Serão essas as 3 reações típicas perante a morte? Outro exemplo brilhante é o daquela personagem que emite assobios graças a um orifício artificial que lhe fizeram no pulmão. A cena é tornada cómica a partir de uma situação dramática - o riso paredes meias com a dor.
A Montanha Mágica está também povoada pela arte de dar significado a todos os pormenores, sem cair no exagero descritivo.
Lentamente, a doença torna-se um estado de afastamento do corpo, que facilita o trabalho do espírito - “deveria estar menos sadio do que aparenta, porque, evidentemente, possui espírito”.
A propósito da visita de Hans, afirmava o médico: “três semanas são como uma visita de médico; nem vale a pena tirar o casaco por tão pouco tempo.” Sempre, a relatividade do tempo. Este parece ser um dos temas centrais da obra. Essa é parte da magia daquela montanha: o tempo que, pela monotonia dos dias devia avançar mais depressa, corria rapidamente, como se não se desse por ele. A relatividade do tempo e a forma imperial como ele subjuga a vida humana está bem patente na própria estrutura da obra: os capítulos vão sendo cada vez mais longos e o tempo cronológico da ação vai-se transformando: no início um curto espaço de tempo preenche dezenas de páginas, ao passo que no final da obra meses e anos vão passando, por vezes num único subcapítulo.

2- Naphta e Setembrini ou o choque de titãs

Settembrini é um personagem fundamental neste livro. Italiano, homem do sul, ele é sonhador, muito crítico, lutador pela liberdade. Talvez o contraponto com o espírito alemão. Ele é, sem dúvida nenhuma, o representante do lado otimista do ser humano, da visão crítica e livre da existência. Para ele, a vontade e a força humana (haverá algo de Schopenhauer?) são capazes de enfrentar qualquer poder e a própria natureza, apontando como exemplo a forma como Voltaire se recusou a aceitar o terramoto de 1755. Não é, no entanto, um hedonista; é um humanista que defende o primado do espírito. Mas um espírito livre, longe do “obscurantismo cristão”. Ele é o único que aconselha Hans a abandonar o sanatório. Muito crítico em relação à medicina, ele considera que Hans tem de optar pela liberdade.
No entanto, a prisão de Hans já não é só o sanatório; é também Clavdia. A sua paixão começa precisamente quando adoece. O amor surge associado à doença e à tristeza: “Le corps, l’amour, la mort, ces trois ne font qu’un », diz Clavdia. T. Mann introduz aqui uma forte imagem simbólica: a recordação que Hans guardará de Clavdia será a sua radiografia.
À medida que a obra avança, o tempo vai-te tornando uma obsessão; o drama da sucessão dos anos, o ritmo das estações do ano; a nostalgia de um verão em que os dias vão sendo cada vez mais curtos…
Setembrini, maçónico, é o adepto fiel do progresso, da civilização e do humanismo. É um pacifista mas contra a Áustria admite todas as guerras… Lentamente, estas ideias vão influenciando o espírito jovem de Joacquim, o aspirante a militar; pouco lhe interessam as reflexões e os assuntos da alma.
Hans, por seu turno, vai-se tornando cada vez mais reflexivo.
Naphta, o jesuíta de família judaica, é um personagem fortíssimo, que surge a meio do livro. Ele é um nacionalista que advoga o valor da guerra e anuncia o conflito mundial que se aproximava. Defende o nacionalismo por oposição a um certo humanismo cosmopolita.
Nafta é um conservador revoltado: a sua família fora martirizada por serem semitas e o jovem Leo haveria de seguir o rumo jesuítico mais por revolta do que por convicção, depois de ter lido Marx. No entanto, foi a doença que o impediu de seguir uma brilhante carreira eclesiástica. Talvez este espírito revoltado explique o seu radicalismo aliado a uma inteligência invulgar. E talvez seja por isso que Setembrini o considera perigoso.
As longas mas profundas discussões entre Naphta e Setembrini concretizam também a oposição entre o tradicional e o moderno, o conservador e o progressista. Dá a sensação que a posições se extremam ao longo da discussão levando mesmo Naphta a defender o primado da fé sobre a ciência. Só a fé é útil à salvação do homem e por isso a ciência só é útil se servir a fé.
Note-se que a narrativa se desenrola imediatamente antes do deflagrar da primeira guerra mundial; neste contexto a obra é também algo premonitória: estes dois personagens, opostos, inimigos, talvez simbolizem as duas forças opostas que entrarão em conflito e que depois terão sequência na segunda guerra mundial e em todo o século XX: as democracias por um lado e os totalitarismos por outro.
Os mais jovens, Joacquim e Hans rejubilam com os argumentos de Setembrini: democracia, progresso, liberdade; Renascimento, Luzes, Ciência moderna. No entanto, paira no ar o sinal da razão de Naphta: o absoluto resiste; a ciência não evita o medo; a lógica do mundo parece não sobreviver sem a autoridade, a força, a disciplina. Numa palavra, a obediência.
Naphta representa também aqueles que colocam o espírito à frente do corpo; o espiritual triunfando sobre o carnal. No entanto, o próprio Naphta foi derrotado pelo corpo: a sua saúde é terrivelmente precária; sobreviverá o seu espírito? No entanto, para ele a doença é o estado natural do Homem; é aí que ele assume toda a sua humanidade porque perante a doença do corpo, impera o espírito.
Defendendo a pena de morte e a tortura, Naphta afirma o primado do ser universal sobre o ser individual, acusando Setembrini de defender o individualismo burguês, que ele considera egocêntrico e fútil.
Este personagem (Naphta) assume um papel fundamental na obra: o leitor começa por estranhar e mesmo adquirir uma certa repulsa pelas suas ideias ultra conservadoras mas, mesmo nessas ideias podemos encontrar poderosos motivos de reflexão. Por exemplo, até que ponto a defesa da liberdade individual, da tolerância e da democracia não está ligada ao interesse político da ética capitalista, no culto interesseiro e mesmo egocêntrico do individualismo burguês?


3- Uma intensa reflexão sobre a vida humana

A vida na planície era vista como uma prisão, enquanto no sanatório a doença confere liberdade. O próprio líder do hospital, o Dr. Behrens, é nomeado pelo autor como “Radamanto” que, na mitologia grega, era um ser de superior inteligência que permaneceu como juiz do Hades, ou seja, aquele que decide sobre a vida após a morte.
Afirma o Dr. Krokowski: “O que é orgânico é sempre secundário...” Diz ele que ninguém tem uma saúde perfeita… esta perspetiva reforça a ideia de liberdade associada à libertação relativamente ao corpo, ao lado orgânico do ser. Setembrini, crítico e cético em relação à ciência, à competência dos médicos e até à eficácia do sanatório, afirma a supremacia da liberdade por oposição aos ditames da ciência (neste caso, a medicina). No entanto, não há nesta visão nada de conservador, anti-progresso; antes pelo contrário. A ciência liberta, mas deve ser colocada ao serviço do “EU”.
No sanatório os doentes leves são desprestigiados. Os “normais” são os doentes graves e muito graves. Os outros são, quase, intrusos. Assim sendo, qual será o motivo que leva os homens a mudar de atitude na montanha? O estar doente? O estar isolado do mundo? O estar em contato permanente com um grupo? O estar dependente, ou seja, sem liberdade? São perguntas em aberto que permitem ao leitor uma intensa reflexão. Este é, a meu ver, o interesse maior da obra.
Seja como for, o hospital é um mundo fora do mundo. Na época em que Mann escreve (1924), a Eeuropa estava ainda profundamente marcada pela guerra. E o pós-guerra não oferecia grandes esperanças.
Por outro lado, vivia-se uma época de enormes progressos científicos. O jovem Hans é também confrontado com as mais intrigantes relações entre os mundos psíquico e físico que compõem o ser humano; estuda até à exaustão procurando esmiuçar todo o conhecimento da alma e do corpo humano. A montanha e a doença, mais uma vez como fontes de progresso: a montanha mágica mas, também uma doença mágica.
A própria paixão de Hans por Clávdia é de uma natureza bem distinta do amor mais comum.
A forma como Thomas Mann vai descrendo o crescendo da paixão é absolutamente genial. Tal como uma doença, o amor surge com sinais muito ténues; tal como em relação à doença, a primeira fase é a da negação. Hans nega estar apaixonado mas os sinais vão-se tornando evidentes.
Chega a ter um efeito humorístico a forma como os recém chegados se convencem de forma quase imediata que precisam de tratamento, mesmo gozando de perfeita saúde, como é o caso do tio de Hans que subiu à montanha para o visitar e se possível resgatar. Mas não só isso não se verifica como o próprio James cede à magia da montanha (ou do Dr. Behrens?). Felizmente, guardou o que lhe sobrava das energias da planície para fugir da montanha a sete pés. E o leitor fica com a sensação que escapou por muito pouco. Ao mesmo tempo parece ter-se gorado a última tentativa de resgatar Hans à planície.
A montanha e toda a envolvência natural, o frio extremo, o vento, a vegetação, todo esse contexto exprime não só a beleza natural mas também o medo que inspira no ser humano; uma espécie de reverência perante a majestade da natureza, assim encarada como uma entidade superior.
À medida que nos aproximamos do final vamos sentindo o triunfo da montanha: o regresso de Joachim é descrito como um “regresso à pátria”; é recebido com uma alegria algo mórbida mas sentida como o regresso ao estado natural das personagens.
O recém-chegado Peeperkorn, a quem Clavdia se afeiçoara, entra em cena como o defensor dos prazeres da vida: comida e mulheres constituem o seu paraíso. Reflexões e ideias são, para ele, coisas inúteis. Hans Castorp navega agora entre o mundo das ideias e o mundo dos sentidos.
A parte que precede o final do livro parece marcar o triunfo do bom humor e a derrota da ciência ou, pelo menos das preocupações em torno dos chamados “assuntos sérios”. É um final épico: acabaram as teorias, as reflexões, a melancolia. No sanatório ouve-se música numa moderna grafonola, fazem-se alegres sessões de espiritismo com defuntos ressuscitados e até são exaradas em ata bofetadas ilustres em questões de honra.
Mas, no final, tudo se reduz à bestialidade; a elevação, a filosofia, a moral e a ciência, tudo será substituído por um inesperado e bárbaro duelo. Trata-se de uma forte alegoria à Europa prestes e entrar no período mais negro da sua história…

E, finalmente, Hans Castorp: após sete anos na montanha mágica, encontrá-lo-emos enterrado na lama do mundo…

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Soberba Tentação - Andreia Ferreira



Sinopse:
Depois de descobrir que o sobrenatural não representa um medo irracional e que as criaturas caminham lado a lado com os humanos, Carla tem de enfrentar as consequências do seu envolvimento com o Caael.
Os demónios já deixaram marcas na vida da Ana e da Raquel e a Carla começa a sentir algumas dificuldades em encontrar-se.
Entre lacunas na memória, sentimentos e novas preocupações, surge uma existência virada do avesso com a linha da vida mais ténue do que nunca.
Com a ausência do Caael, assomam revelações que levantam um plano ancestral de uma disputa entre iguais. A Carla vê-se num tabuleiro de xadrez, como um rei isolado, com a rainha a jogar contra ela.

Comentário:
Os demónios existem. Talvez sem querer, a jovem bracarense Andreia Ferreira comprova-o: eles são pedófilos, incendiários, assassinos em série. Existem, para mal dos pecados da humanidade. Mas, coisa curiosa, também existem na ficção e às vezes são bonzinhos. Ou melhor: às vezes tudo fica de pernas par o ar e os demónios viram gente boa e simpática, assim como os anjos (que, como toda a gente sabe também existem) se tornam consideravelmente maus.
Todos nós já vivemos belas experiências com demónios e todos nós já fomos tramados pelos anjos, que por vezes são uns chatos. De tudo isto acontece neste livro segundo, da trilogia “Soberba” de Andreia Ferreira.
A ficção e a realidade, o bem e o mal, o amor e o ódio mais radical, tudo se mistura no conjunto de ambivalências de que a vida é feita.
Alguns pormenores fazem antever um excelente futuro de Andreia Ferreira como escritora: brilhante o contraste entre a folia do S. João e o ambiente de terror no Hospital Psiquiátrico. Em algumas passagens, a precisão descritiva e a economia narrativa permitem construir cenários de verdadeiro terror, sem nunca se perder a dimensão humana e realista da estória: Carla vive situações fantásticas mas não deixa de ser a jovem normal que frequenta uma escola normal e que tem uma família como a nossa.
No entanto, o valor maior da obra, na minha opinião, é a ambivalência de valores a que me referia acima; anjos e demónios, o bem e o mal sempre presentes, lado a lado, por vezes presentes na mesma personagem. A ficção como a vida: bondade e maldade não existem em estado puro na terra. E os maiores anjos, como os maiores demónios, não são de outros mundos; são os de cá. Neste livro, o mais puro dos anjos é bem terreno: é alguém que escapa por completo ao domínio do fantástico – é o jovem Filipe, irmão mais novo de Carla; ele é o verdadeiro anjo bom. No outro extremo, o pior dos demónios é todo ele de carne e osso: Tó, o irmão de Ana, amiga de Carla.
Em suma, trata-se de mais um livro muito agradável de ler, em que o fantástico se apresenta sobre uma forma bem realista e com “pano para mangas” para o terceiro volume da trilogia.

domingo, 23 de dezembro de 2012

FELIZ NATAL - Ary dos Santos - Paulo de Carvalho - Fernando Tordo

Hoje mais do que nunca, esta canção de Paulo de Carvalho é verdadeiramente atual. Infelizmente.
Com os meus votos de FELIZ NATAL convido-vos a ouvir e a pensar um pouco nesta belissima letra do GRANDE José Carlos Ary dos Santos, musicada por Fernando Tordo.
Especialmente para todos os meus irmãos que dormem à noite na calçada de relento, numa cama de chuva com lençóis feitos de vento...




Tu que dormes à noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e combóios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Letras no Ocaso - Pedro de Sá



Afirmação “A priori”, incontornável: nunca cultivei o gosto pela narrativa curta, pelo conto ou pela crónica. Ironia capital: escrevo crónicas num jornal. Mas não as leio; às vezes nem para rever o texto.
Feita a confissão, vem a revelação: Pedro de Sá publica neste livrinho um belo punhado de crónicas e de curtas narrativas, num conjunto diversificado, compondo uma obra bem diferente dos seus romances já publicados na mesma editora: “Olhei Para Trás e Sorri” e “Queria Rever o Teu Rosto ao Entardecer”.
Centrados no amor e na amizade, esses romances tinham como grande mérito a viagem profunda à mente e aos sentimentos das personagens. Aqui, neste livro, o propósito não é fazer esses grandes “mergulhos” no âmago das personagens. Um espelho do mundo através da alma; impressões e sensações, mais do que reflexões. Trata-se, apenas, de recolher e relatar impressões; coisas à flor da pele que o comum dos mortais sente todos os dias; coisas por vezes insignificantes mas que nos marcam indelevelmente, de tal forma que se gravam nas profundezas da memória individual. É dessas coisas que nos fala Pedro de Sá neste livro: coisas (apenas) aparentemente triviais…
Exemplo maior de tudo o que escrevi acima é aquela que constitui, a meu ver, a melhor crónica desde livro: “Por favor, diga-me que sim”. Trata-se de uma pequena narrativa em que se relata um episódio capaz de ilustrar bem essa sensibilidade que carateriza o autor e que ele já tinha revelado nas obras anteriores: um casal daquilo a que se convencionou chamar classe média baixa entra num banco para tentar obter um pequeno crédito, que lhes é recusado… o drama de quem nada tem, mas de pouco precisa para ser feliz… este sentido de humanidade, esta sensibilidade, são o valor maior de Pedro de Sá enquanto escritor, associado a um estilo muito eficaz: com clareza na linguagem, sem adereços desnecessários mas sem nunca perder a sensibilidade e a capacidade de apelar à reflexão.
Em resumo, trata-se de um conjunto de pequenos textos que certamente agradarão imenso a quem gosta de narrativas curtas. Pessoalmente, não sendo este o meu género literário preferido, gostei, essencialmente pela forma fácil como Pedro de Sá nos desperta determinadas sensações, lendo-se como quem ouve uma música, talvez dos Led Zeppelin ou de Yann Tiersen e com um interessante toque de Milan Kundera pelo meio…

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Algo Maligno Vem Aí - Ray Bradbury



Sinopse
O espetáculo está prestes a começar. O circo chega pouco depois da meia-noite, nas vésperas do Halloween. O que fariam se os vossos desejos secretos fossem concedidos pelo misterioso líder do circo, o Sr. Dark? O circo a todos chama com promessas sedutoras de juventude eterna e sonhos por cumprir…
Dois amigos adolescentes, Jim Nightshade e Will Halloway, são incapazes de resistir às atrações. A sua curiosidade de rapazes fá-los descobrir o segredo oculto nos labirintos, fumos e espelhos do tenebroso circo.
Inconscientes do perigo em que se veem envolvidos, uma terrível perseguição é posta em marcha e Jim e Will tudo terão que fazer para salvar as suas vidas. Mas, acima de tudo, as próprias almas... 
Comentário:

Ninguém será capaz de negar, goste-se ou não, que o género fantástico tem feito sucesso nos últimos anos. No entanto, este género surge-nos algo difuso nas suas origens. Podemos recuar, a meu ver, a duas géneses distintas: a ficção científica e a literatura de fantasia e aventura iniciada por Júlio Verne. Se a esta mescla juntarmos algo de Edgar Allan Poe teremos uma aproximação às raízes do fantástico do século XX, onde O Senhor dos Anéis e o incontornável Harry Potter forneceram a alavanca decisiva para o triunfo do género.
No meio de todas estas influências há um nome algo esquecido que funcionou como charneira do fantástico: Ray Bradbury. Ele, com dois livros fundamentais para a história da literatura do século XX, marcou a transição a ficção científica para o fantástico. Refiro-me ao inesquecível Fahrenheit 451 e a este “Algo Maligno vem aí”.
O título, retirado de um poema de Shakespeare, denuncia o caráter misterioso e algo negro da obra.
Antes de mais convém chamar a atenção para uma curiosa confusão relacionada com a tradução. Na contracapa desta edição fala-se de um “circo” que chegou à cidade onde se desenvolve a ação. No entanto, o tradutor, ao longo da obra, em vez de “circo” usa o termo “feira”. Confesso que fiquei confuso; aquilo não é um circo nem muito menos uma feira. As descrições minuciosas de Bradbury sugerem uma espécie de “parque de diversões”. Para desfazer a confusão tive o cuidado de consultar o original, verificando que o autor usa o termo “carnival” que, em inglês dos EUA significa “parque de diversões”. Fica então o mistério de descobrir por que razão terá o tradutor preferido a equivoca e confusa palavra “feira”…
Voltando ao livro: um das aspetos mais geniais deste livro é a caraterização das personagens: Jim e Will são duas crianças em que todos nos revemos, à procura de mistérios e aventuras, descobrindo os monstros que há na feira, digo, na vida. Charlie, pai de Will é o adulto que nunca foi criança e procura agora esse novo mundo, onde pudesse, numa palavra, viver. Afinal sem infância não há vida e sem fantasia não há infância.
Com aparência de obra de literatura fantástica, este livro é muito mais do que isso: revela uma visão negra da vida, onde o parque de diversões simboliza um mundo negro para onde as crianças são atraídas mas onde só encontram o mal.
Por outro lado, por todo o livro, o absurdo do tempo – o carrossel que avança e recua na idade dos que o usam, só leva à infelicidade, seja em que idade for. A ilusão de enganar o tempo conduz invariavelmente à desgraça. Seja na vida, seja na morte, tudo é tenebroso; neste “carnival” não há diversão, apenas ambição, ilusão e desilusão.
No final do livro, de forma encantadora, uma luz de alegria: é com o sorriso que o pai de Will vencerá… afinal, no carrossel negro da vida também há redenção…