terça-feira, 20 de outubro de 2009

As Pessoas Felizes - Agustina Bessa-Luís

O pano de fundo de “As pessoas felizes” é o Porto burguês dos últimos tempos do Estado Novo. A cidade e a região são dominadas socialmente por uma burguesia de carácter forte, tradicionalista, aparentemente aberta mas profundamente marcada pelas regras de um conservadorismo que situa a meio caminho entre a base rural e um formalismo urbano anacrónico. No entanto, o formalismo é imprescindível à manutenção de um cosmos social rígido e que se procura perpetuar. Os tempos são de crise, as dificuldades económicas e as convulsões sociais parecem abalar esta sociedade petrificada mas esta sobrevive num estertor de desespero e resistência.
As convenções enleiam as pessoas numa teia dentro da qual elas procuram ser felizes. Mas trata-se de uma felicidade bem delimitada por essa mesma teia: tudo se passa como se o mundo burguês fosse um microcosmos onde nenhuma emanação do espírito pode penetrar. A vida interior é algo que a personagem principal (Nel) traz para esse mundo mas é precisamente essa vida interior que não lhe permite fazer parte desse conjunto de pessoas felizes. O mundo da aparência tem de triunfar, mesmo que isso signifique a castração do ser humano enquanto ser pensante e individual. Por isso, Nel é a ameaça à estabilidade da família; ela representa os tempos perigosos que se aproximam (o enredo desemboca nos inícios dos anos 70) e não apenas a mulher desprezada na sua qualidade de ser desprovido de senso. A exclusão de Nel é a exclusão do individualismo, do espírito crítico, do pensamento autónomo. Ser mulher é, neste enquadramento mental, por si só, um factor de exclusão a não ser que ela se enquadre num esquema hierárquico onde assuma um papel de sevícia ou de idolatria: a mulher só pode ser respeitada se inspirar admiração ou viver na submissão. Qualquer existência individual que escape a esta concepção hierárquica da sociedade, é rejeitada.
Num estilo profundo, trabalhado e comprometido, Agustina transpõe para este livro o sentimento de uma mulher “do Norte”, tão encantada quanto desiludida perante a beleza de uma região e a altivez de uma sociedade desprovida daquela dimensão humana que permitiria a sobrevivência do ser individual e autónomo.
É esta a impressão que me fica deste livro: um intenso lamento perante uma elite social de coração empedernido, acomodada a valores anacrónicos e defensora de paradigmas mais velhos que o vinho que fez a prosperidade da região.
Não é um livro fácil porque a alma humana nada tem de fácil; e porque não é uma estória que Agustina nos conta; é uma reflexão sentida e complexa de uma escritora genial. Nobel, diria eu.

domingo, 11 de outubro de 2009

Miguel Sousa Tavares - Equador

Romance histórico, devaneio de jornalista, novela ou romance clássico? Pouco interessa a definição. Equador é uma obra onde o estilo jornalístico do autor vem ao de cima, nas suas descrições pormenorizadas, quase cinematográficas e às vezes fastidiosas. De facto, o estilo pouco inovador de M. Sousa Tavares é contrabalançado, nesta obra, pela facilidade de expressão, por uma linguagem desprovida de reflexões ou considerações filosóficas, o que torna a leitura fácil e fluida.
Não se trata, portanto, de uma obra de grande fôlego literário nem era isso que pretendia o autor. Fica a ideia que a intenção primordial era prender o leitor, no bom estilo do romance realista. A emoção que nos leva a ler “só mais uma página” antes de devolver o livro à mesa de cabeceira está presente até ao final, com um desfecho  que tem tanto de inesperado como de inquietante. Mas durante as mais de quinhentas páginas deste volume o leitor é permanentemente presenteado com acontecimentos inesperados e intrigas bem próprias de um ambiente onde Luís Bernardo procura sobreviver num autêntico campo de batalha onde se confrontavam valores e interesses.
Luís Bernardo foi nomeado (pelo rei D. Carlos) Governador de S. Tomé e Príncipe numa altura em que os ingleses reclamavam a existência de trabalho escravo, aparentemente com o objectivo de combater a concorrência portuguesa em África. Cabia ao novo governador defender os interesses nacionais perante os ingleses e, ao mesmo tempo, zelar para que o trabalho escravo fosse de facto banido. Nessa missão ele confrontar-se-á com o poder dos roceiros, os donos das fazendas, com mentalidade tradicional. Mas o maior desafio será a forma como o nosso herói se irá debater com princípios tão contraditórios como o seu humanismo natural na defesa da pessoa humana perante o interesse económico que justificava a escravatura. Por outro lado, era preciso cumprir a aliança com Inglaterra, manter relações amistosas com o nosso grande concorrente e, ao mesmo tempo, a necessidade de fazer prevalecer o interesse da Nação e, dessa forma, a necessidade de defender os colonizadores portugueses.
A montante da história de Luís Bernardo, das intrigas políticas, dos assuntos de saias e de um romance que fica mais ou menos entre o cor de rosa e o dramalhão, há um pano de fundo histórico que o autor estudou meticulosamente e do qual nos dá conta no bom estilo de manual de História do ensino secundário; a importância que as colónias ainda tinham no início do século XX, a problemática aliança inglesa e o agonizar do regime monárquico estão retratados neste livro de uma forma clara e fiel.
No final fica a sensação de termos percorrido 520 páginas sem grandes ideias originais, sem grandes contributos para a inovação literária, mas um pouco mais conscientes dos grandes dilemas da história contemporânea portuguesa, para além de um entretenimento que o livro, de facto, fornece.
Alguém afirmou que as grandes ideias não devem vir dos escritores mas sim dos filósofos. De facto, M. Sousa Tavares nada tem de filósofo, mas muito tem de contador de histórias e de analista político. De facto, os grandes problemas da política portuguesa prevalecem em toda a história contemporânea de Portugal: o caciquismo, a subjugação dos interesses nacionais a interesses particulares, a submissão aos ingleses e, latu sensu, a interesses externos, o compadrio são fenómenos que percorrem sem grandes dificuldades os últimos cem anos da História de Portugal. Estes problemas, coisas que colocam a política na fronteira da diplomacia com a hipocrisia, chocam de frente com o idealismo de Luís Bernardo, um homem bom e justo que, inevitavelmente, vai chocar de frente com essa hipocrisia. David, o inglês, pelo contrário, é o homem político por natureza: adaptável, maleável, capaz de suportar traições e contradições em nome da conveniência política.
Pena é que, por vezes (e isto apenas como nota de rodapé) deixe o seu estilo jornalístico cair em imprecisões de linguagem, sendo o exemplo mais flagrante o uso irritante do verbo “realizar” como sinónimo de “compreender”. Trata-se de um anglicanismo que talvez seja mais um testemunho da submissão lusa às coisas de Sua Majestade Britânica.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Luis Novais - Quando o Sol se põe em Machu Pichu

Na sua primeira incursão pela escrita, Luís Novais conduz-nos ao ambiente místico do Império Inca, fornecendo-nos um testemunho da actualidade dessa cultura dita perdida. Vários personagens, provenientes de diversas partes do mundo, completam nas montanhas do Peru rotas de vidas que se cruzam num ponto de intersecção: um convite misterioso para uma viagem a Machu Pichu.
Trata-se de homens e mulheres comuns que um ser maior terá escolhido para a viagem. Todos excepto um (Jonathan) sofrem de um dos piores, talvez o pior mal que pode atingir um ser humano: a ausência do sonho. É à procura desse sonho que eles vão. De Paris, Berlim, Jerusalém, Nova Iorque, eles trazem sonhos perdidos e o desencanto perante um mundo onde parece ter desaparecido o sentido de humanidade. A Europa não interessa aos europeus; Israel não é a Terra Prometida porque o sonho não se cumpriu; Nova Iorque já não é a terra dos sonhos realizados… Todos procuram no terreno sagrado dos Incas o sonho que as suas vidas matara.
Este livro envolve também uma mensagem de descrença perante o mundo que construímos; um mundo que continua a ser colonialista, quinhentos anos depois de Colombo, substituindo os Pizarros de outrora por paradigmas mais ou menos interesseiros, como o frio e implacável capitalismo liberal. O indivíduo submerge sob a pressão desses paradigmas, muitas vezes escondidos sob a capa de um patriotismo cultivado pelo poder político e económico. Só o individualismo, o culto do ser humano enquanto ser livre e autónomo poderá dar à humanidade a capacidade de sonhar, indispensável para uma vida feliz e equilibrada.
Por outro lado, persiste a predisposição dos povos para a desunião; talvez a América do Sul seja o último reduto de um povo com a consciência da sua unidade cultural. E talvez o espírito de Machu Pichu continue a pairar sobre a humanidade como o ultimo reduto da redenção.
Luís Novais, no seu já inconfundível estilo de frases curtas (que António Pedro Vasconcelos – com evidente e infeliz exagero - diz representar a “geração SMS”) presenteia-nos com uma obra onde o misticismo Inca se mescla com uma visão ao mesmo tempo cosmopolita e individualista da humanidade; aparentemente estamos perante uma contradição filosófica. No entanto, a impressão que me fica do pensamento do autor é esta: a humanidade só poderá ser livre cultivando o ser individual e a soma dessas liberdades resultará num todo em que deixarão de fazer sentido quaisquer formas de dominação ou exploração do homem pelo homem. Só o sonho poderá manter viva a chama deste desejo de libertação; e esse sonho persiste nas misteriosas montanhas do Peru. Inca, de facto, está vivo.