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segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Cadernos dos Subterrâneo - Fiodor Dostoievski

Comentário:
Cadernos dos Subterrâneo ou Notas do Subsolo, Memórias do Subsolo, Diário do Subsolo ou ainda A Voz Subterrânea, conforme a tradução, é o livro mais negro, mais pessimista do grande mestre russo. Não sei qual dos títulos se aproxima mais do original russo mas qualquer deles reflete o espírito da obra: uma análise do interior mais profundo da mente humana.
Já alguém afirmou que se trata da primeira obra existencialista da história da literatura. Eu não ia por aí; o contexto e a arte literária de Fiodor está muito longe dos existencialistas franceses como Sartre ou Camus. Aqui trata-se, antes de mais, de uma visão pessimista da condição humana que faz deste livro a obra menos agradável de Dostoievski. Para quem, como eu, aprecia os belos enredos das grandes obras deste génio, torna-se algo tortuoso deparar com tanto pessimismo, tanta reflexão negativa.
O herói do livro é o típico anti-herói: o homem maldoso, egoísta, cruel que considera a bondade como fraqueza. Um homem inteligente é um homem sem caráter; um homem inteligente é um homem de ação, não de reflexão e essa ação pode perfeitamente ser considerada como maldade. A ação, por sua vez, deve derivar mais da vontade que da razão. Por vezes o homem age mesmo contra a sua própria pessoa porque por vezes é essa a sua vontade superior. Tudo o que o homem precisa para se realizar é de uma vontade independente, suprema, à qual ele se deve submeter.
Depois há homem normal: covarde, apático, escravo da sua condição de normal.
Esta é a visão teórica da condição humana.
No entanto, na segunda parte do livro, esta perspetiva teórica choca de frente, de forma estrondosa, com a realidade. E essa realidade é-nos apresentada através da estória concreta do próprio narrador, num episódio da sua vida, a sua relação com Lizza, uma prostituta.
No contanto com a realidade, podemos dizer com algum humor, que lá se vai o super-homem! Perante Lizza, a prostituta, o narrador acaba por encontrar a sua verdadeira condição humana: escravizado ao amor ou a algo que ele não consegue entender. Perante o seu criado, que o chantageia, lá se vai mais uma vez o poder! Ele escraviza-se ao próprio criado que controla totalmente a sua vida. Ou seja, perante o criado e perante Lizza, acaba-se a teoria do super-homem porque a realidade não se compadece com uma vida ideal, livre, que o espírito teórico desenha na perfeição.
Em conclusão: por mais belos que sejam os ideais, o autor cai na realidade como se ela fosse um abismo: a infelicidade total. Na primeira parte o nosso anti-herói odeia-se porque não consegue corresponder à noção de homem ideal que o seu espírito desenha e na segunda parte ele descreve, com algum humor a forma como esse choque se processa.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

O Adolescente - Fiodor Dostoievski

Sinopse:
Adolescente (1874-1875) é o menos conhecido dos cinco longos romances produzidos por Dostoiévski entre 1866 e 1880, o seu período de plena maturidade literária. Escrito na primeira pessoa, é a história de um filho ilegítimo. Mais um herói humilhado e ofendido, que cresceu entre estranhos, sem quase ter visto a mãe nos seus primeiros anos de vida, e atormentado por uma existência parental «dupla» - o pai biológico e o marido de sua mãe, que lhe deu o nome - divisão acentuada ainda pela diferença de estrato social entre essas figuras parentais. A história de Arkádi é assim uma espécie de «educação sentimental», extremamente complexa pela multiplicidade de contradições que dividem o jovem. Todos os grandes temas de Dostoiévski estão aqui presentes: a luta entre o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas, a degradação moral inerente à condição humana e a possibilidade de redenção...Dostoiévski evidencia nesta obra os sinais terríveis que são o reflexo dessa dicotomia em todos os estratos da sociedade russa nos meados do século XIX.
in wook.pt

Comentário:
Esta é uma das obras mais complexas de Fiodor Dostoievski. Ao longo do livro, deparamos com uma personalidade muito complexa, a do jovem Arkadi, que Fiodor explora com a precisão de um relojoeiro. Nesta obra, mais do que em qualquer outra do génio russo, a alma e o cérebro do protagonista são esmiuçadas até ao limite, revelando-nos algo de extremamente complexo: uma personalidade perdida entre impulsos e emoções, uma inteligência que se esvai paulatinamente, perdida entre esses impulsos emotivos que traem qualquer racionalidade.
Nunca gostei do título de mestre do romance psicológico que vulgarmente é atribuído a Dostoievski, porque tal atributo é manifestamente redutor. Mas o certo é que se há obra em que essa designação pode encaixar, é esta. O próprio enredo parece ser deixado em segundo plano; ou melhor: o enredo serve apenas para reforçar toda uma abordagem psicológica do comportamento de Arkadi; o enredo é a expressão das hesitações, dúvidas e impulsos do jovem. É por isso que este livro pode ser considerado maçador por alguns leitores mais impacientes: a ação decorre de forma muito lenta.
Um dos motivos que me leva a considerar Fiodor um génio ímpar é a forma como ele lê e interpreta a alma humana. Ao ler estas páginas, ficamos com a sensação que Fiodor leu e estudou profundamente as obras de Freud. No entanto, ele viveu várias décadas antes da publicação das obras do fundador da psicanálise. E os fenómenos descritos por Freud, como a neurose ou o peso dos traumas de infância na vida das personagens, estão lá, em todas as obras de Fiodor. Arkadi sofreu as consequências de uma infância conturbada, onde não faltou um pai ausente, uma mãe que abandonou o marido e até um amigo violento. Essas marcas fizeram dele o adolescente intempestivo e com um caráter peculiar, cheio de dúvidas e contradições: ele é muitas vezas apático, mesmo medroso e de repente assume atitudes de enorme coragem; a sua relação com Versilov exibe sempre um inacreditável misto de paixão e ódio; o seu estado de espírito oscila entre a depressão e a alegria exaltada, sem meios termos; a sua vida é pautada pelo irracional, pela emoção, mas ele não deixa de ser dotado de uma inteligência brilhante. Quer dizer: Arkadi é um somatório de contradições.
Por outro lado, a impulsividade e emotividade de Arkadi simbolizam também o caráter que o autor atribui ao povo russo, muito emotivo, deixando-se dominar pelo sentimentalismo, em desfavor da inteligência. Por outro lado, ao longo de toda a obra, está bem patente a crítica ao servilismo relativamente ao estrangeiro, desde o "vicio" snobe de falar francês até à influencia inglesa na politica e na economia. Há mesmo um momento hilariante no que respeita a esta crítica, quando Fiodor no conta um episódio anedótico mas cheio de intenção crítica:algures numa estrada havia um enorme penedo a dificultar o trânsito; o governo mandou fazer um estudo e gastou-se dinheiro; houve propostas que chegaram ao ponto de construir uma via férrea, que os ingleses contratariam por alguns milhões de rublos, para tirar dali a pedra. E depois de muitos estudos e de planos milionários, os mujiques (camponeses) encontraram uma solução: abrir um buraco ao lado, empurrar para lá a pedra e cobri-la de terra. Assim se fez. Mas a tentação é sempre esta: lá como cá, ontem como hoje, é preciso gastar dinheiro e entregá-lo a alguém...
Em termos formais, este é o romance mais inovador de Dostoievski; a ação decorre no passado, em que os flashbacks se sobrepõem, sem linearidade mas também sem deixar que o leitor alguma vez perca "o fio à meada".
Como não podia deixar de ser numa obra deste escritor, a critica social está sempre presente; a fidalguia russa, muitas vezes ociosa e sempre pouco produtiva, vai alimentando um estatuto baseado nas aparências burguesas mantido na maior parte dos casos por fortunas apenas aparentes e recorrendo constantemente ao crédito. Na verdade, na sociedade peterburguense do século XIX era normal que estes fidalgos vivessem do crédito, alimentando inúmeros usurários. Por outro lado, vícios públicos como a prostituição e o jogo (do qual o próprio autor foi vítima) estão também por todo o lado. Dostoievski tinha plena consciência de que nunca poderia haver uma verdadeira evolução na vida da Rússia sem uma verdadeira revolução ao nível das relações sociais; e não se tratava apenas do problema da servidão; essas réstias de feudalismo eram apenas os sinais de toda uma sociedade caduca que viria a provocar as graves convulsões do início do século XX. E (também) nesse sentido, a obra de Fiodor foi premonitória.
Mas é no âmbito filosófico que, a meu ver, este romance tem um alcance mais modernista. A geração de Arkadi, a nova geração russa da segunda metade do século XIX: o caráter de Arkadi que expus acima representa a geração russa de finais de século, marcada pela influência política do socialismo e do anarquismo e pela influência filosófica de um certo niilismo. Este assunto, aliás, parece ser transversal a toda a obra de Dostoievski mas é em Os Irmãos Karamazov que explana melhor esta ideia: a de uma geração descrente, assente sobre a desconfiança no futuro e uma certa resignação perante um presente em que as ideias revolucionárias não se afiguram muito concretas. O século XX mostraria, mais tarde, que, afinal, essas ideias revolucionárias podiam concretizar-se...

quarta-feira, 18 de junho de 2014

O Ladrão Honesto e Outras Histórias - Fiodor Dostoievski


Sinopse:
Este décimo terceiro volume da colecção «Obras de Fiódor Dostoiévski» é uma colectânea de contos e novelas que reúne quatro obras escritas ou publicadas entre os anos de 1848 e 1849. São elas "O Ladrão Honesto", "Uma Festa com Árvore de Natal e Um Casamento", "O Pequeno Herói" e "Nétotchka Nezvánova". Os dois últimos títulos ficarão para sempre associados às circunstâncias conturbadas que envolveram a sua concepção — "Nétotchka Nezvánova", originalmente projectado por Dostoiévski para ser um romance, foi abruptamente interrompido pela prisão do autor, que só anos mais tarde o viria a concluir, com grandes alterações, e optando por transformá-lo num conto; "O Pequeno Herói" foi escrito durante o encarceramento na cela solitária da Fortaleza de Pedro e Paulo. Não obstante as vicissitudes biográficas, o génio de Dostoiévski nunca deixou de se manifestar em todas as páginas da sua obra, e é com deleite que o reconhecemos, uma vez mais, nesta colectânea que espelha com nitidez o conhecimento profundo que o escritor tem da alma humana e a sensibilidade ímpar com que retrata as suas variegadas expressões e idiossincrasias
in www.presenca.pt
Comentário:
Em narrativas curtas, este livro apresenta-nos uma valiosa amostra de todas as características que fizeram de Fiodor Dostoievski um escritor único: o seu humanismo, a sua sensibilidade em relação às injustiças sociais, a capacidade de crítica social objetiva e mordaz e, acima de tudo, aquela magnífica capacidade de penetrar nas profundezas da mente humana, através de personagens reveladoras dos dilemas e conflitos interiores que caraterizam o ser humano.. É isto que faz dele um dos pioneiros e mestres do chamado romance psicológico.
O conto "O Pequeno Herói", escrito na prisão, é um notável exercício literário em que o autor se coloca na pele de uma criança, interpretando e expondo com genialidade todos os dilemas da criança rejeitada e incompreendida, vítima de uma sociedade fútil e egocêntrica. Uma criança esmagada por essa sociedade feita de rivalidades e aparências, vai descobrindo o feminino como refúgio e encanto da alma. Mas também depressa esses encantos esbarram nos vícios e na própria degradação da condição feminina, também ela esmagada pelas constrições sociais.
O conto de maior dimensão, já próximo do romance, Netotchka Nezvánova, é uma extraordinária incursão pela mais profunda miséria da sociedade russa do século XIX, dominada pela frivolidade e pelo vício. A protagonista, Netotchka, é vítima das tremendas desigualdades sociais da época, marcada ainda pela servidão feudal dos tempos do czar. A miséria revoltante e o ambiente de violência doméstica em que vive, num meio onde predomina o álcool e a degradação, constituem o quadro de vida de Netotchka. A miséria em que vive vai criando na criança uma estranha sensação de culpa, que mais não é que o reflexo do esmagamento da personalidade. No entanto, não são apenas as condições sócio-económicas que preenchem este quadro de miséria e infelicidade: quando Netotchka  se vê num meio social elevado, depois de adoptada por um príncipe, nem por isso ela encontra a felicidade; a miséria material é substituída por outros vícios e injustiças. O estigma da sua condição social permanecerá e a sua personalidade permanecerá esmagada.
A prosa de Dostoievski, no seu realismo e humanidade, contradiz todo o preconceito de que este génio é vítima em alguns tipos de leitores; este livro contradiz todos aqueles que continuam a afirmar que Dostoievski é chato e difícil. Difícil é apenas sentir a miséria e suportar a infelicidade dos seus personagens, uma vez que a arte do génio leva o leitor a sofrer como se revivesse a história. A escrita, essa, é objetiva e fluida. Aí reside um dos aspetos mais geniais deste grande escritor: a facilidade com que as misérias que descreve entram na mente de quem lê, de forma fácil e clara. Talvez este seja o livro ideal para quem pretende iniciar-se na leitura de Dostoievski ou então para quem pretende reformular a sua opinião.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Contos Russos - Dostoiévski, Andréev, Tolstói

Quem está habituado a confrontar-se com as sofridas personagens de Dostoievski, com os seus profundos dilemas morais, com as culpas e redenções de que são feitas as suas vidas, não deixa de ficar absolutamente surpreendido com a natureza satírica e cómica do primeiro conto desta obra: O Crocodilo, um conto infelizmente incompleto de Dostoievski.
Trata-se da história fantástica de um homem que, num centro comercial, é engolido inteiro por um crocodilo em exposição. Aquilo que à partida seria uma grande desgraça é descrito da forma mais surrelista que se possa imaginar. O “engolido”, que permanece vivo, vai falando para o exterior e em breve se apercebe que está numa situação bastante cómoda, da qual pode tirar grandes dividendos, nomeadamente sob a forma de dinheiro e fama. À sua volta, muitos procuram explorar ao máximo a situação. E o seu único amigo, aquele que o tenta libertar, vai esbarrando com uma tremenda máquina burocrática. Os burocratas chegam mesmo a equacionar a hipótese de considerar lesado o dono do crocodilo porque o homem se meteu lá dentro, invadindo propriedade privada.
Também a situação profissional do “engolido” é muito dúbia: estará ele prisioneiro, ou em férias, ou em serviço?
Mas à medida que o tempo passa vêm ao de cima as evidentes vantagens económicas de manter o homem na barriga do animal: um crocodilo com um homem dentro rende muito mais dinheiro em qualquer exposição. Além disso, o próprio se dá conta que naquele estado poderá ser muito útil à humanidade, estudando o crocodilo por dentro e dedicando-se à reflexão. É certo que seria considerado, por alguns, como um mandrião. Mas não são mandriões os grandes homens da governação e dos negócios?
O segundo conto, Lázaro, de Leonid Andréev, é uma bela e fantástica reconstituição da vida de Lázaro depois de ter sido ressuscitado por Jesus Cristo.
Lázaro venceu a morte, diz a Biblia. Andréev diz-nos que ele a transportou consigo depois de ressuscitado. Por todos os sítios onde Lázaro passasse, os homens que o olhassem nos olhos, comungariam dessa morte. E Lázaro, com a morte no corpo e na alma, espalharia a mais profunda escuridão… A morte, afinal, era invencível. Nem a ressurreição teria sido capaz de a vencer.
A morte é também o tema do terceiro e último conto: A Morte de Ivan Illitch, de Leon Tolstoi. Já escrevi em vários sítios que este conto, ou pequeno romance, é uma obra-prima da literatura mundial. É uma visão absolutamente sublime da morte. O comentário a esse conto encontra-se aqui.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

O Idiota - Fiodor Dostoiévski

O Príncipe Lev Nikoláevitch Míchkin (o idiota) é o protagonista desta história. Epilético, ele é vítima da incompreensão da doença por parte da sociedade em que se insere. Após fazer um tratamento na Suíça, regressa à Rússia, onde vive toda uma trama de paixão e ódios. Como é peculiar nos grandes romances de Dostoiévski, aqui se encontram retratados os traços essenciais da sociedade russa do século XIX, com todas as suas contradições e conflitos.
Mais uma vez, realça-se a extrema complexidade psicológica das personagens, como se o seu mundo interior fosse maior que tudo o que constitui o mundo. O Homem é, para Dostoiévski, um emaranhado complexo de sentimentos e pensamentos, de tal forma que o encontro com a identidade é uma quimera para a generalidade dos mortais. O leitor, esse, inquieta-se permanentemente com a inquietação das personagens. Neste mundo interior complexo, ninguém é “normal; a loucura não é atributo do idiota; é denominador comum dos seres humanos. O próprio autor, quando aborda assuntos que o inquietam nunca deixa uma afirmação definitiva; tudo fica a pairar no limbo da incerteza: a dúvida sobre a pena de morte, a perplexidade perante a figura de Jesus Cristo que não venceu a morte, a hesitação entre liberalismo e socialismo versus conservadorismo, enfim, nada é definitivo nem definido.
Perante tantas incerteza, afinal, quem é o idiota? Será o doente Lev Míchkin ou qualquer um dos personagens perdidos e incertos que povoam este magnífico romance?
Ser idiota é, acima de tudo, uma definição social. Lev Míchkin é bom, ingénuo, generoso, logo… idiota. O mundo das aparências burguesas em que se afundou faz dele idiota sem culpa formada; na maior parte das situações ele é bode expiatório, bobo da corte ou instrumento de interesses. No entanto é nele que reside a humanidade; ou melhor, a réstia de humanidade no universo social em que se insere.
Neste romance, talvez mais do que em qualquer outro está bem patente a decepção de Dostoiévski perante a humanidade. O formalismo nas relações sociais disfarça a hipocrisia e uma quase repugnância por qualquer espécie de sentimento. Exemplo disso é a total frieza como é encarada a tentativa de suicídio de Ipolit. Este afirma: “Vou olhá-los nos olhos. Vou despedir-me do Homem”. Aos poucos, durante a longa descrição deste episódio, a “humanidade” vai-se restringindo a Lebdev, o bêbado e a Keller, o ignóbil pugilista. Os outros, os socialmente bem-aceites afastam-se e riem de Ipolit.
Trata-se de uma obra muito profunda e, ao mesmo tempo, bem humorada, onde o autor procura pôr em relevo as grandes contradições do ser humano, questões que para sempre ficarão sem resposta: a natureza do bem, do belo, do mal, do ódio, da aversão, do amor, etc

terça-feira, 18 de julho de 2006

Os Irmãos Karamazov - Fiodor Dostoievsky

“Os irmãos Karamazov” é talvez a grande obra-prima do escritor russo. Para além de um enredo riquíssimo, esta obra revela a grande capacidade de análise psicológica dos personagens, que é característica essencial de Dostoievsky. Esta edição divide-se em 2 volumes. O primeiro, mais reflexivo, o segundo mais narrativo. Destaca-se a análise social e política da Rússia do seu tempo. Aliocha é a personagem principal do romance. No entanto, o próprio autor revela que este homem nada tem de herói, no sentido convencional do termo. Passa quase despercebido durante grande parte do enredo mas há uma chave para compreender a razão que levou Dostoievsky a colocá-lo como “herói”. É o único personagem que não julga ninguém. Aliocha “nunca desejaria julgar os homens e em caso algum seria capaz de os condenar.” É esta uma das grandes lições do mestre russo: a maioria dos homens cede sempre à tentação de julgar. Aliocha, pelo contrário, ouve, compreende e nunca faz juízos de valor sobre os outros. É assim uma espécie de guardião da sensatez perante as loucuras e paixões dos Karamazov. Um dos temas mais queridos a Dostoievsky é o papel da religião. Sendo um homem de fé, não deixa de criticar determinadas práticas da religião ortodoxa instituída. Defende uma religião essencialmente voltada para os mais desprotegidos, encarnada em Aliocha mas também no ancião Zossima. Uma visão social mas positiva da religião. É o próprio ancião que diz: “os homens foram criados para a felicidade, rejeitando assim as visões apocalípticas e a necessidade de sacrifícios para atingir o céu. O padre Ferapont, rival de Zossima, por exemplo, “vê maravilhas” graças ao intenso jejum a que se sujeita. Torna-se assim um mártir mas também um ser completamente desligado do mundo e absolutamente inútil. Um dos pontos mais fortes da obra de Dostoievsky é análise da alma russa, aqui representada pela família Karamazov. Estes, se caem no abismo “vão sempre de cabeça para baixo”. Sentem prazer na angústia, na tristeza. O homem é um mártir do destino. A vida é essencialmente sacrifício e dor. Mas é também sensualidade, vivida com excesso, com as fortes paixões da alma russa. Assim é Dmitri, que usa os outros como plataforma para a felicidade, à procura do excesso. Mas o seu espírito contraditório leva-o da sensualidade extrema à angústia: procura o prazer mas tem consciência das suas baixezas e vive-as como se fossem uma fatalidade. Mau grado o seu apurado espírito crítico, Dostoievsky nunca perde aquela enorme benevolência perante o ser humano, descobrindo sempre um fundo positivo, mesmo que se trate do detestável Fiodor ou do irascível Dmitri. Quanto à análise social, desenvolve uma perspectiva de simpatia para com os pobres realçando a sua honra e dignidade. Vítimas de injustiças e abusos, numa Rússia recém saída da servidão, os pobres são o refugo de uma estrutura económica e social caduca, onde prevalecem muitos dos privilégios do antigo regime. Mas o alvo preferido do escritor é a velha burguesia avarenta, representada por Fiodor. O pequeno Iliucha é aqui o símbolo da opressão feudal que ainda se sente na Rússia de Dostoievsky. Outra dimensão do pensamento de Dostoievsky tem a ver com a religião. Ivan, o ateu, diz: “é extraordinário que essa ideia da necessidade de Deus tenha surgido no espírito de um animal tão selvagem e perverso como é o homem. Dostoievsky não comunga do ateísmo de Ivan, mas compartilha com ele uma visão muito negativa da alma humana. Ao longo da obra coloca-se uma ênfase muito especial no sofrimento atroz de que são vítimas as crianças. E no meio de tanta dor, onde fica Deus? O ancião Zossima é o porta-voz de um pensamento religioso que Dostoievsky parece partilhar: Zossima revela uma visão optimista do mundo, um amor à humanidade que Dostoievsky parece partilhar. No entanto, essa benevolência é acompanhada de uma certa mágoa pelo destino, sempre negativo, sofredor, do ser humano. E o processo de Dmitri revela precisamente essa necessidade de expiação que envolve o ser humano. Perante a fraqueza da alma humana, a vida é uma constante expiação dos pecados e fraquezas. Daí a fatalidade do sofrimento humano. No meio de tudo isto, Aliocha aparece como o representante do ser virtuoso que, com resignação e um sorriso, enfrento o destino com benevolência. Daí o seu carácter solidário e bom. Dostoievsky compreendeu melhor do que ninguém a alma russa. Sofredora pelas condições materiais da existência mas facilmente entregue aos prazeres do mundo. Mas, ao mesmo tempo, sofredora pelo peso do remorso, pela necessidade de expiar essa mesma tendência para a devassidão. Desta forma é o próprio Dostoievsky que se confunde com a alma russa. Até o velho Fiodor, cúmulo da vida boémia, é perseguido pela consciência. Até Zossima, homem de paz, vive a expiar os pecados da juventude. A culpa está sempre presente. No fundo, todos os personagens da obra são uma mistura do bem e do mal, revelando ora uma ora outra destas facetas. Lisa é assumidamente má. O protótipo da maldade. Mas no fundo todos são maus. Catarina, que ama desesperadamente Dmitri é a mais importante testemunha de acusação e é ela quem mais contribui para a sua condenação. Mesmo insistindo na sua inocência, Dmitri aceita o castigo por necessidade de expiação.

quinta-feira, 12 de maio de 2005

O Jogador - Fiodor Dostoiévsky

“O Jogador” não é uma obra-prima; porque foi escrito por Dostoiévsky e os termos de comparação são, obviamente, os seus grandes clássicos. É quase escusado dizer que esta obra não tem o fôlego, a profundidade nem a genialidade de “Crime e Castigo” ou “Os irmãos Karamazov”. Mas para qualquer outro escritor isto seria uma obra genial. O problema é que aos génios pedimos sempre obras-primas. Mas não deixa de ser uma obra excelente, se tivermos em conta os propósitos que o levou a escrevê-la: conseguir, o mais rapidamente possível, dinheiro para pagar as suas próprias dívidas de jogo. Portanto, trata-se, em grande parte, de uma obra de cariz (ou pelo menos de inspiração) autobiográfica. Trata-se de uma análise magnífica da vida e das angústias de um jogador. A dependência envolve Alexis Ivanovitch até ao limite. Mas não se trata apenas de uma análise psicológica. O enredo envolve uma curiosa e profunda dimensão de análise social e até com implicações de crítica política. O que está em causa é muito mais do que a vida e a desgraça de Alexis. É a critica social à aristocracia feudal que persiste numa Rússia esclerosada e anacrónica. Uma nobreza de nome, empedernida, estupidificada e inútil, simbolizada pelo patrão de Ivanovitch, o General. Tratava-se do meio ideal para que, mais tarde, viesse a eclodir a Revolução Soviética. Num enredo que se desenrola nesse meio aristocrático, o vício do jogo é encarado por Dostoiévsky como um sintoma dessa falta de inteligência de que padeciam as elites nobiliárquicas. Daí a sua admiração pela Inglaterra – um país livre, onde pululavam as ideias progressistas da época e onde sobressaía uma aristocracia culta, investidora, dinâmica.

sexta-feira, 25 de junho de 2004

Crime e Castigo - Fiodor Dostoievski

Personagens interessantíssimas, estudadas psicologicamente de forma profunda e, ao mesmo tempo, descritos de maneira simples e atractiva.
A descrição da miséria da família Marmaledov é genial: o alcoolismo como consequência de uma estrutura social injusta e angustiante. A amizade de Razumikin por Ródia é comovedora. Trata-se de um personagem interessantíssimo: libertino mas sensível; hedonista mas sofredor; algo ingénuo mas profundamente dedicado.
Ródia envolve toda uma tentativa de explicação do comportamento e do espírito do criminoso: levado pela miséria, provocado pela injustiça social, é duramente castigado pela sua própia alma, o juiz maior. Persegue-o a tentativa desesperada de encontrar uma explicação racional e moral para o crime.
É também uma obra sobre uma outra espécie de crime: a maldade humana, representada de forma soberba por Svidrigailov e Lujin. Dela transparece o lamento por uma sociedade injusta e, ao mesmo tempo, a convicção reconfortante do “castigo na terra”.
É acima de tudo uma obra sobre a loucura; sobre o limite ténue entre a realidade e a loucura. Dostoiévski parece acreditar na bondade natural da alma humana. Os seus personagens são loucos, bêbados, chantagistas, criminosos de toda a sorte, usurários, miseráveis mas em todos eles encontramos um fundo de humanidade e uma espécie de consciência que os impele para a expiação (mais ou menos voluntária) dos seus pecados. Procura sempre compreender e explicar a alma humana nas suas infindas facetas.
Romance psicológico? Talvez! Para o autor, todos os comportamentos, mesmo os mais “desviantes” têm explicações e são compreensíveis pela razão. Mas o autor de tais comportamentos é o único que nunca os compreende. Daí a loucura, no seu conceito social; daí a tortura interior, o verdadeiro castigo. A verdadeira justiça, as penas mais duras, são as que o sujeito impõe a si próprio. A cadeia, os trabalhos forçados, a justiça dos homens é, por isso, vista como a verdadeira liberdade – porque aí os homens encontram-se, finalmente, entregues a si próprios: livres.
No final, como que caído do céu, o amor revela-se a solução para todos os males da alma de Ródia – final talvez demasiado lírico para uma aventura tão real como esta.