domingo, 9 de novembro de 2014

A Peregrinação do Rapaz sem Cor - Haruki Murakami


Comentário:
Este é, sem dúvida, o mais intimista dos livros de Murakami. Escrito em 2013 e tratando-se da sua mais recente obra, ficamos expectantes sobre a possibilidade de ele marcar uma certa viragem na linha que o escritor vinha seguindo. De facto, aqui vê-se menos o âmbito social, a dimensão crítica, a reflexão sobre o mundo exterior e, pelo contrário, entramos numa certa reflexão interior, num questionar da existência que pode marcar essa hipotética viragem.
Seja como for, não deixa de estar bem patente, também neste livro, o traço indelével da escrita deste génio japonês: o confronto entre o real e o imaginário, ou entre o concreto e o simbólico. Por várias vezes já afirmei que, na minha perspectiva, o encanto da sua escrita reside muito na forma como o autor nos enquadra o fantástico no mundo real; mas este "fantástico" nada tem a ver com a moda literária que inundou o mundo literário ocidental pós-Martin; tem a ver, isso sim,com aquele misticismo oriental que tanto  tem encantado o ocidente.
Nesta obra, a análise interior da alma humana incide sobre a vida de Tsukuru Tazaki, um homem marcado pela paixão pelos comboios. Na sua juventude gostava de ver passar os comboios, da mesma forma que, ao longo da sua existência foi vendo passar a vida. A obra está escrita em três tempos narrativos: na sua juventude, Tazaki teve quatro amigos inseparáveis; de forma misteriosa, eles separaram-se. Aos vinte e um anos, Tazaki viveu uma amizade intensa com Haida; de forma misteriosa eles separaram-se. Aos trinta e seis, conheceu Sara. Irá, também agora, limitar-se a "ver passar" Sara na sua vida?
Os comboios simbolizam o devir; o correr do tempo e a necessidade vital que o ser humano tem de o fazer parar; é por isso que, em adulto, Tazaki se torna engenheiro de estações de caminho de ferro: "se não houvesse estações, os comboios não paravam". É vital construir estações na vida.
Mas essas estações, essas paragens, não são mais do que momentos fugazes; é esse o drama maior; a paragem, em breve dá lugar à separação. Mais do que as uniões, são as separações que marcam a vida do nosso herói; separações misteriosas como são misteriosas todas as separações que povoam as nossas vidas. Como é misteriosa a nossa vida e insondável qualquer destino.
Todo este simbolismo é encantador na escrita de Murakami; na literatura, o simbolismo é algo de muito perigoso. Muitas vezes ele resulta numa escrita confusa, enigmática, porque o leitor comum não consegue desvendar as mensagens que o escritor quer transmitir mas que, sádico e vaidoso, esconde. Em Murakami,pelo contrário, o simbolismo é claro,transparente... real.
Tecnicamente, um dos aspetos mais encantadores e geniais da escrita de Murakami (aspeto esse que ele tem vindo a aprimorar ao longo da carreira) é a forma como a resolução de um mistério dá lugar a um novo mistério. Quando se explica algo que inquietava a mente do leitor, é a própria resposta que dá lugar a outra questão; e assim a leitura avança de forma imparável. É muito difícil parar de ler Murakami. E quando o livro termina ficamos sempre com aquela ansiedade pelo próximo que esperamos seja publicado o mais depressa possível.
Sem duvida, este é o escritor atual que, na minha opinião, mais tem feito por merecer um prémio Nobel.

Sinopse:
Nos seus dias de adolescente, Tsukuru Tazaki gostava de ir sentar-se nas estações a ver passar os comboios. Agora, com 36 anos feitos, é engenheiro de profissão e projeta estações, mas nunca perdeu o hábito de ver chegar e partir os comboios. Lá está ele na estação central de Shinjuku, ao que dizem «a mais movimentada do mundo», incapaz de despregar os olhos daquele mar selvagem e turbulento «que nenhum profeta, por mais poderoso, seria capaz de dividir em dois». Leva uma existência pacífica, que talvez peque por ser demasiado solitária, para não dizer insípida, a condizer com a ausência de cor que caracteriza o seu nome. A entrada em cena de Sara, com o vestido verde-hortelã e os seus olhos brilhantes de curiosidade, vem mudar muita coisa na vida de Tsukuru. Acima de tudo, traz a lume uma história trágica, que a memória teima em não esquecer. Os quatro amigos de liceu, donos de personalidades diferentes e nomes coloridos, cortaram relações com ele sem lhe dar qualquer explicação. Profundamente ferido nos seus sentimentos, Tsukuru perdeu o gosto pela vida e esteve a um passo da morte. A páginas tantas, lá conseguiu não perder a carruagem. Com "Os Anos de Peregrinação" de Liszt nos ouvidos, regressa à cidade que o viu nascer e atravessa meio mundo, viajando até à Finlândia, em busca da amizade perdida. E de respostas para as perguntas que andam às voltas na sua cabeça e lhe queimam a língua. Será que o rapaz sem cor vai ser capaz de seguir em frente? Arranjará finalmente coragem para declarar de vez o seu amor por Sara? Uma inesquecível viagem pelo universo fascinante deste escritor japonês que chega a milhões de leitores espalhados pelo mundo inteiro. Um romance marcadamente intimista sobre a amizade, o amor e a solidão dos que ainda não encontraram o seu lugar no mundo.
In www.fnac.pt

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

O Homem de Sampetersburgo - Ken Follett


Comentário:
Indo diretamente ao assunto: todos os grandes autores têm obras menores e esta (daquilo que conheço) é uma das obras menores de Ken Follett. Obviamente, isto tem uma explicação: é um livro de início de carreira, escrito em 1982. No entanto, aquilo que constitui obra menor para um génio como este, seria considerado um bom livro para um escritor menor. Perante livros monumentais como a Trilogia o Século e principalmente Os Pilares da Terra, este Homem de Sampetersburgo é um livro situado num patamar bem inferior mas não deixa de ter qualidade.
Antes de mais nada convém salientar a eterna paixão de Follett pela História. Mais do que um escritor de romances históricos, ele é exemplar na forma com não se limita a buscar na História um cenário para os seus enredos mas sim na reflexão sobre grandes temas do nosso passado. Neste caso, o enquadramento é fornecido por uma época riquíssima para qualquer escritor: o início do século XX com as suas imensas intrigas políticas que haveriam de conduzir a dois acontecimentos de charneira na história do nosso mundo: a Revolução Soviética e a Primeira Guerra Mundial que agora comemora o seu primeiro centenário.
Alguma ingenuidade típica de um escritor novato fica bem patente nas coincidências mirabolantes que encontramos no enredo, bem como parentescos que se revelam de forma incrível. Estes traços novelísticos vão emergindo em crescendo ao longo da obra, deixando a dimensão histórica e historiográfica para segundo plano, o que não deixa de decepcionar o leitor minimamente conhecedor da obra deste escritor genial. Da mesma forma se desiludem os leitores que procuravam neste romance aquilo que ele prometia à partida: um livro de espionagem e de intriga política; esses traços estão lá, mas vão-se esfumando, em favor da novela.
Mesmo assim não deixam de marcar já presença aqueles que se tornariam os traços mais marcantes da escrita de Follett: uma simbiose perfeita entre História e estória, entre realidade e ficção.
Outro traço muito positivo é a seriedade e a frontalidade com que o autor traça um quadro crítico e por vezes satírico em relação ao moralismo burguês tão em voga naquela época, a que se convencionou chamar Belle Epoque mas que haveria apenas de ser o prelúdio de uma das maiores tragédias humanas da história: a Primeira Guerra Mundial.

Sinopse
1914: a Alemanha prepara-se para a guerra e os aliados constroem as suas defesas. Ambos os lados precisam da Rússia. O Duque de Walden e Winston Churchill planeiam, em total segredo, uma aliança russa mas um homem infiltra-se em Inglaterra com a intenção de deixar a sua marca na História e deixar o país a seus pés…
in  www.wook.pt

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O Último Adeus - Li Marta


Comentário:
Ora aqui está uma bela surpresa que o Clube de Leitura Bertrand de Braga me proporcionou: um livro despretensioso, numa escrita límpida e agradável, que se lê de forma apaixonada e intensa. E uma situação que já se repete, infelizmente, amiúde no panorama literário português: nenhum livro  é divulgado em conformidade com a qualidade que revela; todos sabemos que há desígnios insondáveis nas prioridades das editoras...
Li Marta escreveu um livro sobre a família; sobre os amores da mãe e da avó materna; uma bela história, sem dúvida. E esse tom autobiográfico reforça ainda mais o carácter intimista e, ao mesmo tempo, tremendamente verossímil da obra. Quem lê fica com a impressão clara que é com toda a lógica e com toda a naturalidade que as coisas tenham ocorrido assim. Por outras palavras; trata-se de uma história perfeitamente plausível sobre uma família pobre em plena ditadura de Salazar.
As descrições das épocas retratadas são fiéis à realidade histórica e o realismo da escrita deixo-nos bem clara a imagem do país real nos segundo e terceiro quartel do século, num bom testemunho histórico das condições de vida dos mais pobres nesse contexto: a ingénua religiosidade popular, os costumes, a humildade de quem nada tem e, por outro lado, o peso dos preconceitos, do julgamento da tantas vezes impiedosa e ilógica moral pública.
Apenas um reparo: por vezes a falta de experiência da autora leva-a a atribuir discursos algo elaborados para personagens humildes, com reduzida ou nenhuma escolaridade.
Na aba do livro, a autora confessa, com toda a simplicidade a sua admiração por escritores que não são propriamente génios literários: Danielle Steel, Nora Roberts e Nicholas Sparks. No entanto não foram esses escritores que eu "li" na escrita de Li Marta; o que aqui redescobri foi um novo Júlio Dinis, principalmente naquela simplicidade romântica, naquele bucolismo colorido e, acima de tudo, naquela bondade natural do ser humano. Na verdade, a autora, ao construir todos os personagens, revela uma belíssima crença na bondade natural do ser humano; mesmo na maior miséria, na fome a que o regime de Salazar condenou aquelas ingénuas e puras gentes, há sempre um raio de sol e de esperança. Esta beleza interior da maioria dos personagens, confesso, enterneceu-me e talvez este comentário não esteja a ser suficientemente comandado por uma avaliação "técnica" da obra mas pelos belos sentimentos e pelo prazer de ler que me ofereceu. Mas, ao fim e ao cabo, o que é que procuramos num livro senão a paz, a beleza e o prazer?
É que é isso mesmo que este livro nos oferece: uma paisagem humana cheia de paz, de beleza e um imenso prazer de ler.
À autora, se alguma vez este comentário ler, só posso deixar um sincero OBRIGADO pelos momentos de paz e prazer que a sua leitura me propiciou. Li Marta não é um génio literário; o livro não é uma obra-prima, mas está repleto de motivos para nos deixar bem convictos de que uma leitura como esta pode ser um bocadinho de felicidade.

Sinopse
Baseado numa história verídica, vivida entre os distritos de Viseu e Aveiro. Passamos por localidades como Tondela, Caramulo, Sernancelhe, Moimenta da Beira e Águeda. Três gerações de primogénitas vivem grandes histórias de amores inesquecíveis.
Dionora vive pobremente mas feliz com António. Até ao dia em que descobrem a doença fatal vivida nos anos cinquenta, a tuberculose. Com a morte do marido, Dionora deixa de ter forças para viver.
Luzita, a primogénita de Dionora, terá de lutar pelo primeiro amor da sua vida, um homem de classe ligeiramente superior à dela. Só que o destino salpicou-lhe a vida de negro.
Lídia, a primogénita de Luzita, vive também um grande amor. Mas fica nas suas mãos dar continuidade ao último adeus. Será que é capaz?
in www.wook.pt

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O Diabo dos Políticos - Fernando Évora, João Pedro Duarte, Miguel Almeida, Vítor Fernandes


Comentário:
Se este livro se chamasse O Diabo dos Benfiquistas também não calhava nada mal. 
Quatro bons escritores, quais quatro cavaleiros do Apocaliptro, quatro escribas cheios de sentido de humor e de espírito crítico deixam aqui bem claro que ninguém é perfeito: aquele tom encarnado de princípio a fim não agradou nada aqui ao bracarense :) Até a cor da capa foi escolhida a preceito: vermelha como Lúcifer e como o Benfica. 
No entanto, daqui para a frente escrevei apenas na condição de leitor, abandonando, embora a custo, a minha honrosa qualidade de vermelho com mangas brancas.
E, enquanto leitor, tenho de confessar que me diverti imenso ao ler o diabo do infólio. Para já, tudo começa com a originalidade de um livro que, escrito a quatro mãos, não perde uma linha narrativa coesa. Depois, vem ao de cima o imenso sentido de humor dos autores, apimentado por aquele espírito crítico que, como se diz aqui no Minho, leva tudo a eito, como a espada do rei Afonso curando dores de cabeça à moirama (sem acepção futebolística, note-se).
Mas não se pense que este é um livro escrito a brincar. Há aqui questões muito sérias, cheias de motivos de reflexão. Questões quase transcendentais, mesmo. Por exemplo: seria Adão alérgico a maçãs? Será que todos os demónios, a caminho do Parlamento, têm de passar pelo estádio da Luz? Haverá forma, mesmo que satânica, de quebrar a hegemonia do Norte? Terá o Antipapa D. João Relvas I, alguma vez, poder para defrontar o Papa do Norte? O verdadeiro Inferno fica na Alemanha ou em Boliqueime?
Estas e muitas outras questões podiam fazer deste livro um clássico da literatura universal e dos seus escritores candidatos ao Nobel. Mas não, porque eles até escrevem benzinho mas ousaram maldizer. Renegaram o Coelhinho da Páscoa e também o da Duracell. Enfrentaram descaradamente o Anjo da Guarda e o da Polícia. E o de Castelo Branco também. Por tudo isto, caros autores, se estas linhas tiverem a felicidade de ler, saibam que só uma via vos poderá conduzir à redenção: se um qualquer subsecretário de Estado da Cultura vos ler e amaldiçoar, as portas do Nobel podem ficar abertas. E as do Inferno também.
Termina aqui a primeira parte do meu comentário.
Segunda parte:
Este livro é uma paródia total no melhor dos sentidos. Sarcasmo, crítica, sátira e montes de gargalhadas. Parabéns e obrigado por este divertimento.

Sinopse
Um país chamado Portugal atravessa uma crise e está sob tutela de uma troika. Apesar da maior parte da população viver no limiar de pobreza, uma pequena elite desgoverna a nação, indiferente ao sofrimento dos seus conterrâneos. O Diabo, entediado pela espera de mil anos, vê a sua oportunidade de conquistar, como deputado de um partido de direita, este novo inferno com sede na Assembleia da República. Mas o que o Diabo veio encontrar envergonha até um Príncipe das Trevas. E, de natureza rebelde e contestatária, acaba por se apaixonar por uma deputada da ala contrária… Neste romance, os autores abordam despudoradamente religião, política, sexo, morte… e futebol, pois claro…

sábado, 1 de novembro de 2014

Ocaso das Letras - Pedro de Sá


Comentário:
Nesta publicação da Chiado Editora, este livro vem classificado como “de crónicas”. Custa-me um pouco encará-lo dessa forma; na minha opinião este é um livro de reflexões; um livro de pensamentos e emoções, sentimentos ou apenas emoções dispersas. Ou seja, um livro feito de todos aqueles pensamentos e emoções que compõem a nossa vida. Quase em forma de diário, Pedro de Sá, que já nos impressionara com as suas obras anteriores, oferece-nos um autêntico passeio pela intensa atividade interior que a vida desperta num ser humano sensível aos fenómenos, pequenos e grandes, que o rodeiam.
O maior problema dos livros ditos “de crónicas” é não seguirem aquela linha contínua que desperta e mantém o interesse do leitor, ou seja, uma narrativa; o formato de textos curtos tendem a espartilhar o enredo. Mas se o livro de Pedro de Sá corre, dessa forma, o risco de ser considerado menos apelativo, ele revela, por outro lado, fortes motivos de interesse. Antes de mais, é clara na escrita do autor uma certa procura do sentido da vida; isto pode parecer abstrato, mas o realismo da escrita torna essa procura algo de bem objetivo: esse sentido da vida parece situar-se algures entre dois extremos: o banal quotidiano e uma intensa vida interior. Do gesto mais banal ao pensamento mais elaborado, este livro é uma viagem entre esses dois polos. Afinal, dentro de um ser humano há sempre dois mundos – um objetivo, concreto, e outro feito de pensamentos e sonhos. É dentro desta última esfera que a escrita de Pedro de Sá se move, mas sem que este mundo interior alguma vez se liberte desse outro polo, o concreto. A questão que parece restar é esta: a qual desses dois mundos nos escravizamos? Ou aos dois?
À medida que avançamos no livro, algo vai surgindo, lentamente, como um verdadeiro monstro emergindo de águas profundas: o tempo. Um tempo que é passado, sob a forma de memórias de infância ou de sonhos perdidos, outras vezes tomando forma de saudade – “o passado a nascer-lhe” (pág. 85) é a força da memória, o peso das recordações, o labirinto da saudade. A saudade, uma espécie de dor que fica a meio passo da morte; passado e futuro unidos por uma dor de existir que é única e fatal. Este tom sombrio, de poesia dolorida, faz deste livro uma espécie de catarse da dor; um ocaso que não é só das letras – é da vida.
Enfim, uma obra que merece ser lida, a fazer lembrar Vergílio Ferreira na interioridade da prosa poética ou António Lobo Antunes num intenso  mergulho interior.