Sinopse:
A Costa dos Murmúrios, publicado em 1988, é o mais famoso
romance de Lídia Jorge, tanto em Portugal como no estrangeiro. O seu
aparecimento foi um êxito desde o primeiro momento, tendo chegado a vender
cerca de 50.000 exemplares em menos de um ano. A obra é produto da experiência
que a autora viveu em África e, particularmente, dos seus três anos em
Moçambique, imediatamente antes da queda do regime de ditadura em 1974. Com a
nova ordem política, Portugal aceita a autonomia da sua colónia, que em Junho
de 1975 obtém a independência plena.
O romance reflete a época da luta colonial segundo as
recordações da autora, mas o fio condutor da trama é a traumática história de
amor de Eva Lopo e Luís Alex, combatente ao serviço do projeto imperial
salazarista. O romance abre com um conto relatado na terceira pessoa sobre o
casamento de Eva e Luís. Mas, seguidamente, é Eva que assume a voz da narração
e evoca os últimos vinte anos de vertiginosas transformações. Entre elas, é
particularmente dolorosa a do seu marido, que se converte num repressor
sanguinário, o que conduz Eva a manter, por despeito, uma relação amorosa com
um jornalista mulato.
Para além do seu vigoroso conteúdo como personagem de carne
e osso, Luís é igualmente símbolo de um regime incapaz de gerar futuro algum e
que tenta defender-se pela força. O balanço da evocação é tão lamentável e
desolador como a própria guerra.
(Sinopse incluída na edição Público, coleção Mil Folhas)
Comentário:
A guerra colonial escrita no feminino; as mulheres dos
combatentes; a longa espera num hotel de Lourenço Marques. A espera pela morte.
Que eles venham ou que eles não venham, não sa sabe muito bem qual o desejo
maior. Os dramas da ausência vão sendo substituídos pelos dramas da vida real,
do que sobejou, daquilo que reta aquém da guerra – se é que ainda há alguma
coisa aí. Que eles morram, que eles voltem, pouco importa talvez. Elas, o amor
e a morte – a tríade.
Tudo começa com uma festa de casamento, num toque de
surrealismo que anuncia toda a insanidade da guerra. O racismo, arreigado nas
almas, choca quem lê. Os negros não têm lugar no enredo. Servem apenas para
servir e morrer.
Por todo o lado a vontade irreprimível de matar; sejam
pretos, patos ou flamingos. Sejam combatentes ou negros miseráveis. Matar para
não morrer deixa de ser, a partir de certa altura, a justificação. Depressa se
passa para o matar “para fazer o gosto ao dedo”. Chocante? Não, natural no
mundo colonial de Salazar.
No entanto, este mundo surreal não é uma condenação para
estes personagens; pelo contrário: Luís e Eva abandonaram os seus mundos na
metrópole e procuravam algo mais em África; eles não partiram para Moçambique
como condenados mas como alguém que procura algo melhor do que a realidade que
viviam: ela como estudante universitária e ele como matemático.
O choque de raças e culturas, tema mais que evidente neste
livro é secundado por uma outra dualidade: o masculino e o feminino. Helena, a
esposa do Capitão, aparece no enredo como uma espécie de ideal feminino (o nome
não foi escolhido ao acaso, fazendo referencia a Helena de Tróia). A mulher
fatal. Pelo oposto, o marido, Forza Leal é o exemplo da brutalidade, de toda a
insanidade da guerra. A brutalidade do capitão sobre Helena é um dos aspetos
mais chocantes da obra e sintetiza toda a bestialidade de que o ser humano é
capaz.
Em suma, trata-se de um livro forte, poderoso, cheio de enigmas
e mistérios que fazem da escrita de Lídia Jorge um mundo fértil e recheado de
beleza. Uma beleza, no entanto, algo gótica: melancólica e muitas vezes triste
mas sempre capaz de nos fazer refletir. Pode não ser uma escrita de leitura
fácil mas é daqueles livros que nos fazem pensar. E evoluir. É, por isso, um
excelente livro.