Eis um género (o único fora da ficção) que sempre me encantou: a biografia. A história, como a literatura, é feita de pessoas; de seres humanos. E quando olhamos para um rosto, ou para uns olhos, vemos apenas um resquício de um mundo inteiro. Sim, em cada um de nós há um cosmos completo, um mundo difícil de imaginar por qualquer observador. No entanto, escrever uma biografia não é propriamente o mesmo que fazer um retrato ou contar a história de uma vida; escrever uma biografia com qualidade implica penetrar profundamente na alma humana, mais do que desenterrar arquivos.
É tudo isto que esta biografia de Cleópatra nos oferece: a análise de um mundo perdido e de uma alma imensa. É por isso que esta não é uma biografia qualquer: com ela, a autora conquistou o prestigiado prémio Pulitzer.
Cleópatra é uma das personagens históricas mais misteriosas de sempre; além disso, a imagem que dela temos é, em grande parte, falsa e foi criada pelo cinema. A representação de Cleópatra por ElisabethTaylor sempre teve muito mais força do que qualquer retrato historiográfico.
Mas poucos saberão que Cleópatra tinha um tom de pele que a aproximava muito da raça negra.
Mas o que mais impressiona na figura de Cleópatra tal como nos é narrada neste livro é a sua enorme cultura. A grande rainha era herdeira da sabedoria grega – a dinastia dos Ptolomeus era descendente da monarquia macedónica. Por outro lado, tanto as tradições macedónicas como egípcias destinavam às mulheres o acesso à cultura tal como acontecia com qualquer homem; além disso, vivia em Alexandria, uma cidade maravilhosa cheia de cultura e encruzilhada de culturas: lá se cruzavam os mundos romano, egípcio grego/macedónico, persa, hebreu, etc. Assim, a poderosa rainha falava nove línguas, era especialista em finanças, conhecia profundamente os filósofos gregos, etc. A sua famosa relação com César teve aliás uma faceta pouco conhecida: ela tê-lo-á influenciado positivamente no amor que o ditador revelava pelo saber; um episódio muito marcante dessa relação foi a célebre viagem no Nilo, em que a curiosidade de descobrir a mítica nascente do imenso rio terá sido causa mais forte do que a aventura amorosa.
No entanto, feito este retrato, é difícil enfrentar esta realidade: Cleópatra ficou na história por ter sido amante de Júlio César e de Marco António, os dois homens mais poderosos do seu tempo!
Na realidade, sobre Cleópatra, as lacunas historiográficas são tão grandes que se justifica a construção de tantos mitos.
Um outro aspeto magnífico deste livro é a forma como a autora nos apresenta o cenário da época, dando-nos a conhecer realidades paralelas de grande interesse historiográfico; é o caso, por exemplo, da descrição que nos faz do grande sábio romano que foi Cícero, com o seu caráter tão peculiar: o mais sábio da época mas um dos mais arrogantes e vaidosos de todos os tempos.
Mas, para além de Cleópatra, a segunda personagem mais importante do livro é sem dúvida a cidade de Alexandria.
Era uma espécie de capital de todas as civilizações. Roma tinha a fama de capital do grande império, mas era uma cidade suja e violenta, doente e doentia. Alexandria, pelo contrário, aberta aos ares saudáveis do Mediterrâneo, aliava a herança cultural grega ao encanto místico do Egito dos Faraós e a todo o requinte das civilizações orientais. O império de Cleópatra, que se estendia até à Síria, recolhia preciosidades e luxos que enriqueciam os alexandrinos, muito mais que os sujos e diletantes habitantes de Roma.
Mas também Cleópatra tinha um lado negro, um lado violento e cruel que encaixava perfeitamente na tradição ptolemaica: casou sucessivamente com os seus dois irmãos e acabou por assassina-los ambos (o casamento entre irmãos era perfeitamente aceite, com base na necessidade de preservar a transição do trono e a manutenção do património na família). Na verdade, depois de assassinar o seu jovem noivo/irmão Ptolomeu XIII, viria a fazer o mesmo com o segundo irmão, Ptolomeu XIV e ainda com a irmã, Arsinoe, elevando o seu filho (e de César) a imperador, com o nome de Cesarião.
Cleópatra ficou famosa pelo seu relacionamento com César mas foi depois da morte deste que ela revelou todo o seu génio como governante, negociando a autonomia e a liberdade do seu país e do seu povo com o poderoso Octávio César Augusto, que viria a ser o herdeiro de Júlio César e primeiro imperador de Roma. Nessa altura ele gere com extrema mestria o seu intenso, escaldante e profundo relacionamento com Marco António, o grande rival de Octávio.
A parte final do livro é dedicada, como não podia deixar de ser, ao destino trágico da grande rainha. Mas até aqui, na mais profunda das desgraças, Cleópatra foi brilhante. Cleópatra foi espetacular até na morte e a autora apresenta-nos aqui o seu suicídio de uma forma tão atrativa que o leitor sente estar a ler um romance, tal a forma como a verdade, por vezes, imita a ficção.