segunda-feira, 28 de março de 2016

Menina Else - Arthur Schnitzler


Nenhum livro pode ser devidamente analisado sem ter em conta o contexto em que ele é escrito. Em grande parte, o enredo deste livro e a forma como o autor o aborda deriva da época em que foi escrito. Publicado em 1924, Menina Else é fruto de duas grandes realidades históricas: o triunfo da psicanálise e a afirmação do papel da mulher na sociedade, se bem que de uma forma mais aparente do que real.
Menina Else é um dos primeiros livros escritos em formato de monólogo interior; Else fala com ela própria; auto-analisa-se, pensa em voz alta e exerce uma crítica constante aos seus próprios comportamentos e mesmo pensamentos. É este o mundo de Freud (amigo pessoal admirador de Schnitzer) e da psicanálise: o pôr em causa do individuo enquanto ser pensante, o triunfo do mundo das emoções, das paixões, das pulsões como determinantes do comportamento. Ao assumir sobre os seus ombros a responsabilidade de pagar a dívida da família, Else cai num mundo interior de luta constante entre o ser e o dever; entre a sua própria vida, o seu próprio mundo e a responsabilidade de assumir um encargo familiar; este processo de interiorização conduz a um sentimento de culpa que levará Else à desgraça.
Por detrás de tudo isto há uma enorme contradição histórica: o movimento feminista que parece triunfar e uma sociedade e uma mentalidade burguesas, com o seu código ético rígido que contraria o movimento histórico de libertação da mulher. Como sempre, a moralidade burguesa acaba por triunfar.

Sinopse:
Menina Else, de Arthur Schnitzler, é das primeiras obras literárias a expor um drama psicológico na primeira pessoa. Emblemático autor da Viena fin-de-siècle e importantíssimo escritor de língua alemã, Arthur Schnitzler (1862-1931) conviveu com figuras notáveis da cultura europeia, como Freud, Klimt, ou Schoenberg. Freud, que o considerava uma espécie de seu duplo na área da literatura.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Diário de Inverno - Paul Auster



Comentário:
Escrito na segunda pessoa, este livro, profundamente autobiográfico, é uma espécie de confissão do autor; mais do que um autorretrato, é uma confissão em profundidade, um relatório pessoal da alma do artista.
Em quase todos os livros que já li de Auster há um tom melancólico, qualquer coisa de cinzento, que parece provir da alma do autor. Auster é uma pessoa solidária, altruísta, desprendida e talvez essa preocupação com os outros e com o mundo o torne pessimista ou, pelo menos, algo desinteressado de si mesmo. Daí ao tom depressivo de muitas das páginas deste livro vai um pequeno passo.
É difícil entender como este Auster pode ser aquele que vende milhões de livros, aquele que já faturou uma imensa fortuna; é difícil entender como um homem com tão grande sucesso na carreira e na vida pode ser uma pessoa tão melancólica, triste mesmo. Neste livro, deparamos com um Auster profundamente desiludido com muitos dos aspetos da vida, confrontado com a velhice que se aproxima, mas acima de tudo olhando para o passado de uma forma triste. Aquilo que ocupa mais espaço neste livro não são as belas memórias dos namoricos, os momentos felizes da infância ou, muito menos, os grandes sucessos literários e as enormes alegrias que os seus melhores livros lhe valeram; a este último aspeto, Auster nem sequer uma palavra lhes dedica; prevalecem sempre as memórias mais tristes: um acidente de automóvel em que ele poderia ter sido responsável pela morte da família, a morte dos pais, os desentendimentos com as famílias, as ruturas nas relações e os incríveis ataques de pânico de que é vítima, são estes os temas mais recorrentes desta espécie de autobiografia. 
Talvez a herança judaica contribua para esta melancolia; na verdade poucos são os escritores judeus que não demonstram trazer em si a herança de séculos de perseguições e intolerância; também aqui se vê, na alma de Auster, as marcas dessa intolerância e a incontornável memória do holocausto.
Na verdade, é necessário que o leitor se afaste um pouco, em termos emocionais, para não se deixar influenciar pelo tom triste, quase deprimido, desta obra. 
Mesmo assim, é possível analisar o livro numa outra perspetiva, mais positiva: em termos de estilo, Auster é talvez o escritor atual com uma escrita mais “visual”; sem qualquer exagero na adjetivação, com frases curtas e uma prosa sem rodeios ou floreados, Auster expressa-se de forma direta, crua e nua. As suas descrições são precisas e concisas. Em termos de enredo, Auster faz de cada episódio da sua vida a página ou capítulo de um folhetim que desvendamos com interesse e que nos levam a ler o livro como se de um romance se tratasse, numa leitura sempre fluida e interessante. Ao longo do livro damos connosco a “torcer“ por Auster e um pouco tristes pela forma como o autor sofre com os males do mundo; é o preço de ser pensante, de refletir e de lutar constantemente por um mundo melhor; Auster é um homem comprometido; um homem de causas, pelo que lhe é impossível encarar o sucesso ou a riqueza como motivos de felicidade. Tal como já escrevi várias vezes, mais do que um grande escritor (para mim um dos 3 melhores do mundo atualmente, com Roth e Murakami) Auster é um Homem muito grande; um excelente ser humano. E todos sabem que um excelente ser humano dificilmente pode ser feliz…

Sinopse: (in wook.pt)

Pensas que nunca te vai acontecer, que não te pode acontecer, que és a única pessoa no mundo a quem essas coisas nunca irão acontecer, e depois, uma a uma, todas elas começam a acontecer-te, como acontecem a toda a gente.

Paul Auster, incansável criador de ficções e de personagens inesquecíveis, vira agora o olhar para si próprio e para o sentido da sua vida. As descobertas da infância e as experiências da adolescência, o compromisso com a escrita - que marcou a sua entrada para a idade adulta -, as viagens, o casamento, a paternidade, a morte dos pais... Uma vida que transborda das páginas deste Diário de Inverno, um definitivo autorretrato construído com a paixão e a transbordante criatividade literária que são as marcas distintivas da identidade deste escritor amado pelos leitores e admirado pela crítica.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Cândido - Voltaire


Comentário:
Escrito no início da segunda metade do século XVIII, este livro tem um enorme valor histórico e filosófico. Pelo contrário, em termos literários não podemos dizer que estejamos perante uma grande obra-prima. Na verdade, o enredo está construído de uma forma algo precipitada, com uma ação tão veloz que muitas vezes o leitor não consegue compreender ou sequer identificar as sucessivas mudanças de cenário. Tudo se passa como se Voltaire escrevesse de forma ansiosa, pretendendo transmitir o mais depressa possível as suas mensagens, deixando para segundo plano uma estória que até é interessante e engraçada.
O verdadeiro significado desta obra está na afirmação do Iluminismo, corrente filosófica que viria a estar na base da Revolução Francesa, à qual forneceu as suas bases teóricas e doutrinárias. Voltaire, juntamente com Rousseau, Diderot, Montesquieu, etc. foi um dos mais importantes teóricos do iluminismo e utiliza esta obra como forma de expressar as suas principais ideias filosóficas: acima de tudo, a defesa inequívoca da liberdade religiosa, inclusivamente do direito ao ateísmo; a defesa da liberdade de comércio e da iniciativa individual; a crítica ao absolutismo e a todas as formas de concentração do poder político e, não menos importante, o combate pela igualdade social, lutando contra os privilégios das classes dominantes (nobreza e clero).
Assim, é em função destes valores que Voltaire constrói o enredo do seu Cândido. Antes de mais, o próprio nome indicia o espírito do herói do livro: ingénuo. Cândido acredita ingenuamente no seu amado mestre, um filósofo de nome Pangloss que defende o otimismo como sistema filosófico, uma visão positiva e benévola do mundo e dos outros. Obviamente, Voltaire ridiculariza o mais possível esta opinião, pois não partilhava minimamente esse otimismo; para ele, a Europa e o mundo são palco das maiores injustiças e violências, que ele descreve com crueza mesclada com ironia e sarcasmo; são as guerras que matam de forma cruel milhares e milhares de seres humanos, são os roubos e outros crimes com que os homens se destroem uns aos outros, são os réus corruptos e insensíveis às necessidades dos seus súbditos e, não menos importante, é um clero corrupto, pecador, sem fé e profundamente mergulhado nos mais interesseiros negócios terrenos. É este o quadro que Voltaire descreve: um quando de injustiça, violência, prepotência, miséria, etc. 
Assim se compreende a necessidade que Voltaire sente de uma revolução radical; e assim se justificará a violência e o radicalismo que alguns anos depois estarão presentes na Revolução Francesa, iniciada em 1789.
Quanto ao estilo, como se disse, a ação é veloz e algo precipitada mas o interesse maior da leitura está no humor sarcástico e irónico que Voltaire usa; tudo é alvo de troça e crítica, recorrendo frequentemente à caricatura dos diferentes personagens. Este tom sarcástico e crítico estende-se, creio, à própria literatura pois parece-me óbvia a crítica ao romance tradicional, neste caso o romance de aventuras e de cavalaria que (ainda) estava na moda nas classes aristocráticas daquele tempo, nomeadamente no público feminino; neste aspeto Cândido lembra (salvas as devidas distâncias) o D. Quixote de Cervantes, na forma como ridiculariza o viajante aventureiro à procura da sua Dulcineia (neste caso a formosa dama chama-se Cunegundes).

Sinopse: (in wook)

Publicada anonimamente em 1759 é logo identificado o seu Autor e nesse mesmo ano a obra conhece vinte edições, seguindo a sua fama para a Itália e Inglaterra onde é traduzida. 
Voltaire foi o introdutor de um género de conto que utiliza a ironia para revelar criticamente a realidade do mundo em que vivia: utiliza a ficção como interrogação e os seus personagens agem por vezes em contradição com o senso-comum da época. 
Em Cândido, o seu herói confronta-se regularmente com o optimismo veiculado pelas teorias de Leibniz (o melhor dos mundos possíveis), ou o seu nome não exprimisse precisamente a ideia da candura que o optimismo gera na adversidade através da existência do mal e da justiça divina.

domingo, 6 de março de 2016

O Cortiço - Aluísio Azevedo


Comentário:
Um dos maiores méritos deste livro é a análise comparativa das caraterísticas do ser português com o ser brasileiro; as diferenças são tão profundas que se torna admirável a forma como os dois tipos de personalidade convivem neste país que é o país-irmão.
Inicialmente o autor parece identificar três tipos de portugueses: o português de sucesso que escolheu o Brasil como terra dos seus sonhos e por isso sente que merece ser rico; o português que se cansa do espírito trabalhador luso e adere ao espírito brasileiro; finalmente, o português pobre, sem eira nem beira, que se limita a trabalhar para sobreviver. Cora constantemente de saudade e canta o fado; aliás o primeiro tipo também o faz, mas porque é um eterno insatisfeito.
Aluísio Azevedo encontrou no personagem Jerónimo um meio de plasmar as duas personalidades, ao fazer com que ele, por influência de uma moça de sangue bem quente, se transformasse de português em brasileiro; vejamos então alguns adjetivos usados para caracterizar o Jerónimo enquanto tinha um comportamento tipicamente português e depois o Jerónimo já “convertido” ao estilo de vida brasileiro: 
O Jerónimo português: trabalhador até à exaustão, poupado até à sovinice, vida sombria, tristonha, marcada pela saudade, pelo fado.
O Jerónimo “brasileiro”: apaixonado, afrouxado em energias, adquiria desejos, idealizava felicidades e prazeres, não dispensava o café e a cachaça, gastador, o samba toma o lugar do fado. Torna-se esbanjador e assim constrói a sua desgraça. 
Esta comparação, que à partida apanha o leitor desprevenido parece uma crítica ao espírito “sovina” do português mas, na verdade, a perspetiva crítica incide sobre os dois tipos; o português torna-se obcecado pela riqueza, egoísta e preso às aparências; o brasileiro torna-se preguiçoso, esbanjador e irresponsável.
O povo, como em qualquer escritor naturalista, é visto com grupo e não individualmente. Aqui, ao contrário do mestre Zola, a primazia não é dada às condições materiais dos mais pobres, mas sim aos seus costumes, crenças, superstições, hábitos. Pelo meio constrói uma curiosa crítica ao moralismo hipócrita que parece derivar de uma determinada interpretação do pensamento religioso, mesclado com superstições; a crença religiosa aparece sempre misturada com bruxaria, feitiçaria e as mais irracionais crenças… enfim, um belo retrato coletivo. Mesmo assim, a importância dada às condições materiais de existência vai crescendo ao longo do livro, à medida que se vão acentuando as desigualdades sociais; na parte final assistimos a esse “fim da história” em que os ricos se tornam mais ricos e prepotentes enquanto os pobres, à sombra dessa riqueza, caem na miséria, como os mineiros de Zola. Os poderosos, esses caem no ridículo da nova aristocracia, aderindo a uma sociedade que esconde as misérias pessoais por detrás da típica sociedade de aparências que rodeia a elite social dominante.
A solidariedade está sempre presente como um fator de união, e o cortiço é a personificação dessa união solidária. No entanto, quando os conflitos estalam emerge a desunião e com ela a violência. É com grande eficácia que o autor nos explica a relação intima entre a natureza extrovertida da alma brasileira e a facilidade com que surge a violência. É o “sangue quente”, reforçado pelo álcool, que comanda a ação coletiva e não a racionalidade.
A linguagem crua, direta, realista, aliada ao realismo com que é descrito o “calor” da alma brasileira conferem a algumas passagens do livro um aspeto de romance erótico pouco comum no século XIX. Mas o que se pretende não é acentuar o erotismo mas sim ilustrar um certo desregramento dos costumes por parte da comunidade brasileira. Noutras passagens, este hiper-realismo dá lugar a uma linguagem fria, chocante, como na descrição da criança que morreu esfacelada na pedreira.

Sinopse: (in fnac.pt) - contém revelações sobre o enredo -
O cortiço, publicado em 1890, focaliza a ascensão social do comerciante português João Romão, dono de uma venda, de uma pedreira e de um cortiço, bem perto do sobrado de um patrício endinheirado, o comendador Miranda. A rivalidade entre os dois aumenta à medida que cresce o número de casinhas do cortiço, alugadas, na sua maioria, pelos empregados da pedreira, que também fazem compras na venda de João Romão, que, desse modo, vai se enriquecendo rapidamente. Com a intenção obsessiva de tornar-se rico, João Romão não se permite o menor luxo, economizando cada moeda e explorando os outros sempre que pode. Vive amasiado com uma escrava fugida chamada Bertoleza, que o auxilia no trabalho duro, e para quem ele forjou um documento de alforria. O grande sonho de João Romão é adquirir prestígio social, como seu patrício Miranda. Este, à medida que o vendeiro vai enriquecendo, não vê com maus olhos a possibilidade de oferecer-lhe a mão de sua filha, Zulmira. Um amigo comum, Botelho, se faz intermediário das negociações e tudo fica arranjado. João Romão fica noivo de Zulmira, alcançando assim um patamar mais alto na escala social. O único inconveniente é Bertoleza, que não aceita ser descartada sumariamente. Botelho arma um plano: denuncia Bertoleza como escrava fugida a seu verdadeiro dono, que vai com a polícia prendê-la. João Romão faz de conta que não sabe de nada e a entrega. Bertoleza percebe que o vendeiro, sem coragem de mandá-la embora ou de matá-la, preparou essa armadilha para devolvê-la ao cativeiro. Desesperada, ela se mata. A narração desses fatos da vida de João Romão entrelaça-se com a narração de vários episódios dos moradores do cortiço, cuja luta pela sobrevivência é dura e cruel. O caso de Jerônimo é exemplar da visão naturalista do autor. Jerônimo é um operário português contratado por João Romão para trabalhar na pedreira. É um homem sério, casado com Piedade, também portuguesa. Eles têm uma filha adolescente e vivem bem como família. Mas, no cortiço, Jerônimo começa a sofrer influência daquele ambiente sensual e desregrado, apaixona-se pela mulata Rita Baiana, por ela mata um rival e abandona a família. Acompanhando a evolução social de João Romão, o cortiço também se desenvolve, principalmente depois de um grande incêndio, quando passa por reformas e transforma-se na "Avenida São Romão", com melhor aparência e uma população mais ordeira. A população mais baixa e miserável se transfere para outro cortiço, o Cabeça de Gato, mantendo-se assim a engrenagem do sistema social em que predomina a lei do mais forte.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Pomar de Histórias - José Fernandes da Silva

Comentário:

Na senda dos seus livros anteriores, José Fernandes afirma-se como o escritor da terra e do povo; o artesão de uma prosa muito aparentada à poesia que tanto cultiva. Aqui, as palavras parecem nascer da terra amanhada pelo talento do poeta.
José Fernandes concretiza assim a fidelidade às raízes das quais ele próprio brotou; filho da terra e de um povo humilde; é a esse povo que ele procura fornecer uma identidade; o que o autor busca não é apenas contar belas estórias das suas gentes; é dar a essas gentes aquela identidade, aquela coesão enquanto Povo que os tempos modernos parecem ameaçar. Uma identidade que parece ser fornecida por uma espécie de honra que se configura como traço de união entre os vários contos; uma honra fundada sobre a moral cristã mas também sobre as leis da natureza.
Ao nível do estilo, José Fernandes reforça neste livro um aspeto que é transversal a toda a sua obra: a musicalidade das palavras. Raros são os escritores que conseguem obter descrições tão precisas e concisas, numa linguagem objetiva, bela mas sem floreados desnecessários. Para mim, que devo ao autor a honra da sua amizade, a explicação para esta filigrana das palavras é simples: é a arte do músico ao serviço da escrita. Sendo músico, José Fernandes transporta para as palavras os acordes e as melodias das pautas com que convive diariamente.
Nesta prosa natural lê-se a alma de poeta – a capacidade para encontrar mensagens nas coisas mais simples da vida; muitos destes contos partem de situações absolutamente banais da vida mas nas quais o autor encontra sempre um significado especial; e é aí que reside o encanto da vida: na beleza das pequenas coisas…
Mas este livro, como os anteriores do autor, é também um testemunho etnográfico; estamos perante um belo repositório de usos e costumes, tradições e até linguagem específicos de um mundo rural que está em vias de se perder; daí as numerosas referencias aos séculos passados onde o autor coloca a ação de várias destas narrativas; este já não é o mundo das novas gerações…
Finalmente, gostaria de destacar três contos como representativos da obra na sua globalidade, em termos de temática:
- Logo a abrir deparamos com A Pedra com Inscrições; desconcertante o humor com que termina o conto. Alguém escrevera numa enorme pedra uma frase que convidava a que a virassem; só que o seu peso era brutal e a aldeia em peso passou séculos a tentar virá-la. Um dia, todo o povo, unido pela curiosidade e pela força da união, lá conseguiu, depois de sacrifícios imensos, voltar a pedra. Surpresa das surpresas: por baixo não havia tesouro algum. Mas na face voltada antes para a terra e agora voltada ao céu alguém descobriu uma inscrição que agradecia aos heróis que voltaram a pedra, que se encontrava cansada de tantos anos virada para o mesmo lado…
- O conto O Rio Feliz e Infeliz é um verdadeiro hino ecológico; não a essa ecologia pintada de cores políticas mas como uma manifestação singela de amor à terra e à água que dela brota; uma manifestação de amor de alguém que não esqueceu as suas raízes e que sofre com os disparates que o homem faz na força destruidora que resulta da ambição de riqueza.
- Depois da queda é um conto sobre as desigualdades sociais, que ainda hoje prevalecem. A sociedade humana é por natureza desigual e injusta, no entanto, neste mundo fechado rural a desigualdade é marcada por barreiras quase inultrapassáveis entre os diferentes grupos; prevalece uma aristocracia terratenente herdeira da velha nobreza que se demarca em absoluto do povo.
Conclusão: este livro da Calígrafo merece ser lido pela linguagem clara, bela e cristalina; pela temática rural que faz do autor um lídimo herdeiro da melhor tradição neorrealista; pela graça, pelo humor discreto da malandrice, da mais inocente brejeirice; e, acima de tudo, pela alma da terra que brota em catadupas destas páginas.
Uma nota final para destacar o belo prefácio do escritor João Lobo, também ele uma emanação da alma da terra.