segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Diz que é uma espécie de balanço



57 livros lidos. Podia ser pior. Uma só deceção: balanço, portanto, muito positivo.
Que 2014 seja ainda melhor, para todos nós.
Entretanto, aqui fica a minha lista das melhores leituras de 2013 e uma grande deceção.

Clássicos intemporais
Épico - Os Miseráveis - Victor Hugo.
Corajoso - O Noventa e Três - Victor Hugo.
Poético - O Velho e o Mar – Ernest Hemingway.
Fantástico (em todos os sentidos) - A Casa dos Espíritos - Isabel Allende.
Monumental - O Conde de Monte-Cristo - Alexandre Dumas.
Humaníssimo - Os Passos Perdidos - Alejo Carpentier.
Mágico – Os Pilares da Terra – Ken Follett.

Clássicos portugueses
(para além de várias obras de José Saramago, de que dei conta aqui)
Obra-prima -Alexandra Alpha - José Cardoso Pires.
Hilariante - Crónica dos Bons Malandros - Mário Zambujal.
Inteligente - O Riso de Deus - António Alçada Baptista.
Histórico – E se for rapariga chama-se Custódia – Luís de Stau Monteiro.

Surpresas
Irónico - O Complexo de Portnoy – Philip Roth.
Verdadeiro – Palavras em tempos de crise – Luís Sepúlveda.
Nós – A Lenda de Martim Regos – Pedro Canais.
Surpreendente – Do outro lado do rio, há uma margem – Pedro de Sá.
Belíssimo - Quem me dera ser onda - Manuel Rui.

Deceções
Quo vadis, Miguel? – Como é linda a puta da vida – Miguel Esteves Cardoso.


Os seis livros do meu TOP 5 :) :

sábado, 21 de dezembro de 2013

Palavras em tempos de crise - Luis Sepúlveda


Sinopse:
Um grito de revolta contra os tempos conturbados que vivemos.
A escrita, o compromisso político, as amizades, o exílio e as viagens são elementos indissociáveis numa vida fascinante como a de Luis Sepúlveda.
Nestas páginas, entrelaçam-se histórias pessoais, histórias dos trabalhadores e suas lutas, gritos de dor perante a exploração criminosa do meio ambiente, reflexões pungentes sobre a crise económica que atingiu a Europa e encenações de momentos partilhados com amigos, entre eles Pablo Neruda, José Saramago e Tonino Guerra. E emerge, acima de tudo, o Luis Sepúlveda homem: as lembranças do difícil passado no Chile, o destino dos seus companheiros dispersos no exílio e o seu reencontro numa pequena baía do Pacífico, uma viagem pelo deserto de Atacama, mas também alguns vislumbres da vida pessoal, as memórias de um fiel amigo de quatro patas, a alegria de se sentar a uma mesa de refeições com a família alargada e receber o epíteto de «velho». E, sobretudo, a certeza de ter vivido «uma vida de formidáveis paixões».
Comentário:
Há pessoas cuja passagem pela vida deixa marcas profundas e indeléveis. Uma dessas pessoas é Luís Sepúlveda. O desassossego deste homem, a inquietação perante a infelicidade dos outros e a injustiça fazem dele um ser humano magnífico, que sempre soube utilizar o seu imenso talento literário para defender os esquecidos e os injustiçados.
Foi assim durante a ditadura de Pinochet, esse assassino amigo de Salazar que deixou o Chile marcado pelo sangue de milhares de resistentes, fieis a esse outro mito da resistência, Salvador Allende, também ele assassinado por Pinochet.
Este livro é uma pequena coleção de textos ou crónicas que têm como denominador comum a palavra crise. A crise atual é vista por Sepúlveda de uma forma crítica e bem informada mas, acima de tudo, numa abordagem humanista. É o caso da sua descrição da luta dos mineiros asturianos (Sepúlveda vive nas Astúrias), uma luta nascida da injustiça, da exploração do trabalho honesto pro parte dessa minoria de 1% da humanidade que detém 99% da riqueza. Ora essa riqueza é produzida pela maioria e quem dela usufrui é essa minoria privilegiada e exploradora. Pior ainda, quando os rendimentos diminuem é ainda a essa minoria que se vai buscar mais riqueza, espremendo, esmagando por completo aqueles que produzem.
O esmagamento dos salários, não e, como dizem, destinado a obter uma competitividade maior, em nome do acesso aos mercados; é, isso sim, uma forma de obter lucros cada vez maiores e a crise, construída por alguns, é um pretexto para esse esmagamento.
Muitos dos que falam da crise, muitos iluminados que continuam a apoiar as estratégias egoístas dos agentes políticos do neoliberalismo, deveriam ler este livro. Poucas vezes se demonstrou de forma tão clara que a crise convém a determinadas pessoas, os donos da economia mundial. O seu poder e a sua riqueza fundam-se sobre a miséria da maioria. Mas esta, tantas vezes cega, deixa-se conduzir rumo à exploração total.
Esta realidade dramática, tantas vezes ocultada pelos poderosos e alimentada pela cegueira voluntária de milhões, deixa, no entanto, muito espaço livre neste livro para que o autor nos delicie com episódios deliciosos de momentos passados com grandes nomes da Literatura, como José Saramago, Pablo Neruda, etc.
Mas o que fica deste livro é a ideia de que as palavras de Sepúlveda não são só as palavras da arte de bem escrever; são, acima de tudo, as palavras da resistência e da luta por um mundo mais justo; são as palavras de Allende, de Neruda, de Saramago.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Arroz de Palma - Francisco Azevedo


Sinopse:
O Arroz de Palma fala de família. Considerada falida nos anos 60 e condenada ao desaparecimento, a família situa-se, agora, neste início do século XXI, como a mais sólida das instituições. Surpreendente? Nem tanto. Embora sacudida por radicais transformações de comportamento, ao longo das últimas quatro décadas, a família tem sabido superar suas deficiências, passar por testes dificílimos e, com base em diálogo mais franco, obter um maior entendimento entre seus membros: a aceitação do sexo antes do casamento e da homossexualidade, a união entre pessoas de religiões, raças e níveis sociais diferentes, a possível amizade entre casais que se separam e a natural convivência entre filhos de casamentos diferentes são apenas alguns exemplos de como essa instituição tem sabido evoluir e responder a novos desafios.
Embora ainda com resistências e intolerâncias aqui e ali, e apesar de aparentes sinais de fragilidade, a família apresenta-se hoje como a instituição mais credenciada para reger de forma responsável as mudanças que a sociedade vem exigindo. Em O Arroz de Palma todos esses temas e mudanças estão presentes. Antonio, o narrador da história, é naturalmente envolvido por elas. A história pretende mostrar que, apesar de todos os seus erros e tropeços cotidianos, a família busca se aprimorar. Ao se empenhar pelo acerto, essa milenar instituição parece querer provar que nós, seres humanos, pelo próprio instinto de sobrevivência, estamos fadados ao entendimento.

Comentário:
O clube de leitores Bertrand de Braga ofereceu-me esta possibilidade de ler pela primeira vez este escritor brasileiro. Não posso dizer que seja uma obra-prima nem que a escrita de Francisco Azevedo seja genial. Mas é muito agradável. Talvez pelo facto de ter feito carreira como guionista, Azevedo presenteia-nos com uma escrita fluida, muito musical, sem ornamentos desnecessários mas também sem cair na aridez da escrita do tipo SMS.
Grande parte da musicalidade e de um certo exotismo nesta forma de escrita advém do respeito quase total pela linguagem falada e pelo sotaque brasileiro; lemos como ouvimos.
A estrutura narrativa é interessante, se bem que demasiado linear: trata-se dos cem anos de história de uma família brasileira resultante de um casal pobre português, de Viana do Castelo.
O contexto da aventura iniciada por esse casal apresenta-nos um retrato muito fiel e historicamente correto do Portugal dos últimos tempos da monarquia (1908) em que a fome se generalizara, em consequência de uma política monárquica decadente, corrupta e antiquada. Passava-se fome em Portugal e o Brasil era uma espécie de terra prometida.
No Brasil, como acontecia com a generalidade dos emigrantes, também o casal José Custódio e Maria Romana, bem como a Tia Palma, destacaram-se pela humildade e capacidade de trabalho que os levou a um estatuto socioeconómico bem distante da miséria portuguesa.
Mas é da geração seguinte que aqui mais se fala; o narrador é um dos filhos do casal, Antonio, o mais velho dos quatro filhos de José e Maria (curiosa escolha de nomes) um apaixonado por culinária que se torna um empresário bem-sucedido.
Mas o fio condutor do livro é o misterioso arroz da Tia Palma, o mesmo que fora atirado sobre o casal aquando do casamento, em Viana do Castelo, 1908. O caráter mágico do arroz, experimentado ao longo de um século por toda a família confere à obra um tom tipicamente sul-americano de realismo mágico. No entanto, o enredo, a partir de determinada altura perde ritmo e a estória torna-se algo previsível. Os milagres do arroz de Palma quase se tornam triviais, tal a sua eficácia e os contextos pouco variáveis em que ocorriam.
Mesmo assim, estamos perante uma leitura agradável de um escritor que vale a pena conhecer.


quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Nadir Afonso, Mestre da Beleza

Faleceu hoje...
A maior pobreza de um povo não advém da crise, ou dos mercados, ou do sistema financeiro.
Advém da morte da beleza.
(A Cidade Incerta, 2010)

domingo, 8 de dezembro de 2013

Do Outro Lado do Rio, Há Uma Margem - Pedro de Sá


Sinopse:
Uma rapariga pedala na fúria do momento, sempre a pior, numa tarde ensolarada de Maio. Um casal revisita lugares de outrora. Uma mão desce sobre uma laje. A sombra de um choupo. Um rapaz caminha sobre a terra sob o peso de uma questão. Uma velha descasca peças de fruta antes de falar. Uma mulher olha um filho como se caminhasse sobre uma plataforma ferroviária. Uma bengala, de madeira, em silêncios de adeus. O mundo, lá fora, já uma noite imensa. Enquanto sorrisos sob uma luz.

Comentário:
Pedro de Sá tem vindo a construir um percurso curioso na nova literatura portuguesa; um percurso discreto, feito de passos suaves e seguros, desde o prometedor Olhei Para Trás e Sorri, de 2010, até este quase maduro romance.
Na verdade penso que estamos perante um dos mais prometedores escritores da nova vaga. Um escritor que caminha a passos largos para a maturidade. A minha maior dúvida é esta: será que o seu merecido reconhecimento público será possível nesta editora?
Este romance, que se lê quase de um fôlego tal a cadência da sua escrita, revela traços de originalidade notáveis mas também (e acima de tudo) de uma qualidade literária que deriva, em grande parte, de uma interioridade exposta em palavras e frases sentidas, transparentes no sentimento e na leitura da alma humana.
Em primeiro lugar, destaca-se ao longo da leitura uma curiosa abordagem bucólica dos cenários, que leva o leitor a viajar até aos mais puros escritores românticos da literatura portuguesa; tais cenários funcionam como pano de fundo àquilo que mais me impressionou neste romance: uma abordagem singular da alma humana. É que por vezes há olhares distanciados na vida que, afinal, nos escondem o óbvio que vem das almas:
Perdemo-nos tanto a olhar o longe que não ouvimos a súplica perto.” (Pág. 53)
 Pedro de Sá, neste livro fala-nos das súplicas que vêm das almas. A sua escrita caminha sobre sombras introspetivas, deixando um rasto de António Lobo Antunes. Talvez, como aconteceu com os seus personagens, o autor tenha enveredado por esse caminhar para o interior, para dentro de si ou para dentro de uma certa alma universal. Afinal de contas, o que lemos em Henrique, Andreia ou Eduarda são imagens, retratos interiores, divagações das profundezas da alma, diálogos de cada um deles com eles mesmos e os outros como espelhos ou contrapontos às vezes, como obstáculos ou desafios outras vezes.
Mas nestas almas, mesmo que mundos transformados em ilhas, há sempre pontes que se constroem; há vias de acesso a margens separadas, a espaços de paz atravessados por torrentes caudalosas que, no entanto, a luta a que chamamos vida permite vencer.
É também do equilíbrio tantas vezes precário dessas pontes que Pedro de Sá nos fala. E a angústia dessa instabilidade, a fronteira do medo que vai transmitindo a quem lê uma perspetiva de desequilíbrio, de precaridade, que avassala todas essas (e estas) almas: de quem lê, de quem escreve e de quem é inventado. Talvez pela ordem inversa…
E o tempo, esse monstro; esse rio caudaloso, intempestivo, que separa margens.

À sua volta, sentem o amanhã. Regina apenas o presente. Afinal, a dor ensina-nos o momento. E ela ficou, para sempre, enredada numa margem a olhar a corrente” (Pág. 120)… a espera da vida; a luta contra e a favor do tempo; a procura incessante de uma margem sonhada, feita de paz mas separada pelo tempo de uma outra margem, a do sofrimento. Ou talvez as duas sejam uma e a mesma margem…

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A Irmandade do Santo Sudário - Julia Navarro


Sinopse
Obras sobre Templários e segredos religiosos têm-se transformado em best-sellers nos últimos meses, sendo o caso mais evidente o sucesso estrondoso de «O Código da Vinci». «A Irmandade do Santo Sudário», da jornalista espanhola Júlia Navarro, vem confirmar essa apetência do público.
A acção do livro decorre em Turim, quando um incêndio assola a catedral da cidade italiana onde se venera esta controversa relíquia.
Este incêndio e a morte de um homem a quem tinham cortado a língua são o detonador de uma empolgante investigação policial do «Departamento de Arte» dirigido pelo detective Marco Valoni e pela perspicaz e atraente historiadora Sofia Galloni.
Alternando capítulos no presente com capítulos de um teor mais histórico (Império Bizantino, a França de Filipe o Belo, Portugal, Espanha, entre outros.), Julia Navarro constrói uma trama que vai dos Templários aos nossos dias.
Os protagonistas são homens de negócios cultos e refinados, cardeais e outras importantes figuras da Igreja, ou seja, uma elite cujo único elemento comum é serem solteiros, ricos e muito, muito poderosos.
(in Wook.pt)
Comentário:
Já por várias vezes deixei aqui o meu apreço pela literatura espanhola. Escritores como Zafón, Perez-Reverte, Mendoza, Vila-Matas, etc. têm o condão de agarrar o leitor, os primeiros com uma escrita mais objetiva em narrativas lineares, os segundos com enredos mais reflexivos.
Esta escritora, Júlia Navarro, pertence ao grupo dos primeiros: com um estilo objetivo, quase jornalístico, ela vai-nos contando uma história fascinante, mau grado os clichés que constituem o tema do romance: as intrigas em torno do Santo Sudário e a história misteriosa dos Cavaleiros Templários.
O romance é construído em dois tempos: numa perspetiva diacrónica, vai sendo exposto o percurso do sudário, desde a sua origem na morte de Jesus Cristo, até ao seu destino misterioso. Por outro lado, numa abordagem de tipo policial, vai-se contando a história da investigação de misteriosos incêndios na catedral de Turim que levam os investigadores e especialistas a tentar desmontar as intrigas que se tecem em torno do misterioso linho.
Paulatinamente, o leitor vai-se apercebendo de como determinados interesses pessoais e de grupos podem tornar-se perigosos e assumir contornos verdadeiramente assustadores. Na verdade, a ambição humana pode atingir limites incalculáveis, de permeio com convicções religiosas assustadoramente radicais.
É curioso como dois temas tão explorados pela literatura, o sudário e os Templários, ainda são terreno fértil para bons livros como este.
É certo que a história é, por vezes, demasiado linear e demasiado presa a certos lugares comuns; mas também não deixa de ser verdade que é graças a livros como este que a literatura de ficção cumpre os seus mais nobres objetivos: a promoção da leitura na sua componente lúdica e a divulgação do saber. Sim, porque pelo meio da ficção, este livro não deixa de nos enriquecer em termos de conhecimento histórico.

Enfim, no bom estilo de “nustros hermanos”, estamos perante um livro divertido, agradável e, acima de tudo, cheio de conteúdo.

domingo, 24 de novembro de 2013

Os Pilares da Terra - Ken Follett


Quando li os dois primeiros livros da trilogia O Século, deste autor, fiquei um pouco decepcionado. Não que a obra tenha pouca qualidade, nada disso. Simplesmente esperava ainda mais. Fiquei nessa altura com a sensação que Follett tinha pretendido fazer uma espécie de Guerra e Paz do século XX, ficando muito preso a esse modelo e, por outro lado, prendendo-se demasiado à verdade histórica e mesmo assim falhando em alguns aspetos.
Nada disso acontece em Os Pilares da Terra.
Aqui aconteceu magia. Aconteceu uma verdade histórica refinadamente retratada e uma criatividade fantástica, num ritmo narrativo alucinante.
Ler estas 1100 páginas foi uma aventura demasiado breve. O leitor é embalado neste ritmo narrativo e, de repente, está no fim do livro.
Antes de mais, uma nota muito positiva para a forma tão verossímil como o autor nos descreve as misérias daqueles tempos (século XII); de como essas misérias, geradoras de uma tremenda violência, eram causadas por profundas desigualdades sociais.
No meio de um ambiente de miséria e injustiça, levantam-se os mosteiros como uma espécie de oásis na desgraça. Os monges beneditinos são, aqui, testemunho do interesse do autor pela história da igreja, mostrando-nos o clero regular como um local onde resta a mais pura bondade e humanidade mas também um microcosmos de todas as misérias do mundo.
No entanto, é nesse microcosmos que se erguerá o símbolo maior da força da humanidade: a pedra que testemunhará o sacrifício, o sofrimento, mas também a coragem e a força do ser humano: a catedral; a maior catedral do mundo.
O cenário político da obra situa-se a partir do final do conturbado reinado de Henrique I de Inglaterra. A sua morte, precedida de conturbados acontecimentos de rebeliões e traições, mergulhou a Inglaterra numa autêntica guerra civil, um período de caos que beneficiou os grande senhores da aristocracia da terra, mergulhando a população servil numa miséria e violência que servem de pano de fundo à odisseia dos personagens desta obra.
O clero assume, na narrativa de Follett, um papel bastante ambivalente; se os monges são o último reduto da caridade e da bondade, não é menos verdade que a igreja se deixa mergulhar no oportunismo, na cobiça dos bens materiais e, pior que isso, nas mais soezes maquinações da guerra política, no acesso às benesses do poder.
O herói do livro, o monge Philip, é uma espécie de síntese entre o humanismo e a necessidade de acompanhar as maquinações politicas. É genial a forma como Follett expõe o processo que levou Philip, um monge honesto, a aceitar negociatas mais ou menos obscuras para se tornar prior e levar a cabo os seus sonhos.
Ao longo do livro deparamos com uma espécie de psicanálise da mente criminosa: de como as injustiças sociais e as condições económicas (miséria material) conduzem ao crime.
Por um lado retrata-se uma Idade Média que nos arrepia pela violência, pela devastação e pela crueldade humana; mas, por outro lado, é nesta Idade Média que encontramos todo a força que o ser humano pode demonstrar, todo o poder de se reerguer, de triunfar mesmo por entre as mais catastróficas adversidades. É entre o sangue e o sofrimento de todo um povo que se erguem, imponentes, as torres e as naves das catedrais.
O enredo deste livro testemunha-nos o triunfo do gótico, esse estilo triunfal que marcou a baixa idade média; Saint-Dennis, essa magnifica catedral parisiense construída pelo célebre abade Suger serviu de modelo para a Notre Damme mas também para a catedral de Kingsbridge que o nosso herói vai construindo.
Uma religiosidade extrema, por vezes totalmente irracional, em que o diabo tem tanto poder como Deus dá o contexto para um mundo em que os homens se assumem como deuses ou demónios. Talvez nessa ambivalência do ser humano resida um dos motivos deste misterioso encanto que a Idade Média desperta em nós.
Não me permito falar do final do livro, para proteger o interesse de futuros leitores deste livro; no entanto não resisto a dizer que é um final grandioso, triunfal e espetacular. Mas também profundamente simbólico: o triunfo do povo. E do espírito sobre a pedra.

Imagem daqui:

(elenco e cenário da série televisiva britânica)

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Como é linda a puta da vida - Miguel Esteves Cardoso


Comentário:
Decidi empreender a leitura deste livro por duas razões essenciais: porque não lia MEC há mais de vinte anos e porque tinha gostado muito dos dois livros que li nessa época: O Amor é Fodido e, principalmente, um livro que continuo a considerar genial, A Causa das Coisas. As expetativas eram, portanto, muito grandes e quando assim é o risco de deceção é muito maior. Infelizmente foi o que aconteceu e, indo direto ao assunto, fiquei dececionado.
Nesta obra, constituída por crónicas jornalísticas, encontramos um Miguel Esteves Cardoso muito mais sereno, mais adaptado ao mundo e, talvez, mais feliz, tendo em conta o período negro que passou na sua vida pessoal, com a doença da esposa, Maria João.
Mas o leitor, no seu egoísmo de cliente de um produto cultural mas também de diversão, não queria um MEC acomodado e sereno. Queria o “velho” MEC contestatário, crítico, mordaz. Aquele que com Paulo Portos (este ainda mais transformado nos dias que correm) dirigia um jornal cheio de humor e crítica, O Independente.
Neste livro damos conta que esse velho MEC já não existe. A qualidade da sua escrita continua lá, com um estilo direto, sintético, claro. Mas apenas encontramos amostras dispersas daquilo que mais o distinguiu como escritor e jornalista: a crítica.
Quando, mais ou menos a meio do livro, vemos MEC confessar que ama este país, chega a confirmação: este não é o mesmo MEC.
Mesmo assim, o livro vale por outra característica típica deste excelente ser humano que é Miguel Esteves Cardoso: pela transparência com que nos expõe os seus sentimentos e emoções; não há dúvida que a sua escrita continua a ser transparente, honesta e frontal. Mas aquele sentido de humor requintado, cheio de crítica, tornou-se agora mais raro e só em alguns capítulos, como naquele episódio hilariante em que nos presenteia com um comentário à cozinha francesa. O uso do palavrão, no título mas também em alguns capítulos, continua a ser uma técnica bem explorada por MEC: usado com a propósito, conferindo um tom de humor à escrita.
No entanto, no final da leitura, damos conta que o próprio título do livro esconde uma outra deceção: não corresponde ao conteúdo e só se explica como forma de o fazer notar nas prateleiras dos hipermercados, junto dos livros da SIC.
Em suma: não é um mau livro, mas está longe desse clássico que é A Causa das Coisas. Talvez a experiência da vida e a paixão notável pela Maria João tenham tornado MEC um homem mais feliz. Valha-nos isso, porque ele merece.


sábado, 2 de novembro de 2013

A Feira dos Assombrados - José Eduardo Agualusa


Sinopse
Publicada pela primeira vez em 1992, A Feira Dos Assombrados, tem como cenário a velha cidade do Dondo, às margens do Rio Quanza, em Angola, nos últimos dias do século XIX. Tudo começa com a descoberta de um misterioso cadáver: O primeiro corpo que o rio trouxe ainda nos pareceu humano. Tinha as partes todas de que somos compostos, a pele lisa e sem escamas, como a nossa, e os enormes olhos abertos guardavam até um resto de luz e de calor. A partir desta descoberta, o Dondo, lugar inteiramente apartado do mundo, vai mergulhar num estranho pesadelo. Uma alegoria sobre a presente situação política e social de Angola.

Comentário
É uma limitação minha, reconheço, a pouca apetência para ler e gostar de contos. Talvez por esse motivo, esta foi a obra de Agualusa que menos me entusiasmou.
Estas estórias parecem-me algo insipidas quando comparadas com os livros de maior folego deste grande escritor angolano. Seja como for, não deixam de marcar presença os mais significativos traços da sua escrita: a fantasia, a ingenuidade do falar do povo, a poesia da linguagem falada, naquela mescla sui generis do português com a voz da terra africana. Por exemplo: (o boato) “ faz acontecer; dá acontecência ao insucedido.” Repare-se na forma simples, sintética, como se alia a musicalidade da língua à verdade ingénua e, ao mesmo tempo, profunda da sabedoria popular.
No conto principal, que dá título ao livro, Agualusa faz entrar em cena a sua paixão pela história de Angola, nomeadamente pelo período final do século XIX. Aí se cimentou a presença portuguesa na ocupação da terra angolana. E é de uma forma crua, quase brutal que Agualusa nos transmite a imagem do colonizador:
Os ratos não tardaram a fugir, transferindo-se para o norte com as suas veneradas doenças de ofício, as suas balanças viciadas, as suas quinquilharias baratas, o seu vinho triste, os seus ferros de educar gentio. E por ratos quero dizer os comerciantes portugueses, quase todos antigos degredados, a medrosa cáfila de pequenos artífices e as inevitáveis putas, ávidas aves que vêm e que voam…” É a tristeza nua e crua da verdade histórica, de uma nação brutalmente colonizada e espoliada.
Nesse conto, o mais extenso, na típica mescla de fantasia e realismo que carateriza este autor, dá-se conta do aparecimento de uma série de misteriosos cadáveres, trazidos por um rio, o Quanza. Simbolicamente, o primeiro cadáver surge no dia 31 de janeiro, o dia em que a monarquia portuguesa foi pela primeira vez abalada. Sobreviveu, no entanto, como sobreviveria a miséria moral do colonizador, assim como a terra sedenta de liberdade.
Na verdade, este conto destaca-se dos restantes não só pela sua extensão mas principalmente pelo simbolismo do seu conteúdo; os cadáveres trazidos pelo rio são as oferendas negras de uma realidade externa que fez Angola mergulhar no terror, no medo, na tristeza.

Mau grado toda a poesia desta escrita e todo este simbolismo, o leitor fica algo dececionado; de Agualusa espera-se sempre um pouco mais.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

A Queda de Um Anjo - Camilo Castelo Branco


Li este livro pela primeira vez quando ainda era estudante. Hoje, uns 30 anos depois, deliciei-me da mesma forma com as aventuras e desventuras deste deputado transmontano do século XIX mas que nos faz lembrar, a cada passo, os políticos de hoje em dia. Afinal, há vícios que são intemporais.
Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda, o morgado de Agra de Freimas era um ingénuo, o puro, o quase santo miguelista, defensor acérrimo da moral e bons costumes. Logo no início da carreira tentou impor na câmara de Miranda do Douro as leis do foral de Afonso II. Não lho permitiram, afirmando os progressistas que tais leis estavam desatualizadas. Calisto ficou despeitado! Furioso! Como podem a moral e os bons costumes estar desatualizados? Esta pureza de sentimentos, esta generosidade na defesa dos valores maiores, fazia de Calisto o verdadeiro anjo! Uma preciosidade!
Casado era com a prima Teodora, uma mulher pouco afortunada pelas belezas temporais mas um exemplo de qualidades morais; um poço de virtudes. Uma mulher ignorante mas pura, feia mas adornada pelas maiores virtudes da alma.
No entanto, bastaria avançar uns dez anos na linha do tempo para encontrarmos um Calisto Eloy deputado em Lisboa, elegantemente vestido, fumando charuto e acompanhando uma bela e elegante amante, nos teatros da capital. Até de partido mudara: tornara-se deputado do governo, traindo todos os princípios conservadores que tão acerrimamente defendera.
Esta é a caricatura de toda a corrupção a que o poder conduz. Um livro que se afasta imenso do tradicional romantismo camiliano para formar um quadro de crítica social que o aproxima, por exemplo, da crítica queirosiana.
O provincianismo é o menos mau dos males. Muito pior que ser provinciano é defender ideias ao sabor das conveniências. O tradicionalismo de Calisto é visto como expressão de uma certa ingenuidade. Pelo contrário, a sua adaptação aos luxos e vícios do poder são expressão de toda a hipocrisia que o próprio poder gera.
É um pouco injusto considerar Camilo um escritor romântico ou de novelas “fáceis”. Ele revelou uma qualidade que poucos conseguiram superar: a versatilidade. Este livro é incomparável, como foram incomparáveis As Novelas do Minho ou Eusébio Macário.
O que mais surpreende neste livro é a extensão da visão crítica de Camilo; não é só a hipocrisia da classe política que está em causa; é o seu intemporal oportunismo, mas é também a crítica de costumes, a crítica social a uma fidalguia pedante, beata e ignorante de que ainda hoje encontramos eco nos corredores do poder político.

Enfim, um livro agradável, por vezes hilariante, inteligente e… atual!

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Terra Sonâmbula - Mia Couto

Sinopse:
Moçambique, década de 1990. Numa terra devastada pela guerra, um menino sem memória é encontrado por um velho errante. Muidinga e Tuahir, ambos marcados por conflitos que não entendem, desprovidos de passado e de esperança. Unidos, fazem de um machimbombo incendiado a sua casa, e de um diário, encontrado junto de um cadáver, a sua demanda. Nas linhas do caderno, Muidinga acredita ter um mapa que o levará de volta à sua mãe. Nessa busca, o insólito par descobre-se, reinventa-se, enfrenta a insanidade e a miséria que grassam em seu redor, e recusa deixar morrer o alento. Tal como a terra que percorrem sem destino, uma terra que nunca dorme, nunca descansa, uma terra sonâmbula.
Já adaptado ao cinema, Terra Sonâmbula foi considerado um dos doze melhores romances do século XX em África. Cruza elementos da cultura tradicional moçambicana com a própria história do país, realismo e magia, factos e símbolos, Terra Sonâmbulaé, acima de tudo, um hino ao poder dos sonhos e da vida.

Comentário:
Este talvez seja o melhor livro de Mia Couto.
Pelo menos, é o mais simbólico. Tudo neste livro é pensado, calculado, como se tudo o que Mia escreve tivesse por trás um segundo significado.
Mas é também o livro de Mia Couto que mais me agradou em termos de linguagem:

 O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro.
A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca.

Isto é Poesia saída da terra. Os livros de Mia Couto têm este condão de nos embalar numa beleza impar das palavras. A sua escrita sintética, depurada, tem a mesma beleza que as paisagens de Moçambique.

Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.
O chão, a vida e a morte; o céu enquanto sonho.

… a guerra que contaminara toda a sua terra
A guerra contaminara a terra com a morte.

Seu conceito era que a morte nos apanha deitados sobre a moleza de uma esteira. Leito dele era o puro chão, lugar onde a chuva também gosta de deitar:

Um conceito puro da terra: o pai de Kindzu encarava a terra como algo de puro e benéfico; ainda não estava conspurcada e amaldiçoada pela guerra.

Taímo recebia notícia do futuro por via dos antepassados. Dizia tantas previsões que nem havia tempo de provar nenhuma. Eu me perguntava sobre a verdade daquelas visões do velho, estorinhador como ele era.
O pai de Kindzu alinhava o tempo numa única realidade, sintetizando passado, presente e futuro através do sonho.

O comerciante indiano, Surendra, vítima de racismo, por ser ”monhé”: Eu gosto de homens que não tem raça. É por isso que eu gosto de si, Kindzu.

Depois há aqueles palavras em que Mia Couto transforma adjetivos em verbos; fico sem saber se será recurso literário de Mia Couto ou parte integrante do falar moçambicano?
As palavras originárias do falar moçambicano soam a poesia: “pensageiro” J o povo fala poesia…
E depois há o autor, na sua forma peculiar de brincar com a língua portuguesa, criando palavras como “administraidor”.

- Fica saber: o chão deste mundo é o tecto de um mundo mais por baixo. E sucessivamente, até ao centro, onde mora o primeiro dos mortos.

A terra está sempre presente. Numa visão ecológica, ela é o mundo natural que se mistura com a vida humana. Mas numa visão mais transcendente, ela é a pátria dos mortos que, no entanto, fazem parte do mundo dos vivos.

A guerra é uma desgraça que nunca vem só. Além de trazer a fome, trouxe a corrupção, que é a forma de os ricos se fazerem donos daquilo que seria dos pobres.

O tchóti, o anão caído dos céus, é o elemento fantástico que representa a intervenção do além na vida dos homens; ele não é da terra, assim como a bela mulher, a aparição que surge ao rapaz, no barco. Farida era filhado Céu. Pelo contrário, o velho Siqueleto é emanação da terra, mas uma terra violenta porque violentada, cruel porque vítima de crueldade.

Os personagens do livro são, todos eles, nómadas; desenraizados; como se a terra, sonâmbula, lhes fugisse.

Nhamataca, amigo de Tuhair, é o fazedor de rios: a água purifica a terra, é o elemento positivo. Veja-se a diferença entre o autocarro e o barco; aquele encerra a morte, enquanto o barco abriga o amor.
Na parte final o mar surge como elemento redentor e nascente de esperança, por oposição a uma terra sonâmbula, na antecâmara da morte e de um autocarro queimado, onde a esperança da partida para outras paragens há muito morrera.


Esta guerra não foi feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós – diz o feiticeiro; é com esta angústia de uma terra vencida pela guerra e de um povo massacrado que termina o livro.

domingo, 13 de outubro de 2013

A História de uma Serva - Margaret Atwood



Sinopse
Uma visão marcante da nossa sociedade radicalmente transformada por uma revolução teocrática. A História de Uma Serva tornou-se um dos livros mais influentes e mais lidos do nosso tempo.
Extremistas religiosos de direita derrubaram o governo norte-americano e queimaram a Constituição. A América é agora Gileade, um estado policial e fundamentalista onde as mulheres férteis, conhecidas como Servas, são obrigadas a conceber filhos para a elite estéril.
Defred é uma Serva na República de Gileade e acaba de ser transferida para a casa do enigmático Comandante e da sua ciumenta mulher. Pode ir uma vez por dia aos mercados, cujas tabuletas agora são imagens, porque as mulheres estão proibidas de ler. Tem de rezar para que o Comandante a engravide, já que, numa época de grande decréscimo do número de nascimentos, o valor de Defred reside na sua fertilidade, e o fracasso significa o exílio nas Colónias, perigosamente poluídas. Defred lembra-se de um tempo em que vivia com o marido e a filha e tinha um emprego, antes de perder tudo, incluindo o nome. Essas memórias misturam-se agora com ideias perigosas de rebelião e amor.

Comentário:
A leitura deste livro fez-me viajar mentalmente, várias vezes, para esse magnífico livro que é “A Estrada” de Cormac Mccarthy. Neste como naquele, o cenário apocalíptico assola a mente do leitor com aquilo que tem de mais medonho: a sensação de realidade, de um pesadelo real. A serva é uma personagem anónima e subjugada por um mundo onde todo o sonho se perdeu, onde a vida não passa de uma terrível prisão, sem destino, sem qualquer raio de esperança. O seu nome, por exemplo, é apenas um patronímico (Defred resulta do seu dono ser Fred). Até ao nome ela perdera o direito.
No fundo, é esta a realidade contraditória da atual sociedade americana: a pátria do capitalismo, das liberdades individuais, a pátria do sonho, caminha para um abismo. São enormes as implicações políticas desta mensagem; trata-se de um estrondoso grito de alerta perante o crescente radicalismo de algumas ideologias políticas mas é mais que isso: é uma reflexão filosófica mas tremendamente real sobre o futuro da América. E não é só o caminho errado das políticas americanas que está em causa. É também um culto do obscurantismo, da ignorância, que haveria de conduzir a tal desgraça. Essa ignorância haveria de conduzir a conflitos políticos e militares que estiveram na base da afirmação da tirania geradora de tal cataclismo social.
O final do livro revela-nos que o apocalipse não é universal: a velha Europa tinha escapado àquele caminho. Não deixa de ser curiosa esta leitura tendo em conta a onda de pessimismo em que o velho continente está hoje em dia mergulhado.
Um aspeto fundamental deste livro é o facto de serem as mulheres as vítimas de toda a opressão que o regime ultra conservador envolveu; elas são a esperança de um novo mundo mas são também as escravas do regime. O facto de só elas serem portadoras da esperança, gerando filhos (e é essa a sua única função) levou ao inverso do que seria lógico: levou ao desprezo total dos seus direitos e da sua própria vida.
Muito mais do que um livro escatológico, este é um livro negro; a voz da autora soa como um grito de alarme perante as contradições e os erros do sistema político, da mentalidade e das estruturas sociais dos EUA.
No entanto, a intervenção social da mensagem não é o único ponto forte da obra; a narrativa é sempre emocionante, numa estrutura que Margaret Atwood concebeu de forma magistral, com flashbacks que contribuem para manter acesa toda a curiosidade do leitor sobre a origem daquele beco sem saída em que entrara a sociedade norte-americana.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Ficções - Jorge Luís Borges

Sinopse:
Ficções reúne os contos publicados por Borges em 1941 sob o título de O jardim de veredas que se bifurcam (com exceção de "A aproximação a Almotásim", incorporado a outra obra) e outras dez narrativas com o subtítulo de Artifícios. Nesses textos, o leitor se defronta com um narrador inquisitivo que expõe, com elegância e economia de meios, de forma paradoxal e lapidar, suas conjeturas e perplexidades sobre o universo, retomando motivos recorrentes em seus poemas e ensaios desde o início de sua carreira: o tempo, a eternidade, o infinito. Os enredos são como múltiplos labirintos e se desdobram num jogo infindável de espelhos, especulações e hipóteses, às vezes com a perícia de intrigas policiais e o gosto da aventura, para quase sempre desembocar na perplexidade metafísica. Chamam a atenção a frase enxuta, o poder de síntese e o rigor da construção, que tem algo da poesia e outro tanto da prosa filosófica, sem nunca perder o humor desconcertante. 

Comentário:
A narrativa fantástica de Borges é, além de pioneira, única e peculiar.
Este livro de contos tornou-se um marco na literatura do século XX pela sua perfeição de estilo, pela abrangência filosófica e por uma estética interna feita de rigor e delicadeza formal.
A capa exibida acima, de uma edição brasileira, é uma síntese magnífica dessa delicadeza formal, construída sobre uma espécie de geometria, como se todos os contos fossem traçados a régua e esquadro.
Borges não escreve “ao correr da pena”; a sua escrita parece ter saído de um laboratório, em que cada palavra foi medida e pesada. Não há adjetivos como adorno de linguagem, nem frases construídas em função da estética. Há, isso sim, um rigor quase matemático que torna a leitora difícil para um leitor que apenas procure diversão.
Na realidade, estas ficções não foram construídas para divertir, mas sim para exprimir sensações, sentimentos e pensamentos em torno do mundo, do ser, da morte, da imortalidade, do tempo e da sua relatividade.
Alguns contos, com estrutura que os aproximam da literatura policial podem considerar-se mas “leves”, em termos narrativos. Mas por detrás de todos eles há uma visão pensada, refletida, do sentido da vida humana e do tempo.
Por vezes, o fantástico que percorre todo o livro faz lembrar o surrealismo, pela forma absurda com que o real é exposto; assim é, por exemplo, no primeiro conto. Aí deparamos com uma verdade universal escondida pro detrás das palavras e da estória: toda e qualquer leitura do real será sempre absurda; porque todo o real é absurdo. Esta ideia parece-me ser transportada para outros contos, fazendo desta narrativa inicial uma espécie de mote para todo o livro.
Confunde-se no livro, como na vida, o real com o ilusório; o fantástico com o objetivo. Mas também o passado com o presente e o interior de um homem com o que lhe é exterior. O homem de Babilónia, no conto “A Lotaria de Babilónia” afirma que conheceu “o que os gregos ignoram: a incerteza”. “A lotaria é parte principal da realidade”. Assim é o pensamento de Borges: muito mais do que realista – surreal, fantástico, metafisico, transcendente.

Numa nota pessoal posso dizer que me senti mais pequeno perante este livro de Borges: o mundo e a vida são demasiado complexos para julgarmos que os conhecemos. E tudo aquilo a que chamamos fantástico, ou irreal, ou até errado pode ser tão verdadeiro como a morte.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A sondagem - Bimbys ou coisas que nos moam o juízo?


Agora sim, está fechada a sondagem. Já com um número de participantes minimamente representativo (76) conclui-se que 44 deles (57%) preferem ler nas férias livros mais reflexivos, em vez dos tão propalados “levezinhos”.
Já tivemos também aqui uma interessante discussão sobre o que se considera ser levezinho. Pode tratar-se de literatura light, literatura de cordel, literatura de casa de banho. Ou, para ser mais simpático, uma espécie de literatura Bimby, fácil de cozinhar, fácil de comer.
Mas pode tratar-se também de literatura conceituada mas com leitura fácil e agradável, como por exemplo os magníficos exemplares da literatura romântica francesa do século XIX. Seja como for, estes livros parecem ser preteridos, pelo menos pela maioria dos frequentadores deste blogue, em favor das obras que apelam mais à reflexão.

Sem qualquer pretenciosismo acho que estes números são surpreendentes; na verdade, a maioria das editoras encaram o verão como um período em que as pessoas procuram principalmente os tais “levezinhos”. Talvez não seja bem assim, afinal…

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A Náusea - Jean Paul Sartre


Sinopse:
A Náusea foi o primeiro romance de Sartre e foi saudado aquando do seu aparecimento como a revelação dum escritor de grande talento. Através do diário diurno íntimo do protagonista, Antoine Roquentin, Sartre retrata com um realismo digno de Maupassant a vida e os habitantes duma cidade da província, explorando a fundo o absurdo da condição humana, tema que mais tarde o tornaria um autor incontornável.

Comentário:
A aversão aos outros, o culto de um determinado tipo de evasão solitária, o pessimismo angustiado são algumas das ideias base deste livro, ideias essas que vieram a tornar-se fulcrais em toda a literatura existencialista francesa.
Não há dúvidas que estamos perante uma obra de charneira naquela corrente literária e um exercício literário único na vida deste filósofo que um dia afirmou que “o Inferno são os outros”.
No entanto, mau grado a dimensão filosófica da obra, ela é-nos apresentada num estilo algo poético, que cativa por uma subjetividade por vezes pungente, dramática. Roquetin é um homem solitário. Ou melhor, um homem que construiu a sua própria solidão, de forma voluntária.
No período da sua vida a que o livro se refere, Roquetin é assolado frequentemente por uma sensação de náusea que o atinge especialmente em determinadas situações de confronto com os outros. Eles surgem quase sempre como veículos de sofrimento. Todos exceto Anny. No entanto, na parte final do livro, nem Anny haverá de o ajudar a ultrapassar esse sofrimento.
O que mais choca o leitor (e terá sido essa uma das principais intenções de Sartre) é a sensação de impotência do personagem perante o mundo que o rodeia: perante os outros e perante as coisas. Tudo serve para subjugar Roquetin que se refugia numa profunda e irritante inação. Uma inação assumida, é certo, mas que a espaços se confunde com o mais atroz egoísmo.
Da inação ao desprezo pelos outros vai um pequeno passo; mas depressa Roquetin cai em contradições que talvez sejam próprias da alma humana: despreza os outros porque eles vivem em rotinas monótonas mas ele próprio, por outras vias, cai no mesmo tipo de rotinas, agravadas pela subjugação total da sua personalidade. Roquetin entende que não tem qualquer obrigação de ajudar os outros porque eles em nada servem para a sua felicidade mas fica bem patente que Anny, que não deixa de ser um “outro”, seria a única escapatória à desgraça.
Roquetin abomina especialmente os humanistas, considerando-os ingénuos. No entanto, nem ele escapa à tentação de ajudar desesperadamente o seu único amigo (o Autodidata, um humanista que ele abomina também) no momento em que ele se encontra numa situação perigosa.
Enfim, ficamos sem saber se estas são as contradições de um Roquetin condenado à inação ou se estas serão mesmo as contradições de todas as almas humanas.
Goste-se ou não, concorde-se ou discorde-se, este livro foi um duplo marco na cultura do século XX: um marco literário nas letras francesas e um marco filosófico, num livro de charneira no existencialismo europeu.

Um livro que se lê com alguma dificuldade tal é a profundidade psicológica e filosófica do enredo mas, ao mesmo tempo, uma obra fascinante pela abordagem corajosa embora pessimista, profunda embora deprimida da alma humana.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

E se for rapariga chama-se Custódia - Luís de Sttau Monteiro

Sinopse
Que circunstâncias levam dois homens a revelarem o que de mais íntimo têm em si, que circunstâncias determinam que dois homens procurem ultrapassar os seus medos, procurarem libertar-se da solidão que os oprime...?
O Mais Velho e o Mais Novo são dois homens que, numa noite na prisão revivem memórias num diálogo acompanhado pela noite e pela solidão.

Comentário:
 “A derrota, pensou o mais novo, seria aceitável se deixasse um homem sem futuro – o futuro constrói-se, falseia-se – mas deixa um homem sem passado.”
Falecido em 1993 com sessenta e sete anos e tendo sido perseguido pela censura da ditadura salazarista, Sttau Monteiro escreveu pouco. Foi essencialmente dramaturgo, tendo como obra-prima essa magnífica peça de teatro, Felizmente Há Luar. No que respeita à prosa de ficção escreveu e publicou apenas quatro obras, sendo uma delas, de 1966, este E Se For Rapariga Chama-se Custódia.
Trata-se de um relato impressionante de uma conversa entre dois homens, na prisão. Um diálogo que é confissão, desabafo, libertação.
É na prisão que estes homens encontram a paz suficiente para pensar e conversar; no campo o trabalho não lhes deixa tempo para tais devaneios. Mas aqui, entre quatro paredes, o pensamento acarreta a solidão; é por isso que a noite cai sobre eles.
O tom poético da escrita de Sttau Monteiro é encantador para quem lê e reforça o ambiente de doce solidão que os envolve. Porque só nessa solidão podem vir ao de cima os sentimentos.
O quadro é sóbrio e cheio de intensidade dramática; é uma espécie de microcosmos desse universo fascista castrador, aterrorizador, numa realidade de opressão escondida, velada, sofrida na sombra. É neste quadro sombrio e ao mesmo tempo poético que vai emergindo um amor, primeiro nebuloso depois triunfal por Custódia.
A prosa de Sttau Monteiro é também expressão de um profundo humanismo na forma como os homens confessam as suas fraquezas e limitações.
E o valor da solidariedade: Um homem não vive só como um chaparro velho num montado: basta-lhe estender a mão.
Custódia é muito mais que memória; é sonho, futuro e… liberdade. Mas é também memória; uma memória avassaladora, por vezes doentia, perante a qual o discurso de desabafo do “mais velho” funciona como uma catarse e, ao mesmo, redenção de um passado doloroso. No entanto, nas memórias do mais velho mistura-se a dor com a esperança. E há-de ser com esperança que o livro há-de terminar, porque como escrevera Manuel Alegre um ano antes, Mesmo na noite mais triste / em tempo de servidão / há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz não.


domingo, 1 de setembro de 2013

Contos do Caneco - Fernando Évora, João Pedro Duarte, José Teles Lacerda, Luís Miguel Ricardo e Vítor Encarnação

Apresentação:
Em Maio de 2013 o Clube dos Poetas Vivos reuniu, numa célebre tertúlia, cinco escritores cuja vida e obra estão, de algum modo, ligadas ao Alentejo. Os escolhidos foram Fernando Évora, João Pedro Duarte, José Teles Lacerda, Luís Miguel Ricardo e Vítor Encarnação. Foi um fim-de-semana de conversas com leitores, trocas de opiniões, passeios, petiscos e muito mais. Um fim-de-semana inspirador para que esses cinco autores viessem a escrever cinco contos cujo cenário são as terras de São Teotónio e Zambujeira do Mar. Cinco “Contos do Caneco”.



Comentário:
Em boa hora tomei conhecimento deste livrinho de contos, proveniente de um dos sítios mais encantadores de Portugal: a região do Mira. Recebi-o num dia e acabei de o ler 24 horas depois. Só isto diz bem da forma agradável como se lê.
Cinco escritores oferecem-nos outros tantos contos, todos eles com um denominador comum: as terras do Mira; do calor humano de Odemira ao azul mágico da Zambujeira, passando pelas festas coloridas de S. Teotónio e com um saltinho cheio de mistério ao assustadoramente belo Cabo Sardão.
Para mim, pessoalmente, foi um regresso a esse Alentejo tão belo, no seu cantinho sudoeste- Gente pura, gente de trabalho e amizades fortes, todos eles, os alentejanos, estão nestes contos, dando vida a paisagens encantas e searas escaldantes.
Nunca foi um adepto deste género literário, os contos. No entanto, aqui senti-me voltar à grande tradição do conto popular, ouvido com quase devoção na soleira da porta de uma casita branca e azul, ou nas eiras do Minho, em volta de um cesto de espigas de milho acabado de desfolhar. Reerguer este conto popular, parece ser o valor maior desta obra. O conto nascido da emoção, imaginação mas também do sofrimento do povo que somos nós e contado por sábios diplomados pela carta de rugas que trazem no rosto, 
O humor matreiro, bem patente em alguns destes contos é o veículo da sátira, por vezes ligada de forma genial à atualidade deste nosso reyno, assim como a ironia fina, a crítica social, por exemplo com essa figura magnífica que é o Chef Raton do conto “Paris Existe?” são armas de grande alcance nestes magníficos textos.
Talvez não o devesse fazer (porque são cinco contos magníficos) mas não resisto a destacar dois deles porque me agradaram sobremaneira. Refiro-me a Terno Tesouro, pelo espírito de intervenção social a fazer lembrar as cantigas do Vitorino: um patrão que é um símbolo da prepotência dos líderes da ditadura mas também de muitos “coirões” atuais e um operário que luta contra tudo e todos, incluindo a sua própria loucura. E destaco também Paris Existe? Talvez o conto mais elaborado deste livro, com um tom de crítica social divertida e atual, um sentido de humor a que o autor já nos habituou e, acima de tudo, por uma mensagenzinha que me ficou na mente: talvez o destino de qualquer homem seja procurar a sua Paris e talvez ela só se encontre bem junto das suas raízes…
Apresentação e foto de http://www.riomira.com