Um livro negro. A história de um escritor que traz o amor e a morte no peito. E os mortos: o pai, a escrava madalena e ela – a que ele ama.
No início, o escritor era uma criança que crescia entre auto-estradas de prateleiras de livros. Pouco tempo depois é um jovem solitário. É nessa solidão que inventa, na escuridão, a mulher que ama, instalando-a na sua mente. Palavras meticulosamente escolhidas e sentidas descrevem um amor apenas sonhado. Mas o mais belo dos amores: um amor sem corpo presente. Uma paixão desmedida, interior mas feliz, rodeada de terror: um pai que agoniza, uma mãe que sofre, uma escrava assassinada com um machado na face. Sofrimentos reais. Só o amor é irreal. Só o amor é feliz; um amor que é “o sangue do sol dentro do sol”.
O pai assassinou a escrava madalena para morrer com ela. O sangue dá significado ao amor. Só a morte o perpetua.
A mão do escritor tremia e ele escrevia. Escrevia-a e lia-a. Vivia-a. Amava-a. Em Novembro havia a luz que “vinha da primavera”. Ele é um escritor lido em todo o mundo, mas é um homem só… só com ela no peito.
O livro – docemente melancólico; apaixonadamente triste, tétrico, como se escrito a lágrimas vermelhas e negras.
A escrita – Peixoto brinca com as palavras como Kandinsky com as cores, que vão do vermelho paixão ao negro morte.
O enredo – uma música suave e melancólica, mortal e cheia de vida.
E lá fora, fora do amor e da escuridão de uma casa povoada de gatos, há a morte que mais tarde irromperá portas a dentro, impiedosa e brutal; há o terror anunciado pelo príncipe de calicatri, mensageiro do amor e da morte, da amizade e do terror. E há o resto do mundo: o medo, o sofrimento e a solidão que estão por todo o lado e se juntam no peito das pessoas.
Perante o horror do mundo, o escritor começa por se refugiar em si mesmo, no amor que traz no coração e na mão que trema ao escrever.
De repente um terror surreal invade as palavras; um vento tempestuoso, avassalador, toma conta das frases. A violência mais extrema, descrita com crueldade, sem piedade do leitor (porque a compaixão não existe no mundo); corpos decepados, corações arrancados à espada, ouvidos e olhos trespassados por agulhas… o leitor, aterrorizado, não consegue não consegue parar de ler porque o sangue é tão forte como o amor.
Os soldados matam e torturam como se cumprissem uma espécie de rito trivial, um parêntesis nas suas vidas, que é igual à de todos os outros. Matam porque a vida deles é matar. Violam as escravas porque a vida deles é violar.
As páginas avançam e o sofrimento atroz ultrapassa todas as fronteiras do suportável, dando lugar ao desespero de existir. O terror incendeia as páginas, apenas interrompidas por citações da Bíbila, do Livro dos Salmos, momentos de solidão extrema… nada impedirá que matem a música, torturem e matem as crianças e decepem os escritores.
Nada impedirá a escuridão.
E depois de tanto sangue, sofrimento, terror e escuridão, é possível encontrar um final encantador neste livro? Sim.
7 comentários:
Li este livro doente e em dois dias, pois no segundo dia à noite ia estar numa sessão de autógrafos com o escritor e não queria perder esse momento nem por nada. Lembro-me de já na sessão de lhe ter colocado a questão de "Como é que um livro tão triste conseguia ser tão belo"? E de ele ter respondido apenas com um sorriso. Não foi preciso mais.
Foi o primeiro livro que li do autor e o ficou mesmo sendo aquele especial do cantinho do lado esquerdo. Depois não mais consegui parar de levar José Luís Peixoto para casa. E o próximo sai já no dia 17 de Setembro. :)
Gostei muito de ler as tuas palavras, Manuel. Mesmo depois de oito anos passados consegui encontrar nelas toda a essência sofrida e bela da história.
É que faz sofrer mesmo! Sentir aquela estória é uma experiência que chega a ser muito dolorosa. É impressionante o poder da escrita, não é?
Mas o mais impressionante é que, depois de tanta dor, o final é lindissimo. Adorei aquele finalzinho :)
Com toda a sinceridade: Peixoto é, para mim, o único génio da chamada nova geração da literatura portuguesa.
Podes crer, Manuel!
Sim o final é simplesmente lin-do! Já o reli por várias vezes. :)
Concordo contigo, mas este ano descobri Valter Hugo Mãe e David Soares e quero crer que estes dois autores também têm muito para dar à nossa literatura. Tal como o Peixoto fogem muito ao que se escreve por aí...
Pois bem.
Nunca li nada de Peixoto porque tenho a ideia, que por acaso fica mais vincada com o teu texto, que é um autor triste que escreve textos tristes.
E, pois bem, não gosto de coisas tristes. Triste é a sociedade onde vivemos e, sinceramente, não quero ler textos que a expressem. Não lhe tiro qualquer valor, mas de tristeza não.
No entanto admito que posso estar enganado.
Sobre walter hugo mãe e David Soares apenas posso dizer maravilhas. Penso que são dois autores excepcionais e os "mundos" de David Soares encantam-me.
Do Valter Hugo li o Remorso de Baltasar Serapião e adorei. De David soares estou mortinho por ler o Evangelho do Enforcado.
Iceman, O Remorso de Baltasar Serapião do Valter Hugo Mãe, também é bem triste...
Bem, eu acho que é acima de tudo uma escrita poética. É triste sim, mas cabe ao leitor criar o necessario afastamento para não se envolver mais do que o necessário para sentir as palavras.
mas, globalmente, concordo contigo. Também eu tenho feito um esforço por ler coisas mais positivas. Aconselho-te isto: http://aminhaestante.blogspot.com/2010/07/flashman-odisseia-de-um-cobarde-george.html
Acho que ias adorar.
Flashman?
Já li e até já publiquei a opinião.
Excelente, sem duvida!
ops... meti água :) Já li a tua opinião e tudo... este queijo da serra...
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