terça-feira, 19 de abril de 2011

Crónica do Pássaro de Corda - Haruki Murakami

Nem sei por onde começar. Talvez pelo fim. Trata-se de um livro fantástico. Talvez o melhor de Murakami.
Este livro é um verdadeiro tratado.
Tudo começa com um enquadramento muito simples. Ele, Toru Okada está desempregado. Trabalhava numa firma de advogados mas despediu-se. Ela, a esposa Kumiko trabalha como editora de uma revista de dietética e alimentação natural. Um emprego vulgar e uma vida aparentemente vulgar. Viviam com um gato, Noboru Wataya, a quem tinham dado o nome do irmão de Kumiko. Um dia o gato desapareceu. E é a partir daqui que tudo começa. Mas começa o quê? Uma série interminável de episódios cada vez mais estranhos à luz das mentes normais. Acontece que não há mentes normais. Não há lógica na vida e essa é uma das coisas mais importantes que Murakami nos ensina.
As personagens vão aparecendo e desfilando perante nós, cada vez mais surpreendentes e encantadoras, quer pela bondade quer pela maldade. Tudo isso é humano. Como humanos são os sonhos e as fantasias.
Toru começa a refugiar-se num poço seco de uma casa maldita. Aí ele vive momentos encantados onde o real e o sonho se misturam. Como na vida.
Tudo em Murakami é simbólico. Mas tudo é explicado. Na mente do leitor vão-se explicando, por si, todos os signos. Eles envolvem significado e significante, que Murakami procura aclarar sem cair naquele simbolismo obscuro que muitos autores cultivaram.
À procura de um gato. Um gato que simboliza a liberdade e a personalidade; aquilo que falta ao ser humano: a coragem de desafiar destinos, de associar sonhos à realidade, de passar fronteiras.
Tudo se passa como as personagens procurassem a todo o custo chegar a situações-limite, sem as quais não há sentido para a vida. No centro do enredo encontram-se ligações às terríveis guerras que o Japão enfrentou: a invasão da Manchuria nos anos 30, com a consequente e dramática guerra sino-japonesa e a segunda guerra mundial. Situações-limite que fizeram nascer um novo Japão. Como na vida das pessoas: é preciso ir ao fundo do poço. É preciso descer ao fundo quando se desce e subir ao topo mais alto quando se sobe.
Ao longo de seiscentas e trinta páginas, Murakami leva-nos pela mão ao encontro das mais absurdas situações. E depressa descobrimos que o absurdo é aparente. Tão aparente como a lógica das coisas. Não há lógica; há apenas aparências. Tudo à nossa volta são mistérios que escondemos para enganar a vida e a consciência.
O exemplo mais notável, mais profundo encontra-se nas últimas páginas do livro. Vamos ver se consigo explicar isto evitando os malditos spoilers: alguém se encontrava sequestrado. E o sequestro acabará da forma mais bela que este humilde leitor poderia imaginar. A personagem estava sequestrada pela sua própria mente. Ela não foi raptada; ela entregara-se ao sequestrador. O que tem isto de encantador? É que de repente descobrimos que aquela personagem e aquela situação nada têm de estranho. Ela é igual a qualquer um de nós: entregara-se a um sequestro, como todos nós. As piores prisões não envolvem grades nem correntes: somos nós que as construímos.
No final do livro, como sempre, só apetece sorrir e dizer bem alto: ARIGATOU, Murakami.
Avaliação Pessoal: 9.5/10

12 comentários:

Lia Silva disse...

adorei a critica..

Paula disse...

Arigato Murakami :)
Adorei o comentário. Ando com este livro a meio há já algum tempo...

Unknown disse...

Obriagado Lia e Paula.
Paula, tens de avançar nisso; olha que o final é magnífico.
Ah, é verdade: parece que se diz Arigatou e não Arigato. Vou já corrigir

N. Martins disse...

Adorei a crítica! Lê-la trouxe-me um bocadinho da magia deste livro. É, até agora, aquele que mais gostei de ler do Murakami e provavelmente um dos melhores que já li. Muito muito bom! :)

NLivros disse...

Deve ser uma questão de tempo até Murakami ganhar o Nobel.

Kézia Lôbo disse...

Otima critica e sem falar da dica do livro que sinceramente nem conhecia!

Unknown disse...

N.
Concordo. Todos os livros de Murakami têm qualquer coisa de mágico. Mas este é, ainda assim, especial.
Iceman
parece-me que não é suficientemente obscuro para ganhar o Nobel :). Mas, para mim, é um dos dois maiores da actualidade, a par de Auster.
Kézia, este autor é irresistível. Aconselho-te porque é quase impossível não gostar.

Anónimo disse...

Um livro cheio de símbolos escondidos, mesmo ao jeito da literatura japonesa. Nada acontece por acaso, a intensidade das personagens e do meio envolvente.. Li-o em 2008 e já na altura achei brilhante..

http://www.amaoquepensa.blogspot.com/

Marco Magalhaes disse...

Já o tinha dito no teu post relativo ao Norwegian Wood que este livro é fantástico um dos meus preferidos, Murakami é um escritor de culto que aconselho vivamente, na minha prateleira tenho a coleççao toda deste autor.

Fragmentos Repartidos disse...

Já li alguns livros de Murakami (como por exemplo 1Q84, Kafka à beira mar, after dark e O Maravilhoso pais das maravilhas e o fim do mundo) e tenho gostado do que li. Agora a questão é qual o próximo livro de Murakami a ser lido que seja capaz de me surpreender (pela positiva claro)...
Esse "do pássaro" é um hipótese. Qual a sua (tua) sugestão?

Unknown disse...

Olá. Benvindo/a a este cantinho:)
Respondendo diretamente à pergunta: já leu o que considero o melhor de murakami (1Q84 e Kafka à beira mar). Mas há 3 livros que ainda o/a podem surpreender: Este Crónica do Pássaro de Corda pela magia, pelo encantamento; Sputnik Meu Amor por ser uma portentosa história de amor (mas sem lamechices nem caminho fáceis) e Norwegian Wood por ser o primeiro sucesso do autor onde ainda podemos encontrar um MUrakami algo ingénuo :)
Abraço

Fragmentos Repartidos disse...

Obrigado pela visita ao meu blog e pelo comentário lá deixado.
Quando quiseres lá passar, estás à vontade.

Provavelmente este "A Crónica de Um Pássaro de corda" será o próximo livro de Murakami que irei ler.
Quanto a Norwegian Wood, vi o filme e gostei. Teria talvez piada ler o livro para ter algo com que comparar.

Irei certamente voltar aqui ao teu blog, pois suponho que não irão faltar sugestões de leitura!

Abraço