quinta-feira, 10 de julho de 2014

Último acto em Lisboa - Robert Wilson


Comentário:
Porque é que os estrangeiros veem o nosso país e a nossa história de uma forma mais clara e acertada do que nós próprios? Esta questão há muito que me preocupa e fascina. Mas fiquemos-nos por este livro.
O autor, inglês, é conhecido internacionalmente como escritor policial. No entanto, nesta obra, ele vai bastante além das fronteiras do género.
Antes de mais nada deve dizer-se que não é um livro ambicioso, embora muito extenso. Não é um livro brilhante, mas lê-se com tremendo agrado. A narrativa de Wilson tem qualquer coisa de muito peculiar: sem imprimir um ritmo muito acelerado à acção, ele nunca deixa de nos prender totalmente a atenção. Por outras palavras: a qualidade da sua escrita permite criar uma envolvência tão grande que o autor se pode dar ao luxo de imprimir um ritmo por vezes algo lento, a não ser talvez nas últimas páginas.
Mas o que mais me impressionou neste livro foi a leitura tão clara, concisa e acertada que o autor faz da participação indireta de Portugal na segunda guerra mundial. Ele desmonta como nunca ninguém conseguiu, o velho erro que muitos de nós cometemos ao acreditar piamente que Salazar nos manteve afastados da guerra. Pelo contrário, Wilson demonstra-nos com clareza a forma descarada como o ditador negociou com Hitler, fornecendo-lhe o volfrâmio que ajudou a matar tantos milhões de pessoas, ao mesmo tempo que negociava também com a outra parte, os ingleses. Ao mesmo tempo, explica-se como o ouro nazi veio parar a Portugal, ouro sujo pelos crimes perpetrados contra os judeus e não só. Ao mesmo tempo, retrata-se um Portugal afundado na miséria, enquanto Salazar dormia sobre o ouro nazi.
Mas também a revolução de 25 de Abril tem lugar neste livro; mais uma vez, vista de forma muito clara e objetiva, mostrando-nos mesmo algumas facetas pouco esclarecidas pelos (talvez envergonhados) escritores portugueses; é o caso, por exemplo, da história ainda muito mal contada da fuga dos "Pides" para o Brasil e da inserção de outros, muitas vezes camuflados, nas forças de segurança do Portugal democrático. Dessa forma, muitos criminosos da tortura fascista acabaram por se integrar cobardemente na sociedade democrática, muitas vezes com falsas identidades.
Em termos formais, este livro apresenta-se também de forma muito interessante, com duas estórias separadas no tempo (anos 40 e anos 90), mas que acabarão por se cruzar nos finais da década de 90 do século XX. O enredo é digno da melhor literatura policial. O estilo é direto, objetivo, fácil. 
Enfim, um livro muito agradável para ler em férias, mas também uma obra cheia de informações preciosas para quem pretende conhecer melhor o século XX português.

Sinopse (in www.wook.pt):
1941
Klaus Felsen, o proprietário de uma fábrica em Berlim, é forçado a alistar-se nas SS e a dirigir-se a Lisboa, cidade de luz, onde ao ritmo dos dias convergem nazis e aliados, refugiados e especuladores, todos dançando ao compasso do oportunismo e do desespero. A sua missão é infiltrar-se nas geladas montanhas do Norte de Portugal, onde se trava uma luta traiçoeira pelo volfrâmio, elemento essencial à blitzkrieg de Hitler. Aí encontra Manuel Abrantes, o homem que põe em movimento a roda de ambição e vingança que irá girar até ao final do século.

Final dos anos 1990.
O inspector Zé Coelho, da Polícia Judiciária, investiga o crime sexual cometido contra uma jovem adolescente em Lisboa. Esta pesquisa conduzirá Coelho por terrenos lodosos da História a um crime mais antigo - enterrado com os ossos de um passado de fascismo - e a um pavoroso motivo enterrado ainda mais fundo. E, uma vez à superfície, o passado e o presente irão convergir com implicações arrepiantes e consequências insondáveis.

5 comentários:

Denise disse...

Manuel,

Assim não pode ser!
A forma como comentas os livros deixam sempre uma enorme vontade de os ler, e depois? A lista aumenta e aumenta e aumenta... :P

Muito bom ;)

Unknown disse...

Olá Denise
:)
Este livro foi-me oferecido por alguém que sabe imenso de livros e passou a vida toda a ensinar literatura. Portanto... neste caso tá tudo dito ;)

nuno chaves disse...

Ora! Ora! Finalmente!
Cá está o "tal" que te recomendei e já lá vão praticamente 5 anos de (Página a Página)
Ainda bem que gostaste Manuel, aliás tinha a certeza de que irias gostar!
Foi um livro que me marcou bastante na altura em que o li (12 anos atrás) creio que se o voltasse a ler hoje o veria com outros olhos.
Gostei bastante desta tua análise, e de facto é verdade que este livro envergonharia muitos autores Portugueses, pelo rigor e objectividade dos pequenos pormenores, vistos pelos olhos de Robert Wilson.

Aproveito para te recomendar "A Companhia de Estranhos" do mesmo autor, que segue muito nesta linha.
Também gostei bastante.
Um grande abraço.

Unknown disse...

Olá Nuno
já não me lembrava desse teu comentário :) Mas e calhar ficou no inconsciente.
Já anotei esta tua nova sugestão.
Um abraço e obrigado

N. Martins disse...

Também gosto. Este ainda não li. Li o Cego de Sevilha, de que gostei muito. É dos poucos autores de policiais que está na minha lista de leituras.
É realmente curioso como os estrangeiros vêm coisas que nós não apreendemos...