Comentário:
Segundo livro de Dickens, apresenta-nos as bases daqueles que serão os traços fundamentais da sua magnífica bibliografia: escrita muito visual, simples e fluída, servindo de base a uma temática de âmbito social que hoje talvez apelidaríamos “de intervenção”. Numa fase pré-socialista e pré-sindical, o capitalismo ainda mais selvagem que o de hoje imperava no ambiente vitoriano. A sociedade “british”, altiva e hipócrita, encaixava no seu seio a mais rude e desumana pobreza, encarando-a com naturalidade, como se os homens desprotegidos pela sorte constituíssem uma espécie de casta menor, que esses mesmos cidadãos “asseados” tinham de suportar.
Oliver, o miúdo órfão representa toda essa classe de crianças que a sociedade londrina rejeita, empurrando-a para a sarjeta da criminalidade e da miséria.
Este é um dos primeiros livros de Dickens e talvez por isso é um dos mais lineares e mais “ingénuos” na medida em que privilegia a narrativa, o humor e a emoção, a incerteza no evoluir da narrativa. Na sua tendência para a narrativa biográfica de ficção (que viria a reforçar e desenvolver com Nicholas Nickleby e David Copperfield, toda a ação é centrada nas personagens, nas suas emoções e sentimentos. Neste aspeto talvez Dickens tenha sido um dos percursores do género “novela”, entendido como romance ligeiro e que dá preferência às histórias “de vida”. Não sei, deixo isso aos especialistas da literatura. No entanto, o que interessa reter é que, sendo uma obra publicada em fascículos, Dickens, mesmo nesta fase inicial da carreira, manobra como ninguém a emoção e a incerteza na mente do leitor levando-o a devorar página sobre página.
Embora seja um crítico da austera sociedade vitoriana com todos os seus problemas. Dickens não deixa de ser, a seu modo, um moralista, como se vê numa parte essencial do livro em que um assassinato é seguido por uma violenta crise de consciência, um remorso a fazer lembrar o Crime e Castigo de Dostoievski.
Neste livro, o génio britânico desmente um pouco aquela ideia que por vezes fixamos a respeito das suas ideias, segundo a qual o autor defende incontornavelmente os elementos hierarquicamente mais baixos da sociedade; na verdade, aqui ele acusa claramente esse tipo de pobre que se refugia na criminalidade e por vezes roça até um certo moralismo. Mas depressa esse moralismo se desvanece e é substituído pelo humor com que a sua crítica atinge, por exemplo, os elementos da polícia londrina, supremos exemplos de estupidez.
O sentido de humor é finíssimo que deixa um sorriso permanente e não a gargalhada efémera. Exemplo, um trecho de um diálogo entre um bedel (funcionário paroquial) e a mulher de meia-idade, beata e bem nutrida:
“A dama não pôde resistir. Caiu nos braços do bedel, e este depôs um apaixonado beijo no nariz da matrona.
— Que perfeição paroquial! — Exclamou o Sr. Bumble!”
Posteriormente, o casamento destes personagens serve a Dickens para uma corrosiva e brilhante crítica social, apresentando-nos um bedel que deixa de ser o altivo funcionário para se transformar no submisso marido, capaz de encaixar uma valentes “porradas” por parte da matrona.
O livro termina de forma algo melodramática, num quadro profundamente emotivo que Dickens não repetirá (pelo menos de forma tão vincada) nas obras subsequentes.
Uma nota final para esta histórica e excelente tradução de Machado de Assis: aqui nada é supérfluo. Assis terá optado por uma tradução bastante interventiva que tornou o livro mais sintético mas, ao mesmo tempo, mais atraente ao leitor.
Sinopse (in wook.pt)
Obra maior de Charles Dickens, Oliver Twist destaca-se pelo seu realismo, retratando pela primeira vez a rudez dos gangs londrinos, até então descritos com glamour e romantismo. Realça a vida de escravatura das crianças de rua e um submundo paralelo ao mundo imperial da Grã-Bretanha.
Ladrões, assassinos, mentes perversas, prostitutas, a dureza da vida na sarjeta num mundo sem esperança povoam o universo de Oliver Twist, o órfão que personifica a resistência ao sofrimento à corrupção e à luta pela vida que faz dele um verdadeiro sobrevivente. Diversas vezes adaptado ao cinema e à televisão, Oliver Twist tem agora uma nova versão cinematográfica pela mão do mestre Roman Polanski.
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