sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Valter Hugo Mãe - O Remorso de Baltazar Serapião

José Saramago não andava longe da verdade quando afirmou que este livro era um verdadeiro “tsunami” na literatura portuguesa. A força, a violência da escrita, a desordem emocional que provoca no leitor, o desmascarar de fantasmas que persistem na memória colectiva portuguesa, são vagas de fundo que se escondem por detrás das 174 páginas deste livrinho e que emergem constantemente, para assaltar violentamente a mente de quem lê.
Primeira marca d’água sensível ao leitor: o estilo; a ausência de maiúsculas não é arrebique de escritor novato à procura de distinção; é o sinal de que a escrita corre como um rio e a leitura quer-se simples e corrediça. O falar do povo é o estilo do escritor; inovador mas com o sentido profundo da alma de gente.
O enredo decorre na Idade Média, tempo de El-rei D. Dinis, um tempo de pobreza e profundas desigualdades sociais; o herói da estória é Baltazar Serapião, da família Sarga, alcunha que advém do nome da vaca da família, ela própria figura central do enredo. Os Sarga confundem-se com a vaca e o povo encara-os como filhos da vaca, ou da terra, ou do pecado, ou da loucura. Serapião é um homem revoltado, filho da sociedade senhorial do seu tempo, em que os Senhores dispõem da vida da gente.
No meio de tudo há a mulher e o amor; mas a mulher, que desempenha o sagrado papel de servir o Homem que serve o Senhor, recebe no corpo e na alma a consequência lógica da cadeia hierárquica da violência: o Senhor é dono da vida do servo, como a mulher é propriedade do homem – a serva universal.
A violência sobre a mulher, é a ponta do iceberg de uma sociedade dominada pela força mas também por uma revoltante miséria espiritual, onde a ignorância é transversal aos vários estratos sociais: todos cultivam a superstição de forma quase religiosa. É a força bruta da ignorância a comandar a vidas das gentes e a mulher, ente sagrado e amado, é o alvo final de toda a violência de que o mundo é feito.
Um livro pungente, revoltante, enérgico, bruto. Real. Os medos e a estupidez que nós, homens do século XXI apontamos acusadores à Idade Média, prevalecem na nossa mente e o escritor faz-nos sentir isso; este não é um livro sobre a Idade Média nem um romance histórico; é um livro sobre os nossos monstros e fantasmas. É um livro real, medonho, onde matar uma mulher é castigo quase divino, onde uma vaca pode ser sagrada e amada, uma vaca que é mais que gente! A revolta exprime-se na violência e a hierarquia estende-se para a mulher.
É também um livro sobre o absurdo e o irracional do amor; do amor até à morte…

4 comentários:

Paula disse...

Olá Manuel,
Parece que o escritor usou uma linguagem bastante forte, com o intuito de impressionar e sobretudo de realçar aspectos que marcaram uma determinada sociedade e que continuam marcando as sociedades actuais. Como disseste, um livro sobre os monstros e fantasmas que teimam em persistir entre nós.

Já estava curiosa em relação ao livro, agora é compra certa :)

Abraços

Teresa Diniz disse...

Deixaste-me interessada e, ao mesmo tempo, curiosa: o nome do autor não me diz nada. Que sabes dele?

Unknown disse...

Sei muito pouco, Teresa. Sei que é de Vila do Conde, salvo erro é formado em Direito, tem muito pouca obra feita (é relativamente jovem) e este livro foi uma verdadeira pedra no charco da literatura portuguesa: escandalosamente interventivo, descarado, cruel.
Mas podes saber tudo sobre ele aqui:
http://www.valterhugomae.com/

Ana Isabel Pedroso disse...

Olá!
Posso dizer-vos que tive a oportunidade de fazer parte da 1ª Convenção Anual do Bookcrossing, realizado no passado mês de Maio em Ovar, onde um dos escritores convidados era o valter hugo mãe. Fiquei fascinada...um escritor que soube manter sempre o diálogo vivo e interessante com os bookcrossers.

Ele tem a particularidade de usar sempre as letras minúsculas, pois diz que todas as palavras têm a mesma dignidade.

Também tem alguns livros para os mais pequenos.

Boas Leituras!!!