Comentário:
Penso que só uma vez abri uma exceção neste blogue para publicar um comentário de um livro de não ficção; a distinta honra foi para o enorme Carl Sagan. Hoje abro a segunda exceção para publicar a minha opinião sobre esta excecional, enorme em todos os sentidos, biografia do imperador Marco Aurélio.
Um grande escritor, sinceramente não recordo quem, disse um dia qualquer coisa como isto: prefiro a ficção porque normalmente fala verdade. Pois bem, esta biografia não é ficção e fala verdade. Em grande parte porque o autor manifesta uma enorme habilidade literária, que lhe permite contar toda a história de Marco Aurélio mantendo na narrativa aquilo que a ficção tem de melhor: o despertar do interesse do litor; a emoção, a beleza de um enredo. Ou seja, estamos perante um livro de história que se lê como se de um romance se tratasse.
Em primeiro lugar, um dos maiores méritos desta obra: uma biografia nunca pode restringir-se à vida e obra do personagem histórico aboradado. Na melhor tradição da historiografia britânica atual, Mclynn enquadra a vida de Marco Aurélio no contexto histórico, destacando os fenómenos mais significativos da época, recorrendo aos quadros politico, económico, social, religioso, mental, etc. Daí emana uma verdadeira aguarela de onde vemos surgir realidades por vezes surpreendentes, chocantes mesmo para o leitor do século XXI.
O Império Romano constituiu uma das realidades mais fascinantes de todos os tempos; o poder dos imperadores, a ofuscante riqueza que transitava nas estradas romanas, o espetáculo impressionante do Circo e do Coliseu, a devassidão algo escandalosa que é atribuída àquele povo são apenas alguns dos pormenores desse encanto. Mas poucos saberão de outras realidades que este livro muito bem destaca e que nos mostram “outro” império romano. Por exemplo, um povo em que a esperança de vida não ultrapassava os 30 anos! Um povo onde as desigualdades sociais eram tais que era vulgar morrer de fome. Um povo onde as condições de saúde eram tão precárias que qualquer doença se tornava mortal.
No meio de tudo isto, emergiam os grandes personagens. Marco Aurélio foi um dos maiores. O imperador conquistador da Germânia e da Pártia (antiga Pérsia) foi também o imperador Filósofo. Escreveu uma das mais importantes obras literárias da Antiguidades (Meditações, uma obra em formato de aforismos) e foi um dos mais lídimos representantes da corrente estoica.
A adesão de algumas elites romanas e mesmo imperadores ao estoicismo não deixa de ser curiosa, tendo em conta o contraste daquela filosofia (que proclama a virtude do sofrimento) face ao reconhecido (e talvez exageradamente propalado) hedonismo romano. Mas talvez o estoicismo fosse o “contrapeso” para tal culto do prazer…
Marco Aurélio foi, acima de tudo, um político sóbrio, sério, honesto. Muito no inverso do que hoje se usa… Totalmente desprovido de senso de humor incapaz de rir, tinha no entanto um impressionante sentido de justiça que não o impediu, no entanto, de ser um dos maiores perseguidores dos cristãos.
No entanto, é necessário enquadrar devidamente esse fenómeno: as perseguições parecem refletir motivações políticas (o facto de os cristãos não aceitarem o culto do Imperador), religiosas (a negação do politeísmo),culturais (o desenquadramento do cristianismo face à realidade cultural romana, uma sociedade essencialmente urbana e comercial, face a uma religião que valorizava a pobreza) mas também cientificas, como muito bem destacava o famosos médico Galeno, que acusava os cristãos de acreditarem em princípios ingénuos, quase infantis, como a criação a partir do nada. A aceitação destes dogmas seria, segundo Galeno, um obstáculo ao conhecimento científico. O certo é que, para além destes motivos, as perseguições tendiam a aumentar à medida que crescia a insegurança e a crise no império.
Na verdade, Marco Aurélio governou numa época em que os sinais de decadência se tornavam cada vez mais óbvios (170-180 d.C.). As crises, quer económicas provocadas pelo fim das conquistas, quer demográficas provocadas por enormes mortandades, tendiam a indicar os cristãos como uma seita maléfica, culpada de todas as desgraças.
E não foram poucas essas desgraças no tempo de Marco Aurélio. Por exemplo, uma imensa crise demográfica terá sido causada por Pestes (designação de todas as doenças mortais mal identificadas) que hoje sabemos ter consistido numa imensa epidemia de malária e uma outra de varíola, a chamada Peste Antonina por ter surgido no tempo de Antonino Pio, antecessor de Marco Aurélio.
Todo o quadro económico-social do tempo de Marco Aurélio era também dramático: a agricultura estava totalmente dependente da escravatura, sabendo-se que tal realidade era impeditiva de um verdadeiro crescimento. Entre os romanos só algumas vozes mais ilustres, como Plínio o Velho, estavam conscientes desse terrível malefício da escravatura. Mesmo assim, os escravos esgotavam-se à medida que as conquistas diminuíam e os imperadores romanos iam, desesperadamente, tentando camuflar estas crises, tentando inventar estratégias que permitissem a Roma manter a todo o custo o seu espetacular estatuto de cidade imperial.
Em suma, estamos perante um livro que nos oferece um verdadeiro passeio pelas virtudes, riquezas, misérias e pecados desse universo fantástico que é a Roma Antiga. Fascinante.
Sinopse(in wook.pt):
Marco Aurélio, o último dos "cinco bons imperadores" de Roma, é a única grande figura da Antiguidade que ainda nos toca, quase dois mil anos após a sua morte. Podemos entusiasmar-nos com os feitos de Alexandre o Grande, de Aníbal ou de Júlio César, mas a única voz do mundo greco-romano que ainda parece assumir relevância na nossa contemporaneidade é a do homem que dirigiu o Império Romano entre 161 e 180 d. C.
1 comentário:
Gosto de livros sobre os imperadores de Roma, tenho lido sobretudo biografia ficcionadas: Memórias de Adriano; Eu, Cláudio, mas há mais que me interessam.
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