Comentário:
Tal como escrevi na altura, quando li as obras anteriores de Fernando Évora, fiquei com a impressão de “saber a pouco”. Naturalmente, gostei muito dos livros mas fiquei com a sensação que os respetivos enredos podiam ter sido mais desenvolvidos. Neste livro encontrei aquilo que procurava em Fernando Évora: um enredo mais intrincado, com personagens muito diversificadas e estórias de vida bem significativas.
Este enredo, centrado em duas famílias, deixa clara uma certa influência da literatura sul-americana, especialmente se associarmos esse facto ao tom de realismo mágico que se pode saborear ao longo de todo o livro. Na verdade é este um dos maiores méritos de Évora: o de criar situações bem-humoradas de personagens com comportamentos “estranhos” mas que não deixam de nos encantar pelo exotismo mas também por um estranho realismo fundado sobre a realidade das nossas populações rurais.
Na verdade, este livro é também uma preciosa e bem-disposta história da ruralidade portuguesa no século XX. Estão ali as pessoas ingénuas e de coração naturalmente bom, facilmente enganadas pelas “vespas”, pelos senhores de Lisboa, daqueles que trazem carros sofisticados e notícias negras. Um dia um dos personagens, Adriano, nome de um dos maiores imperadores romanos, apaixonou-se por apicultura e descobriu que o mel podia ser a fortuna da sua terra; que o mel poderia tirar todo aquele povo da miséria. Mas as vespas vieram dizer que havia a campanha do trigo. Era preciso destruir as colmeias e plantar trigo, mesmo que este nada desse naquelas terras. E Adriano haveria de morrer miserável, com uma vespa enfiada no nariz, numa das páginas mais belas deste livro.
Na parte final do livro, Évora deixa-nos um certo tom de pessimismo em relação ao presente e futuro da nossa ruralidade: o “Portugal profundo” está entregue aos interesses de alguns senhores do dinheiro que nada se preocuparão com as almas das gentes, com as vidas dos que fizeram este país, à custa de sangue, suor e muitas lágrimas.
Tal como nos seus livros anteriores, Évora revela um talento muito especial para analisar a alma humana, especialmente nos estratos sociais mais desprotegidos e vítimas dessa indescritível injustiça que marcou três quartos do século XX português. Estas são almas que sofrem, que são injustiçadas, mas não se pense que o autor rejeita o lado menos colorido deste povo; para lá de uma admiração nítida pela cultura popular em todas as suas vertentes, aqui estão também as superstições, as invejas, as maldades que não deixam de existir em qualquer comunidade humana.
Mais uma vez, o estilo de Fernando Évora é um dos fatores mais positivos da sua obra: um estilo límpido, poético sem perder uma tremenda objetividade, são elementos que convidam o leitor a sorrir quanto percorre as páginas do romance.
Sinopse (in www.wook.pt)
Cancino, vila perdida na serra algarvia, é o cenário deste livro. Porém, este não é um livro sobre uma vila perdida, é antes uma espécie de revisitação da História de Portugal mais recente, num olhar profundamente humanista, que navega entre a miséria e o humor, o destino e o sonho, e também o acaso. Personagens inesquecíveis de carne e osso, narradas com a ironia queirosiana e a originalidade que encantam, que inebriam, e que, no fundo, caracterizam Fernando Évora.
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