Imagine-se sentado num café noturno, em Amesterdão. Um conterrâneo
seu senta-se a seu lado e desata a falar. Fala, fala, fala… um longo monólogo.
É esta a técnica narrativa de Camus neste romance. Um advogado, auto intitulado
“juiz-penitente”, Jean-Baptiste Clamance é o único que fala. O outro, que nós
nunca conhecemos limita-se a ouvir e desempenha o mesmo papel que o leitor: um
ouvinte e nada mais.
Todo o discurso é tenso, por vezes divertido, outras vezes revoltado,
mas sempre sentido e refletido. É um livro difícil, confesso; nem sempre é
fácil ao leitor descobrir as ideias que Camus pretende transmitir. No entanto,
algumas dessas ideias são suficientemente claras para que as possa inserir
neste comentário:
Clamance é um hedonista; ele sobrevaloriza-se; considera-se
um exemplar quase perfeito da humanidade. Chega mesmo a irritar o leitor,
fazendo crer que toda a humanidade é má, é odiosa mas a sua pessoa é superior a
tudo isso. Prepotente, Clamance/ Camus transforma o seu discurso uma verdadeira
ofensa ao leitor que, como que manietado, se sente obrigado, apenas e só a
continuar a ouvir / ler as sentenças superiores de Clamance.
Mas a parte final do livro, após “A Queda”, marca uma
reviravolta que se torna algo dramática: é o reconhecimento do fracasso da
solidariedade. E isto dói porque nos revemos em Clamance, o homem que ouviu o
grito da mulher que caia mas nada fez porque fazia frio e chovia. Será esta a essência
da humanidade? É esta, pelo menos, a essência de Clamance, em contraste com o
homem brilhante com que se apresenta na primeira parte da obra.
Assim, as qualidades humanas enunciadas na primeira parte de
nada velam; todos os valores morais não parecem ser mais do que motivos de
vaidade. É a descrença total no ser humano…
9 comentários:
"todos os valores morais não parecem ser mais do que motivos de vaidade" - eu não iria tão longe como Camus, mas é verdade que a minha descrença no ser humano vai crescendo. Apenas acredito que ainda haja sinceridade e solidariedade desinteressada, mesmo que, a nível de humanidade, se trate de uma minoria ínfima.
Ando interessada no Camus, desde que publicaste a tua opinião sobre o "Estrangeiro". Temos "A Peste", cá em casa, e não demorarei muito a lê-lo.
Este livro é muito, muito bom! Aliás como todos os outros de Camus! :)
O autor é um profundo existencialista do absurdo. Não é por acaso que as suas influências foram Kafka e Dostoiévski...
Sim, Cristina, acho que tens mesmo de ler Camus. Penso que deves começar pelo Estrangeiro; se quiseres ler uma coisa mais reflexiva, mais filosófica, aconselho-te O Mito de Sisifo, é uma grande reflexão sobre o comportamento humano: de como levamos a vida toda a carregar a mesma pedra para o cimo da mesma montanha :) E, ainda por cima, convencidos que somos felizes ;)
tonsdeazul
eu acho que Camus (embora não pareça) é o Nietzsche francês do século XX. Mas de certeza que Camus também leu esses dois grandes senhores. Nota-se.
Nunca li nada de Nietzsche, Manuel.
Nem eu, tonsdeazul. Gramei-o no liceu :) Mas ler filósofos não é coisa muito agradável :)
Sempre bom ler Camus. E falar dele, ainda melhor! La Peste foi um de que mais gostei, mas todos têm tanto que nos dizer! Le mythe de Sisyphe, L'etranger, claro. Todos!
Abraço
Também gostei deste livro, mas acho O Estrangeiro um livro mais interessante.
E não este que no final, o interlocutor responde: "Sim...compreendo (ou algo do género) eu também sou advogado". Já não tenho esse livro, emprestei-o há muitos anos. Li-o em adolescente e entendi nesse final que o livro seria um monólogo, pois que afinal o interlocutor era ele mesmo. O que fazia sentido pelo narcisismo do narrador. Recordo que gostei muito deste livro que me deu o vício de Camus. Dos que li preferi "A Peste". Tecnicamente é uma descrição fabulosa.
É triste, mas eu quando empresto um livro sem conhecer muito bem a pessoa, já sei que tenho mais de 50% de hipóteses de nunca mais o ver. É triste que assim seja...
De facto, é neste livro, no ultimo parágrafo que o personagem afirma isso e acrescenta: "afinal somos da mesma raça"
O meu livro preferido de Camus é o estrangeiro. Também gostei da Peste. este, é um longo discurso, bem elaborado mas confesso que o monólogo cansa um bocadinho...
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