A Fenda é um livro profundo e complexo. Mais do que uma
narrativa, é uma reflexão sobre a importância das relações entre homens e
mulheres na origem e evolução da humanidade.
O enredo é narrado por um aristocrata romano do tempo de
Nero.
A visão feminista de Lessing, de uma forma muito
inteligente, começa por fazer uma ligação clara entre a mulher e a terra: a
Fenda é uma referência à anatomia feminina mas também a um acidente geográfico
do local onde vivia a comunidade: uma fenda sagrada, onde eram executados
sacrifícios sagrados.
Uma comunidade primitiva, estranhamente composta apenas por
mulheres dava à luz sem intervenção masculina. Todos os bebés assim gerados
eram do sexo feminino. Até que um dia acontece o impensável: nasce um rapaz. Ou
melhor, um Monstro, como lhe chamaram, devido a certas protuberâncias
anatómicas que exibia. Essa anatomia levou a que os Monstros fossem também
conhecidos pelos Esguichos. Estava quebrado o equilíbrio. Em breve se gerou uma
nova comunidade, só de Esguichos e começa a odisseia das relações entre os dois
grupos; uma relação que evoluirá entre o encantamento e a “guerra dos sexos”.
Esta visão mais ou menos histórica da origem da humanidade levar-nos-ia,
pela lógica das cronologias, ao Paleolítico; no entanto, todas as pistas que
Lessing nos deixa sobre essa cronologia, levam o leitor a situar o enredo nos
primórdios da civilização grega. De facto, muitas das realidades descritas têm
como referentes claros alguns aspetos da mitologia grega. Por exemplo:
- a época em que só as mulheres (Fendas) representavam a
espécie humana é vista como uma espécie de “Idade do Ouro” primordial.
- as águias são encarregadas de transportar os rapazes para
a comunidade masculina, logo que nasciam das Fendas. Este papel vai-se
tornando, ao longo do livro, o de justiceiras, apelando sem dúvida para a águia
do mito de Prometeu.
- A comunidade feminina faz lembrar o episódio da fuga para a
ilha de Lesbos por parte das mulheres de Atenas.
- Os sacrifícios rituais e a morte dos bebés rapazes praticada
pelas Fendas tradicionalistas faz referência à tradição de infanticídio nalgumas
comunidades gregas primitivas, sendo a de Esparta a mais conhecida.
Globalmente, parece nítida a visão feminista desta obra.
Pessoalmente, penso que Lessing vai muito além disso. O bucolismo e a ausência de
um conceito de moral à maneira romana ou judaico-cristã colocam esta comunidade
primitiva sob uma moral natural que contrasta claramente com o mundo vivenciado
pelo narrador, um Romano que, ainda assim, considera a sua sociedade como “devassa”.
Quer dizer, Lessing parece encarar a história da humanidade como um caminho
desde essa moral natural até às formas mais modernas de moralismo.
As “Velhas Elas”, conservadoras, têm nessa comunidade um
papel fundamental como elemento conservador da sociedade; no entanto o seu
poder é claramente posto em causa pelas mulheres jovens e as relações mais
abertas com a comunidade masculina acabam por triunfar.
Por outro lado, temos a importante questão do poder: depois
de se tornar real a união entre as comunidades de homens e mulheres, o primeiro
líder é um homem. E todos, incluindo as mulheres, aceitam o seu poder de uma
forma natural. No entanto, por mais poder que esse homem tenha, ele vive atormentado
por uma dúvida permanente: “o que vai ela pensar disto?”
5 comentários:
Olá Manuel!
Tiro-te o meu chapéu a esta portentosa opinião.
Tenho lá esse livro, algures numa pilha. A ler, sem dúvida!
Ora essa, Iceman...
É um livro a ler, sem dúvida... no entanto, algo pesado.
Olá Manuel,
Que bom ler uma análise a este livro assim... de quem percebe de história :P
Eu fiz a minha análise também, perto da tua está muito superficial :P amanhã publico. :D
Abraço
Tenho dois livros para ler dela, e nenhum deles é esse. Pareceu-me interessante, mas não sei se muito fácil de ler...
Obrigada pela sugestão!
Olá Manuel,
Há já algum tempo li "O sonho mais doce" e não gostei nada. Talvez não tenha sido a escolha certa, não sei. A partir daí não voltei à autora.
Talvez volte agora graças à sua excelente opiniãosobre este outro livro dela.
Quem sabe, sabe...
Bom fim-de-semana.
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