Sinopse:
A pergunta é formulada por Camões, quase no final da obra, e
o livro a que se refere não poderia ser outro se não "Os Lusíadas".
Que farei com este livro? Saramago decidiu fazer mais uma peça de teatro, uma
obra cuja ação decorre em Almeirim e Lisboa, entre Abril de 1570 e Março de
1572, ou "com menor rigor cronológico, mas com maior exatidão, entre a
chegada de Luís de Camões e Lisboa, vindo da índia e Moçambique, e a publicação
da primeira edição de 'Os Lusíadas'". Entre personagens históricas também
há lugar para os tais representantes do povo e para o escritor, todos a
acompanhar a edição de "Os Lusíadas". Ou de um outro livro qualquer.
"Se eu fosse esmolar pelas ruas e praças talvez me dessem dinheiro para
comer. Mas não mo dariam se seu dissesse que o destinava a pagar ao livreiro
que me imprimisse o livro." Foi Camões ou Saramago a dizê-lo? (Diário de
Notícias, 9 de Outubro de 1998)"
Comentário:
Peça de teatro publicada em 1980, dois anos antes da obra
prima Memorial do Convento, é um livro que define, já nessa fase inicial da sua
carreira, o estilo ácido, corrosivo, de José Saramago.
Não é exagero se afirmar que o livro se resume a uma sátira
aos vícios do reino, vícios de ontem e de hoje. Bem ao seu estilo, Saramago vai
buscar ao passado glorioso do tempo das descobertas, exemplos dos grandes
vícios, das grandes misérias mentais deste povo e destes políticos que nos
oprimem há centenas de anos. O enredo começa com um sugestivo e simbólico
diálogo entre dois irmãos; um, jesuíta, é o clérigo que manobra os cordelinhos
do reino através do confessionário. Trata-se de D. Luís da Câmara, confessor do
Rei D. Sebastião, o monarca para quem a governação era uma tarefa secundária. O
outro personagem é Martim da Câmara, secretário de Estado mas que deve o seu
cargo às influências do irmão mais velho, o jesuíta.
O âmago do livro, no entanto, reside na personalidade de
Luís de Camões. Homem pobre e honesto, a quem os favores do rei só seriam
concedidos se os poderosos do reino o protegessem. Ontem como hoje: não é o
mérito que permite o reconhecimento do génio mas sim a oportunidade. O orgulho
de Camões, que procura apenas justiça, simboliza a força da arte perante os
interesses materialistas e das vaidades humanas.
Personagem, sem dúvida em destaque é Damião de Góis, o célebre
humanista português, um homem sem dúvida adiantado em relação à época em que
viveu e que por isso mesmo haveria de ser vítima da Inquisição. A clarividência
de Damião de Góis e a sua genialidade estão bem patentes neste trecho: “Falta a
Portugal espírito livre, sobeja espírito derrubado. Falta a Portugal alegria,
sobejam lágrimas. Falta a Portugal tolerância, sobeja prepotência”. Fica clara
a grande atualidade deste espírito moderno que marcou a Renascença portuguesa.
No extremo oposto fica a mentalidade tradicionalista que
reinava na corte, bem patente na forma como a Inquisição acabou por permitir a
publicação d’Os Lusíadas, mas apenas “porque veio muito bem recomendada”. Ontem
como hoje. Pelo menos, naquele tempo, a Inquisição tinha rosto.
2 comentários:
O Saramago conhecia a problemática. Também ele (até ele) passou dificuldades.
(até Camões)...
Pois é, Cristina, são os males de sempre desta nação de doutores e engenheiros :)
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