quinta-feira, 26 de maio de 2016

Em Busca do Tempo Perdido vol. 2 - À sombra das raparigas em flor - Marcel Proust


Comentário:
Neste segundo volume, Proust dá-nos a conhecer a juventude do narrador, numa fase em que este tenta esquecer a sua primeira grande paixão, um amor de infância, Gilberta. No entanto, a sua atitude perante as raparigas com que se depara é sempre algo amorfa, de contemplação, atitude essa que aliada ao seu caráter reflexivo não lhe favorece as artes da sedução. Pelo contrário, o seu caráter tímido, moldado talvez por uma educação demasiado rígida em termos morais leva-o a encarar as raparigas como se fossem obras de arte e não como mulheres a cortejar. Quando, na última fase do livro, consegue finalmente com que Albertina o receba no grupo das raparigas, é ela que lhe dirige a palavra e será sempre ela a conduzir o jogo de sedução.
Também neste segundo livro o tema central é o jogo social; as relações entre burguesia e aristocracia, um jogo que marcou esta época de encruzilhada que é a transição para o século XX. Swan é praticamente proscrito da alta sociedade devido ao seu amor por Odette. O seu lugar é tomado, junto dos pais do jovem narrador, pelo poderoso mas pouco simpático Marquês de Narpoir, um diplomata famoso. A altivez de Narpoir chega a humilhar o narrador (note-se o simbolismo deste pormenor, que conduz a um certo esmagamento do autoconceito do autor), considerando-o incapaz de vir a ser escritor.
Figura central desta primeira parte do livro é Odette; ela desafia o moralismo de uma alta sociedade muito influenciada (também) pelo moralismo burguês herdado do século anterior, aliado a uma espécie de novo clima aristocrático fomentado por países de regimes tradicionais como a Alemanha e a Áustria, muito poderosos neste início de século. 
Swan, o herói do narrador no primeiro volume mostra-se inicialmente contrário ao amor do narrador por Gilberta, mas essa oposição vai desaparecendo à medida que emerge o mais inopinado obstáculo: ele próprio, o narrador. É incrível a capacidade que qualquer ser humano tem para “inventar” obstáculos e “tolher” o seu próprio comportamento. O retrato que Proust no dá de si próprio (não esquecer que o jovem narrador é um alter-ego do autor) é o de um jovem extremamente passivo, mergulhado na sua melancolia, mau grado a crença no seu amor por Gilberta.
Nesta primeira parte do livro o narrador está mergulhado no mundo da aristocracia parisiense, pelo qual parece sentir um misto de admiração deslumbrada e, no plano racional, um sentido crítico em relação aos costumes. Essa admiração passa em grande parte pela veneração que cada vez mais sente por Odette. No entanto, esta Odette é bem diferente da que encontramos no primeiro livro: aí ela é a mulher leviana que “vitimou” Swann, tornando-se este seu verdadeiro escravo. Agora, ela é a mulher autónoma e livre que desafia a própria sociedade nobre. Mas aquele sentimento contraditório que acima referi é muito bem espelhado na figura do tio Charlus, um personagem fortíssimo.
A arte continua a ser uma forma de expressão fascinante para o jovem narrador, nomeadamente a pintura e a arquitetura. O convívio com o pintor Elstir, na segunda metade do livro, vem reforçar esta paixão. A arte não é apenas uma expressão de beleza; é também uma forma de linguagem que desperta o sonho e a imaginação, acabando por se sobrepor a ela, da mesma forma que o pensamento se sobrepõe ao real e às coisas comuns do quotidiano.
No final do livro é com surpresa que encontramos um narrador desinibido, feliz entre as raparigas e apaixonado por Albertina. Mas a força da moralidade e do pudor eram de tal ordem naquele contexto social que mesmo tendo tido acesso ao quarto de hotel de Albertina, o jovem narrador nem um beijo no rosto conseguiu. Mesmo assim ficou extasiado com a sublime visão… do pescoço de Albertina!

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Em Busca do Tempo Perdido, vol. I - No caminho de Swann - Marcel Proust


Comentário:
Este é o primeiro dos sete livros que compõem Em Busca do Tempo Perdido, uma das obras mais marcantes de toda a história da literatura mundial.
Antes de mais quero desenganar os potenciais leitores dizendo que, de facto, é uma leitura exigente. Difícil, mesmo. Esta dificuldade tem também a ver com os frequentes saltos temporais que exigem uma atenção especial por parte de quem lê. Para compreender corretamente o que Proust diz e quer dizer é necessário ler, por vezes reler e refletir. A linguagem em estilo de prosa poética aprofunda essa dificuldade.
Mas são as montanhas mais altas que fornecem as mais belas paisagens; ler este livro é um desafio que compensa pela beleza do texto mas também pela própria narrativa. Mas essa poesia também potencia o prazer de ler. Mesmo que lendo por ler, sem preocupações com a narrativa.
Já neste primeiro volume é nítida a influência de Bergson, o criador do intuicionismo; na verdade há uma espécie de primazia do pensamento; o homem é aquilo que pensa. A própria vida social (principal tema deste volume) é determinada pela forma como o sujeito apreende a personalidade dos seus pares: “A nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio”, diz Proust.
Uma espécie de ponto comum com um dos seus maiores ídolos, Baudelaire, Proust dá ênfase especial à crítica da sociedade. O formalismo, a atitude algo hipócrita das personagens, o seu caráter frívolo, são alguns dos aspetos apontados à sociedade parisiense do início do século XX. A própria educação do jovem narrador (alter-ego do autor) é baseada nesse formalismo aristocrático, com uma acentuada severidade dos costumes. No entanto, essa educação não deixa de distinguir o essencial do fútil; há aqui como que uma contradição – cultiva-se a aparência mas há uma consciência da necessidade da busca do essencial. Dessa forma, o jovem vai mesmo mais além do que a educação lhe forneceu. Ele cultiva a reflexão baseando-se em grande parte na função pedagógica da arte e do romance.
O predomínio da mente está patente, por exemplo, na forma como a arte é encarada; uma catedral gótica, por exemplo, é descrita pelas sensações que causa na mente de quem a aprecia, mais do que pelas suas caraterísticas arquitetónicas. Mesmo nas descrições naturalistas – paisagens, a floresta, o rio – o acento tónico é colocado nas sensações e impressões que suscitam.
O título deste volume remete para uma personagem fortíssima no livro que é um cavalheiro aristocrata de nome Swann profundamente admirada pelo jovem narrador (nunca nomeado, ele é uma criança cuja caraterização pode ter sido baseada no próprio Proust). Swann vivia perto da família do jovem e um dos caminhos de acesso à propriedade dessa família passava pela casa de Swann, daí “O caminho de Swann”. Mas este título tem um duplo significado: o jovem admira Swann e tenta seguir o seu caminho.
Swann é um cavalheiro muito bem colocado na alta sociedade, privando mesmo com príncipes. No entanto, apaixona-se por uma mulher, Odette. E Proust utiliza essa relação para deixar clara a sua crítica ao amor romântico e ao casamento: Swnn perde a sua personalidade nesse amor; pior que isso, deixa de ser bem visto na sociedade porque a “fama” de Odette era má. Tudo isto talvez tenha algo a ver com a condição homossexual de Proust, que via a heterossexualidade de uma forma muito crítica. Mesmo o jovem narrador, admirador de Swann acaba por seguir as suas pisadas e deixar-se levar pelo amor, curiosamente pela filha de Swann. A condição feminina não é muito valorizada pelo autor; o jovem tem um amor sublime pela mãe, sonhando todos os dias com o momento em que ela o beijará à noite, mas, pelo contrário, Odette é vista como algo pérfida e a maioria das personagens femininas secundárias são pouco valorizadas, dando demasiada atenção às aparências. Proust deixa bem claro que a verdadeira beleza não está no feminino mas na arte e na natureza.
Em conclusão, estamos perante uma obra profundamente reflexiva, filosófica nos temas abordados e poética na linguagem. No entanto, a narrativa de romance dá-lhe alguma leveza e convida à leitura. Por outro lado há que ter em conta o marco imenso que a obra constitui na História. Mas os próximos livros certamente continuarão a testemunhar os motivos desta importância.
Magnífica tradução de Mário Quintana nesta velhinha edição da mítica coleção Dois Mundos.

Sinopse (in Folha de S. Paulo - http://biblioteca.folha.com.br):
"Cessara de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria?"
Com estas duas frases, o narrador de Em Busca do Tempo Perdido registra o momento de epifania que o fará reconstituir toda sua vida, desde a remota infância até a maturidade.
A cena é aquela em que a personagem mergulha um pedaço de bolo --a famosa madeleine-- numa xícara de chá e, a partir daí, se deixa transportar pela memória. Está no começo de No Caminho de Swann, volume inicial do mais importante ciclo romanesco do século 20.
Lançado por Marcel Proust em 1913, depois de ter sido recusado pelas principais editoras francesas, este livro se concentra no período de formação do protagonista: o amor intenso pela mãe e a pouca simpatia pelo pai; o ambiente familiar dominado por mulheres; os sentimentos precoces de ódio e de culpa; as temporadas na provinciana Combray, com suas histórias locais; os primeiros contatos com pessoas que iriam viver, envelhecer e desaparecer sob os olhos do narrador.
Entre as muitas figuras que povoam o mundo de Proust, neste volume se destacam o rico sr. Charles Swann e a jovem e sedutora Odette de Crécy (casal interpretado no cinema por Jeremy Irons e Ornella Muti, numa adaptação do diretor alemão Volker Schlöndorff). O capítulo "Um Amor de Swann" é quase um romance à parte: um magistral estudo sobre o ciúme, talvez o melhor que a literatura já produziu.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

A Mão e a Luva - Machado de Assis


Comentário:
Os “ismos” são sempre reducionistas e às vezes, como neste caso, são mentirosos. Machado de Assis é muitas vezes encaixado na escola romântica, numa primeira fase da carreira literária e, depois, numa fase mais “madura”, no realismo. Pois a mim, leitor pouco conhecedor de teorias literárias, parece-me que Machado de Assis nunca foi nem romântico nem realista. Machado de Assis é um daqueles génios que não encaixa em escolas; o seu estilo é, pura e simplesmente, Machado de Assis. E então o que tem ele de peculiar, especificamente nesta obra? Acima de tudo, interessa-lhe a vida interior das personagens; é por isso que os seus livros são considerados percursores do romance psicológico.
No caso deste livro, a crítica literária teima em encaixá-lo na escola romântica. Trata-se, de facto de um enredo que, vistas as coisas “ao longe” pode assim parecer; está lá o triângulo amoroso (ou o quadrado?), está lá o sentimento, a emoção em vez da razão. Mas não estão lá o final feliz ou o bucolismo, enfim, não é uma obra tipicamente romântica. Uma passagem que testemunha precisamente este afastamento em relação ao romantismo: “o homem, ser complexo, vive não só do que ama, mas também (força é dizê-lo) do que come”

Trata-se do segundo livro do autor, publicado em 1874 e que revela, por isso, uma certa ingenuidade, principalmente no que respeita ao enredo, com os inevitáveis “chavões” românticos. Mesmo assim, o futuro romance psicológico revela aqui já algumas raízes, ao nível da caraterização das personagens; Luís é a voz da razão, da sobriedade e de um certo calculismo, enquanto Estevão é emoção acima de tudo, é impulso, é a voz do coração. Jorge vem completar o quadro fornecendo uma personagem frívola, exterior, marcada pela etiqueta e pela aparência. Guiomar é muito mais que uma personagem de história romântica: é uma mulher culta, com uma personalidade fortíssima, bem longe da ingenuidade romântica das personagens de Júlio Dinis, por exemplo.
O estilo de Machado de Assis neste primeira fase da sua carreira é muito objetivo, límpido, assumindo uma espécie de diálogo com o leitor
Enfim, estamos perante um livro simples e agradável, de leitura rápida; um livro despretensioso mas onde estão já as marcas do génio do grande escritor brasileiro.

terça-feira, 10 de maio de 2016

O Museu da Inocência - Orhan Pamuk



Em termos formais estamos perante um romance perfeito; a estrutura da obra é muito bem conseguida, dividida em cerca de oitenta pequenos capítulos e com uma coesão interna em termos de enredo que fazem deste livro um romance agradável de ler, mau grado o seu grande tamanho.
O pano de fundo é fornecido pela Turquia do último quartel do século XX (a maior parte do enredo passa-se em 1975). Este país, encruzilhada entre a Europa e a Ásia vivia uma época de grandes conflitos internos. Para lá dos eternos e conhecidos conflitos religiosos, vivia-se uma fase de quase guerra civil, com confrontos frequentes entre extremistas de direita e de esquerda. Perante isto, o governo respondia com um autêntico estado de sítio, com recolher obrigatório e um poder discricionário por parte das autoridades. 
É sobre este pano de fundo que decorre uma história de amor marcada pelo insucesso. Kemal, o herói do livro, é o homem ofuscado pelo amor por Füsun, doze anos mais jovem e, pior que tudo, proveniente de um grupo social inferior. Estamos assim perante o tradicional confronto com a sociedade que nos seus extratos mais altos aceita mal esta união mas, muito mais que isso, estamos perante uma união frustrada pelo destino; esta frustração, aliada a um amor alienado, conduzem Kemal a esse projeto que ele vai pondo em prática de colecionar tudo o que direta ou indiretamente dizia respeito a Füsun, colecionando milhares de objetos que constituirão o seu Museu da Inocência.
Por trás deste enredo está uma magnífica reflexão sobre o destino humano que por vezes construímos sobre sonhos que se revelam quimeras.
Despersonalização e Intemporalidade são dois palavrões que podem servir de síntese à mensagem deste livro. Kemal submete-se a um sentimento que, paulatinamente, vai tomando posse de si, da totalidade do seu ser. Nada mais faz sentido fora daquilo que se relacione com Füsun. E Kemal escraviza-se ao sentimento. Despersonaliza-se.
Por outro lado, ao contar a história na fase final da sua vida, é nítido o imenso peso do passado na vida de Kemal; esse tempo passado é outra forma de escravatura: a tirania do tempo a contribuir para a anulação do Eu. E Kemal procura essa intemporalidade; procura como que uma eternização do passado, uma negação da mudança, uma paragem no tempo; uma intemporalidade. O recurso ao cinema é outra metáfora usada pelo autor para reforçar essa ideia de intemporalidade: os filmes são uma forma de manter o passado presente, da mesma forma que o museu; ao optar pelo colecionismo de tudo quanto se relacionasse com Füsun, Kemal não procura mais que essa intemporalidade, esse perpetuar da sua própria despersonalização. Na página 509 desta edição Presença, o autor usa uma expressão que de uma forma muito bela sintetiza o estado de espírito de Kemal: PRESO NUM SONHO.


Sinopse: (in wook.pt)
O Museu da Inocência é uma história de amor, passada em Istambul, entre a Primavera de 1975 e os últimos anos do século XX, e conta a história da paixão obsessiva do herdeiro de uma família rica, Kemal, por uma prima afastada, Füsun, de um meio social menos favorecido. Mas Kemal está noivo da filha de uma das famílias da elite istambulense. Entretanto, Kemal começa a coleccionar objectos pessoais e outros que lhe fazem lembrar a sua amada. Esses objectos são simultaneamente um fetiche e uma crónica da sua felicidade e das mágoas, um mapa de sinais de todos os sítios onde estiveram juntos. Com o tempo, a compulsão do coleccionador acabará por dar origem a verdadeiro museu, que também permite explorar uma Istambul meio ocidental e meio tradicional, a sua emergente modernidade e a sua vastíssima história e cultura.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Margarita e o Mestre - Mikhail Bulgakov


Comentário:
Empolgante e genial são os adjetivos que me ocorrem para caraterizar esta obra-prima de Bulgakov. Esta é a grande literatura russa, na senda dos grandes mestres do século XIX, Lev Tolstoi e Fiodor Dostoievski.
O enredo do livro passa-se nos anos vinte, já em plena ditadura de Estaline. Descreve-se a vinda de Satanás à terra, com um séquito muito peculiar. Nitidamente para nós, o diabo, Woland, é uma referência corajosa mas bem disfarçada a Estaline. Por esta razão o livro foi proibido e só viria a ser publicado, ainda assim numa versão mutilada, nos anos sessenta. 
Como se vê, todo o livro é uma autêntica metáfora da situação que se vivia na União Soviética. Muitas vezes, os membros do séquito assumem um papel mais ativo que Woland, como acontece com qualquer regime ditatorial, em que o ditador se protege por trás de meia dúzia de “testas de ferro”. De resto, todos os componentes do regime de Estaline estão representados no livro: o hospital psiquiátrico para onde são enviados as vítimas de Woland é a metáfora dos locais para onde eram enviados os perseguidos do regime, tanto campos de trabalho como instituições psiquiátricas; os opositores ao regime são perseguidos da mesma forma que no livro são severamente castigados os que se opõem a Woland. 
Um dos aspetos fundamentais do livro é aquilo que se passa com o Mestre e com a sua amante, Margarita. Estes personagens, embora constituam o título da obra, só aparecem a partir do meio do livro, sensivelmente. O que os carateriza é o pacto com o Diabo; só assim o Mestre consegue publicar a sua obra e o seu amor por Margarita é permitido; é evidente a representação, aqui, dos artistas, escritores ou outras personalidades que só conseguiram “sobreviver” pactuando com Estaline e o seu regime.
Mas o livro vai mais longe do que uma metáfora do regime estalinista; é uma intensa reflexão sobre a luta entre o Bem e o Mal. Até que ponto o ser humano consegue ser feliz vivendo honestamente e procurando a virtude? Até que ponto vale a pena lutar contra demónios se a felicidade pode passar com uma simples convivência com o mal, aceitando-o como uma realidade incontornável? Para Bulgakov talvez estas questões se resumissem ao dilema que certamente sentiu sempre presente ao longo da sua vida: até que ponto vale a pena ser resistente e lutar por um ideal?
Por outro lado, até que ponto o mundo real não é uma construção onírica? Até que ponto a realidade concreta existe tal como nós a vemos, não sendo profundamente deturpada pela nossa mente, pelo menos em situações-limite?
Em termos de estilo, a escrita de Bulgakov é profundamente realista, o que torna a leitura bastante fluida e agradável; o enredo é por vezes empolgante, com aquele suspense que nos faz devorar as páginas do livro. A linguagem cuidada e precisa é acompanhada por um sentido de humor notável, muitas vezes verdadeiro humor negro, reforçando o prazer de ler. 
Sem dúvida, estamos perante um clássico da grande literatura russa, que merece ser lido por todos quantos apreciam a melhor literatura.

Sinopse (in wook.pt)
Margarita e o Mestre publicado pela primeira vez na revista Moskva, mais de vinte anos após a morte do autor — a primeira parte em Novembro de 1966 e a segunda em Janeiro do ano seguinte. Mikhail Bulgákov trabalhara nesta sua obra durante mais de dez anos, tendo escrito diferentes versões. A última foi ditada à sua companheira Elena Bulgákova, quando o autor se encontrava já muito doente, em Março de 1940. O romance é composto por duas narrativas ligadas entre si — uma passa-se na Moscovo dos anos 30 e a outra na Jerusalém antiga. As personagens são estranhas, complexas, ambíguas e algumas delas sobrenaturais, como Woland. As principais são o Mestre e a sua amante, Margarita. Como afirma Samuel Thomas, «o romance pulsa de maliciosa energia e invenção. Por vezes uma dura sátira da vida soviética, uma alegoria religiosa da dimensão do Fausto, de Goethe, e uma indomável fantasia burlesca, é uma obra de riso e terror, de liberdade e servidão — um romance que explode as verdades oficiais com a força de um carnaval descontrolado». A primeira edição desta tradução foi publicada em 1991, estando há muito esgotada. Esta nova edição, integralmente revista pelo tradutor, António Pescada, inclui as alterações que constam nas recentemente publicadas Obras Completas de Mikhail Bulgákov.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

A Ilha das Vozes - Robert Louis Stevenson



Comentário:
Robert Louis Stevenson foi, antes de ser escritor, um grande aventureiro. Viveu muitos anos nas ilhas do Pacífico, ao que consta por motivos de saúde. O certo é que na escrita de Stevenson se nota um verdadeiro encantamento pelas ilhas e pelos seus mistérios. O seu livro maior, que qualquer amante dos livros conhece, é A Ilha do Tesouro, que fez dele um dos escritores mais famosos de sempre ao nível da literatura de aventuras e mistério.
Stevenson viveu no século XIX, tendo falecido em 1894, pelo que se pode incluir entre os grandes pioneiros da grande literatura europeia de ficção. 
Esta velhinha edição Cotovia (1988) inclui três contos, tendo como denominador comum um enredo que se desenvolve em ilhas fantásticas. O primeiro conto dá título à obra, A Ilha das Vozes, o segundo, que é o mais longo, intitula-se A Praia de Falesá e o último dá pelo título de O Diabrete da Garrafa. O primeiro conto é sem dúvida o mais estruturado, mais bem conseguido pela imaginação, pela criatividade e pelo inesperado das situações. Digamos que este conto está a meio caminho entre a literatura de aventuras e a ficção de terror. Situações tenebrosas, episódios destinados a assustar os leitores mais incautos mas, acima de tudo, a mais pura prosa de aventuras. 
O segundo conto é um longo exercício de criatividade cheio de aventura e suspense. O que mais nos surpreende neste conto é a criatividade imensa do autor; ficamos a perguntar a nós próprios onde é que Stevenson foi buscar tantas e tão estranhas ideias.
O terceiro conto é dos mais divertidos que li até hoje. Trata-se da estória incrível de uma garrafa com um génio dentro, um diabrete, que podia fazer a fortuna e a felicidade de quem possuísse a dita garrafa mas, ao mesmo tempo, obrigava o proprietário a vendê-la; se não encontrasse comprador as consequências podiam ser terríveis; como se imagina isto levava a situações verdadeiramente rocambolescas.
Em suma, ler Stevenson é uma verdadeira diversão, capaz de nos levar de volta à juventude.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

O Gato Preto - Edgar Allan Poe


Comentário:
Este é um dos contos mais famosos de Poe e, por conseguinte, um dos contos mais importantes da história da literatura de ficção. É preciso notar que Poe viveu na primeira metade do século XIX. Foi um pioneiro em vários aspetos. Morreu com menos de 40 anos, vítima de alcoolismo crónico, e por isso a sua obra podia ter sido ainda mais marcante. Tudo na obra de Poe é criação pura. Foi ele quem, criou o género de terror e obras que estão na base da atualmente tão apreciada literatura de fantasia. Trata-se portanto de um escritor a quem a literatura muito deve e não podemos nunca deixar de lembrar esse seu papel pioneiro.
Este O Gato Preto é, desde logo, uma evocação da tão injusta fama que o animal dessa cor tem na mentalidade europeia. Neste conto reflete-se todo o caráter que hoje se diria gótico da sua obra. Com muita emoção, muita incerteza em relação ao final, este conto exige ser lido de um fôlego; o suspense não nos deixa abandonar o livro sem chegar ao final. O enredo é um marco profundo no estilo romântico de que Poe é um dos criadores; tudo é enigmático, fantasioso, tenebroso mesmo.
Em parte, este conto revela alguns traços autobiográficos: o protagonista é claramente marcado pelo alcoolismo, que lhe provoca atitudes absolutamente revoltantes, horrendas de violência. Na verdade, o próprio Poe era vítima desse terrível vício, o que lhe provocava crises de autocomiseração e de arrependimento que transformaram a sua vida num autêntico conto de terror.

Em suma, este como qualquer conto de Poe é de leitura obrigatória para quem queira ter uma visão clara da história da literatura de ficção. Mas é também um magnífico passatempo pela forma como “agarra” o leitor da primeira à última página.

Animação com resenha do conto, aqui.

domingo, 24 de abril de 2016

As Regras da Casa da Sidra - John Irving


Comentário:
Um orfanato e uma fábrica de sidra, numa grande plantação de macieiras, no Maine. Estes são os cenários do livro, os cenários onde viveu Homer Wells, o herói do enredo. No orfanato primeiro e depois na fábrica de sidra, Homer nunca deixou de ser herói (Homer=Homero, o autor da Odisseia e da Ilíada, poemas épicos). 
Homer foi sempre um resistente; um herói na arte de saber viver com os problemas; de saber esperar, como ele tantas vezes dizia. No orfanato, o seu mentor, o formidável personagem Wilbur Larch ensinara-o a fazer partos e abortos; em causa estava a liberdade e o direito à vida. O aborto é aqui encarado como um mal necessário para que muitas mulheres pudessem ter uma vida digna.
No orfanato como na casa da sidra é notável a bondade da generalidade das personagens, a fazer lembrar Charles Dickens, tantas vezes referido neste livro. Irving traduz assim uma notável crença na bondade natural do ser humano, mau grado toda a maldade que conduz as mulheres à desgraça de ter filhos indesejados e de procurar abortos praticados por autênticos carniceiros; é por isso que Larch defende o aborto, praticado em condições dignas, como ele o faz. 
O aspeto mais curioso do livro é o facto de no mesmo local se praticar o aborto e o parto que dá origem aos miúdos do orfanato; tudo é serviço de Deus, afirmou sempre o Dr. Larch. O orfanato é um mundo nostálgico, onde reina a solidão. A mesma solidão de que sofrem as mulheres que lá abortam. O orfanato está inserido num meio natural, junto da floresta. Nota-se um certo paralelismo entre o mundo natural e uma espécie de “sociedade natural” que se vive no orfanato, onde não há hierarquias.
E toda a problemática do aborto ou dos partos “clandestinos” deriva de regras a cumprir ou a quebrar; no amago do livro está essa realidade – todo o destino é determinado por regras e toda a vida é uma luta constante entre liberdade e cumprimento de regras. Cometer um aborto pode ser crime; e furar um preservativo, como faz um personagem do livro não é crime porquê? As regras e respetivas punições colidem sempre com a procura da liberdade que as personagens encetam. No entanto, liberdade acaba sempre por ser palavra vã: todos são escravos de algo ou de alguém e têm de seguir as respetivas regras. Se as quebrarem terão sempre de se redimir pagando o respetivo “preço”. A regra mais importante é “que não se magoem uns aos outros”. Assim devia ser na sociedade humana.
Enfim, estamos perante um livro cheio de conteúdo, com ideias muito bem ilustradas pela ficção e com um estilo que agrada ao leitor pela fluência, pela objetividade e por um ritmo narrativo notável; a estória principal é muitas vezes acompanhada por pequenos episódios muito bem construídos e inseridos na estória global, o que dá origem a uma narrativa fluente e cheia de interesse. 


Sinopse:
A odisseia de Homer Wells começa no meio dos pomares de macieiras do Maine rural. Sendo a mais velha das crianças do orfanato de St Cloud’s que não chegaram a ser adotadas, Homer estabelece uma amizade profunda e invulgar com Wilbur Larch, o fundador do orfanato - um homem de rara compaixão viciado em éter. O que Homer aprende com Wilbur leva-o desde a sua primeira aprendizagem de cirurgia no orfanato até uma vida adulta à frente de uma fábrica de sidra e a uma estranha relação com a mulher do seu melhor amigo.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Lionel Asbo - Martin Amis


Comentário:
A leitura deste livro inicia-se de rompante, a uma velocidade narrativa avassaladora. É uma entrada de choque, cheia de humor e vertiginosa na forma como nos faz devorar páginas. 
Esta narrativa assume especial importância na forma como retrata a sociedade inglesa atual num subúrbio de Londres. Lionel é um pequeno delinquente que se orgulha de ter começado na senda do crime aos dois anos de idade. Ele tem um coração de pedra, é profundamente sádico e cultiva um gosto especial pela violência, muitas vezes gratuita; é totalmente imbecil no que toca às faculdades intelectuais, em contraste com o seu sobrinho Des, um negro que representa aqui o futuro que a Inglaterra ainda pode ter, em contraste com o desastre que Lionel representa.
A partir de certa altura, o enredo tem uma viragem radical: Lionel, o detestável arruaceiro ganha a lotaria e torna-se multimilionário. Agora, ele convive com a alta sociedade; mas aqui o autor surpreende-nos com a caracterização dessa elite que Lionel encontra no hotel onde se aloja; eles, os ricos cultivam e a ignorância e idolatram a violência da mesma forma que a ralé a que Lionel pertenciam entes; pobres ou ricos, os ingleses são ignorantes e brutos; parece ser esta a mensagem do autor. Sem dúvida uma crítica social mordaz e impiedosa.
A partir desta viragem no enredo, no entanto, o livro segue um rumo diferente, o ritmo narrativo abranda imenso e a prosa torna-se mais reflexiva e mais séria. A meu ver, isto faz com que a obra perca interesse e qualidade literária; perde-se a emoção e a vertigem narrativa da primeira parte; perde-se, em parte o humor satírico da primeira fase do livro, que se torna sério e às vezes mesmo maçador.
Fica, no entanto, a evidente qualidade da escrita do autor: clara, incisiva, rica em termos de vocabulário e, a sua principal qualidade, bem-humorada. A crítica é incisiva e mordaz; na narrativa “vemos” uma Inglaterra decadente e um povo inglês passivo perante os graves problemas sociais como a exclusão e a forte diferenciação social, a falta de cultura, o culto da violência e da pornografia – Martin Amis afirma que Lionel não consegue viver sem cadeia nem pornografia; a cadeia é vista como a sua segunda casa, de onde sai e volta a entrar com frequência; a pornografia é, para Lionel, a substituta das relações humanas, o que diz muito sobre a forma como Amis aborda este fenómeno social da autoexclusão e consequente refúgio em comportamentos marginais.
Em suma, um livro com muito interesse, bem escrito, que merece uma leitura atenta. E divertida.

Sinopse in wook.pt
Durante o expediente matinal na prisão, Lionel Asbo, um delinquente de médio porte de Diston - zona fictiva de Londres - recebe a notícia de que ganhou 139 milhões de libras na lotaria.
Último rebento de Grace, cuja prole aos 19 anos ascendia aos sete, Lionel partilha a casa com o sobrinho órfão adolescente, Desmond Pepperdine, e com dois pitt-bull, Joe e Jeff, que alimenta com uma dieta de tabasco e maus-tratos.
Uma vez posto em liberdade, a fabulosa riqueza catapulta-o naturalmente para uma vida de excessos e gastos estratosféricos que, em substância, não difere muito do quotidiano de sarilhos e arruaças da anterior e, por isso, para as primeiras páginas dos tabloides: «O Tio Li - ele desapareceu e foi para a primeira página!». Lionel continua a preferir a pornografia à companhia de uma mulher (a pornografia que, com a prisão, constitui um dos dois pilares fundamentais da vida); persiste na educação férrea dos cães (outrora uma importante ferramenta do negócio); e em não prestar qualquer tipo de auxílio financeiro a qualquer membro da família.
Enquanto Lionel desbarata a fortuna, a um débito alucinante, e espreme todos os proveitos que pensa poder retirar da fama - Des, o sobrinho, está nos nos antípodas: é um rapaz inteligente e sensato, que procura no estudo e no trabalho, e numa relação estável, um sentido para a vida.
Um romance cómico, visceral, hiperbólico - uma sátira da Inglaterra contemporânea e da obsessão contemporânea pelo dinheiro e pela celebridade.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Os Piores Contos dos Irmãos Grim - Luis Sepúlveda, Mario Delgado Aparaín

Comentário:
Raramente arrisco o meu tempo num livro desconhecido e sem referências. Normalmente, um critério que uso é o de optar por escritores reconhecidos pela sua qualidade. Pois desta vez enganei-me. Este livro é um fiasco. Quando vi o nome de Luís Sepúlveda não hesitei em comprar o livro, até porque estava em promoção e a contracapa prometia que a obra seria extremamente divertida. Por outro lado já li muitos livros de Sepúlveda e nunca me desiludiram. Este desiludiu mesmo.
A ideia original até é interessante: reinventar os irmãos Grimm, transportando-os para o início do século XX e colocando-os na pele de Caim e Abel Grim, payadores de profissão. Os “payadores” (pessoas que pagavam com cantigas a comida e o alojamento) são uma espécie de trovadores que se deslocam de região em região cantando e tocando numa atividade que se pode comparar aos nossos “cantares ao desafio”. Portanto, os verdadeiros irmãos Grimm (com duplo ‘m’) nada têm a ver com isto.
O livro está escrito em formato de cartas entre dois estudiosos que, no final do século XX vasculham a vida e aventuras dos irmãos Grim. Os estudiosos, a fazer lembrar quaisquer académicos em final de carreira e de juízo deformado dão pelos nomes de Orson C. Castellanos e Segismundo Ramiro von Klatsch, Professores.
A correspondência trocada versa sobre as descobertas que cada um vai fazendo sobre as aventuras dos desventurados irmãos Grim bem como de outros assuntos laterais. A brincadeira pretende fazer rir o leitor. Mais nada. E isso é naturalmente pouco para um bom livro; o humor é muitas vezes fácil e artificial, sem contexto, recorrendo muitas vezes ao palavrão ou então ao trocadilho fácil. O grande problema deste livro é não ter enredo; chegamos ao final do livro sabendo muito pouco dos trovadores, a não ser as suas desastradas atuações e a forma exagerada como eram maltratados pelos ouvintes. Pode haver até alguma qualidade na ironia com que se critica o regime de Bush, com alusões muito sérias aos problemas ambientais ou com “farpas” políticas bem dirigidas mas tudo isso se perde numa leitura monótona e maçadora.
Em suma, um ato falhado do grande Luís Sepúlveda que nem por isso deixa de ser grande. Um dos maiores. Mas o livro, esse, é de fugir.

Sinopse:
Um livro inclassificável, uma brincadeira delirante, um atentado à seriedade dos leitores. Trata-se de uma obra séria, tão séria que, assim esperam os seus autores, só pode levar o infeliz leitor a desfazer-se às gargalhadas.
Os Irmãos Grim - gémeos, na realidade - terão sido dois tipos que passaram pelo Chile e pelo Urugai sem que deles restasse mais do que retalhos aleatórios das suas vidas e obras, num todo confuso e até boateiro, que os reduziu aos seus piores contos. Por sorte, para os amantes das sagas "gauchescas" e da poesia a cavalo, Luis Sepúlveda e Mario Delgado Aparaín conseguiram- com a inestimável colaboração dos Professores Orson C. Castellanos , Segismundo Ramiro von Klatsch e José Sarajevo - assinar a tempo esta crónica temporal que retrata as misteriosas origens e a efémera passagem pelas terras do Sul do mundo dos gémeos Grim, trovadores crioulos, músicos iconoclastas, poetas autodidactas e cantores de uma realidade que, devido à escassa transcendência do seu legado, continua hoje a ser um mistério que subjuga os viajantes.
Trata-se, pois, de uma obra séria - tão séria que, assim esperam os seus autores, só pode levar o infeliz leitor a desfazer-se às gargalhadas.

domingo, 10 de abril de 2016

O Músico Cego - Vladimir Korolenko

Comentário:
Korolenko talvez seja, depois de Gogol, o nome maior da literatura ucraniana do século XIX, embora na época a sua nacionalidade fosse russa já que a Ucrânia pertencia ao Império Russo. Mas é na literatura russa que Korolenko vai buscar as suas influências. *a data da publicação de O Músico Cego (1886) já Dostoievski havia publicado todos os seus livros, pelo que é natural alguma influência por parte do grande mestre russo. Na verdade, este livro faz lembrar a escrita de Fiodor na profundidade da análise psicológica e mental dos personagens, principalmente de Piotr, o músico. Por outro lado é incrível como Korolenko revela uma sensibilidade profunda para compreender a mentalidade do cego. As suas sensações, a sua relação com a natureza, o uso delicado dos sentidos dão-nos conta da beleza com que o autor dá conta da forma como Piotr interage com o meio que o rodeia.
Ao nível do estilo, este Músico Cego oferece-nos uma deliciosa mistura entre o romantismo e o realismo; com descrições cuidadas e uma ênfase especial nos grupos sociais a que pertencem os diferentes personagens, ele é sem dúvida realista, mas nos seus devaneios bucólicos, na forma como a natureza quase faz espalhar o seu perfume pelas páginas do livro, ele é romântico. Seja como for, os grandes mestres não têm de se encaixar em estilo nenhum e Korolenko foi sempre um escritor autónomo, pouco dado a “carimbos” como o mostra a sua relação com o poder: de início simpatizante das ideias revolucionárias, não se deixou encaminhar por elas quando viu que a sua aplicação prática, na revolução de 1917, não teve o resultado que desejava.
Em suma, trata-se de um livro com um enredo muito cativante, em que a saga do jovem cego nos é contada com acentuada sensibilidade humana e escrito numa linguagem clara, realista, mas muitas vezes poética. Um livro belo e singelo, sem dúvida que se recomenda a quem se quer iniciar na grande literatura russa. Excelente tradução nesta edição  Estrofes & Versos.

Sinopse:
A parteira não ouvia no grito do bebé nada de especial e, vendo que a jovem mãe falava como que em sonho, pelos vistos a delirar, afastou-se dela e pôs-se a tratar da criança. A jovem mãe calou-se, e apenas de vez em quando um penoso sofrimento, incapaz de prorromper em forma de movimento ou palavra, espremia dos seus olhos as lágrimas em bágoas. Corriam silenciosamente através das espessas pestanas pelas faces brancas como mármore. Talvez o coração da mãe sentisse que, juntamente com o recém-nascido, viera ao mundo uma desgraça negra e desesperada que pendia por cima do berço para acompanhar a nova vida até ao túmulo. De resto, talvez fosse mesmo delírio. Fosse como fosse, a criança nasceu cega.

segunda-feira, 28 de março de 2016

Menina Else - Arthur Schnitzler


Nenhum livro pode ser devidamente analisado sem ter em conta o contexto em que ele é escrito. Em grande parte, o enredo deste livro e a forma como o autor o aborda deriva da época em que foi escrito. Publicado em 1924, Menina Else é fruto de duas grandes realidades históricas: o triunfo da psicanálise e a afirmação do papel da mulher na sociedade, se bem que de uma forma mais aparente do que real.
Menina Else é um dos primeiros livros escritos em formato de monólogo interior; Else fala com ela própria; auto-analisa-se, pensa em voz alta e exerce uma crítica constante aos seus próprios comportamentos e mesmo pensamentos. É este o mundo de Freud (amigo pessoal admirador de Schnitzer) e da psicanálise: o pôr em causa do individuo enquanto ser pensante, o triunfo do mundo das emoções, das paixões, das pulsões como determinantes do comportamento. Ao assumir sobre os seus ombros a responsabilidade de pagar a dívida da família, Else cai num mundo interior de luta constante entre o ser e o dever; entre a sua própria vida, o seu próprio mundo e a responsabilidade de assumir um encargo familiar; este processo de interiorização conduz a um sentimento de culpa que levará Else à desgraça.
Por detrás de tudo isto há uma enorme contradição histórica: o movimento feminista que parece triunfar e uma sociedade e uma mentalidade burguesas, com o seu código ético rígido que contraria o movimento histórico de libertação da mulher. Como sempre, a moralidade burguesa acaba por triunfar.

Sinopse:
Menina Else, de Arthur Schnitzler, é das primeiras obras literárias a expor um drama psicológico na primeira pessoa. Emblemático autor da Viena fin-de-siècle e importantíssimo escritor de língua alemã, Arthur Schnitzler (1862-1931) conviveu com figuras notáveis da cultura europeia, como Freud, Klimt, ou Schoenberg. Freud, que o considerava uma espécie de seu duplo na área da literatura.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Diário de Inverno - Paul Auster



Comentário:
Escrito na segunda pessoa, este livro, profundamente autobiográfico, é uma espécie de confissão do autor; mais do que um autorretrato, é uma confissão em profundidade, um relatório pessoal da alma do artista.
Em quase todos os livros que já li de Auster há um tom melancólico, qualquer coisa de cinzento, que parece provir da alma do autor. Auster é uma pessoa solidária, altruísta, desprendida e talvez essa preocupação com os outros e com o mundo o torne pessimista ou, pelo menos, algo desinteressado de si mesmo. Daí ao tom depressivo de muitas das páginas deste livro vai um pequeno passo.
É difícil entender como este Auster pode ser aquele que vende milhões de livros, aquele que já faturou uma imensa fortuna; é difícil entender como um homem com tão grande sucesso na carreira e na vida pode ser uma pessoa tão melancólica, triste mesmo. Neste livro, deparamos com um Auster profundamente desiludido com muitos dos aspetos da vida, confrontado com a velhice que se aproxima, mas acima de tudo olhando para o passado de uma forma triste. Aquilo que ocupa mais espaço neste livro não são as belas memórias dos namoricos, os momentos felizes da infância ou, muito menos, os grandes sucessos literários e as enormes alegrias que os seus melhores livros lhe valeram; a este último aspeto, Auster nem sequer uma palavra lhes dedica; prevalecem sempre as memórias mais tristes: um acidente de automóvel em que ele poderia ter sido responsável pela morte da família, a morte dos pais, os desentendimentos com as famílias, as ruturas nas relações e os incríveis ataques de pânico de que é vítima, são estes os temas mais recorrentes desta espécie de autobiografia. 
Talvez a herança judaica contribua para esta melancolia; na verdade poucos são os escritores judeus que não demonstram trazer em si a herança de séculos de perseguições e intolerância; também aqui se vê, na alma de Auster, as marcas dessa intolerância e a incontornável memória do holocausto.
Na verdade, é necessário que o leitor se afaste um pouco, em termos emocionais, para não se deixar influenciar pelo tom triste, quase deprimido, desta obra. 
Mesmo assim, é possível analisar o livro numa outra perspetiva, mais positiva: em termos de estilo, Auster é talvez o escritor atual com uma escrita mais “visual”; sem qualquer exagero na adjetivação, com frases curtas e uma prosa sem rodeios ou floreados, Auster expressa-se de forma direta, crua e nua. As suas descrições são precisas e concisas. Em termos de enredo, Auster faz de cada episódio da sua vida a página ou capítulo de um folhetim que desvendamos com interesse e que nos levam a ler o livro como se de um romance se tratasse, numa leitura sempre fluida e interessante. Ao longo do livro damos connosco a “torcer“ por Auster e um pouco tristes pela forma como o autor sofre com os males do mundo; é o preço de ser pensante, de refletir e de lutar constantemente por um mundo melhor; Auster é um homem comprometido; um homem de causas, pelo que lhe é impossível encarar o sucesso ou a riqueza como motivos de felicidade. Tal como já escrevi várias vezes, mais do que um grande escritor (para mim um dos 3 melhores do mundo atualmente, com Roth e Murakami) Auster é um Homem muito grande; um excelente ser humano. E todos sabem que um excelente ser humano dificilmente pode ser feliz…

Sinopse: (in wook.pt)

Pensas que nunca te vai acontecer, que não te pode acontecer, que és a única pessoa no mundo a quem essas coisas nunca irão acontecer, e depois, uma a uma, todas elas começam a acontecer-te, como acontecem a toda a gente.

Paul Auster, incansável criador de ficções e de personagens inesquecíveis, vira agora o olhar para si próprio e para o sentido da sua vida. As descobertas da infância e as experiências da adolescência, o compromisso com a escrita - que marcou a sua entrada para a idade adulta -, as viagens, o casamento, a paternidade, a morte dos pais... Uma vida que transborda das páginas deste Diário de Inverno, um definitivo autorretrato construído com a paixão e a transbordante criatividade literária que são as marcas distintivas da identidade deste escritor amado pelos leitores e admirado pela crítica.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Cândido - Voltaire


Comentário:
Escrito no início da segunda metade do século XVIII, este livro tem um enorme valor histórico e filosófico. Pelo contrário, em termos literários não podemos dizer que estejamos perante uma grande obra-prima. Na verdade, o enredo está construído de uma forma algo precipitada, com uma ação tão veloz que muitas vezes o leitor não consegue compreender ou sequer identificar as sucessivas mudanças de cenário. Tudo se passa como se Voltaire escrevesse de forma ansiosa, pretendendo transmitir o mais depressa possível as suas mensagens, deixando para segundo plano uma estória que até é interessante e engraçada.
O verdadeiro significado desta obra está na afirmação do Iluminismo, corrente filosófica que viria a estar na base da Revolução Francesa, à qual forneceu as suas bases teóricas e doutrinárias. Voltaire, juntamente com Rousseau, Diderot, Montesquieu, etc. foi um dos mais importantes teóricos do iluminismo e utiliza esta obra como forma de expressar as suas principais ideias filosóficas: acima de tudo, a defesa inequívoca da liberdade religiosa, inclusivamente do direito ao ateísmo; a defesa da liberdade de comércio e da iniciativa individual; a crítica ao absolutismo e a todas as formas de concentração do poder político e, não menos importante, o combate pela igualdade social, lutando contra os privilégios das classes dominantes (nobreza e clero).
Assim, é em função destes valores que Voltaire constrói o enredo do seu Cândido. Antes de mais, o próprio nome indicia o espírito do herói do livro: ingénuo. Cândido acredita ingenuamente no seu amado mestre, um filósofo de nome Pangloss que defende o otimismo como sistema filosófico, uma visão positiva e benévola do mundo e dos outros. Obviamente, Voltaire ridiculariza o mais possível esta opinião, pois não partilhava minimamente esse otimismo; para ele, a Europa e o mundo são palco das maiores injustiças e violências, que ele descreve com crueza mesclada com ironia e sarcasmo; são as guerras que matam de forma cruel milhares e milhares de seres humanos, são os roubos e outros crimes com que os homens se destroem uns aos outros, são os réus corruptos e insensíveis às necessidades dos seus súbditos e, não menos importante, é um clero corrupto, pecador, sem fé e profundamente mergulhado nos mais interesseiros negócios terrenos. É este o quadro que Voltaire descreve: um quando de injustiça, violência, prepotência, miséria, etc. 
Assim se compreende a necessidade que Voltaire sente de uma revolução radical; e assim se justificará a violência e o radicalismo que alguns anos depois estarão presentes na Revolução Francesa, iniciada em 1789.
Quanto ao estilo, como se disse, a ação é veloz e algo precipitada mas o interesse maior da leitura está no humor sarcástico e irónico que Voltaire usa; tudo é alvo de troça e crítica, recorrendo frequentemente à caricatura dos diferentes personagens. Este tom sarcástico e crítico estende-se, creio, à própria literatura pois parece-me óbvia a crítica ao romance tradicional, neste caso o romance de aventuras e de cavalaria que (ainda) estava na moda nas classes aristocráticas daquele tempo, nomeadamente no público feminino; neste aspeto Cândido lembra (salvas as devidas distâncias) o D. Quixote de Cervantes, na forma como ridiculariza o viajante aventureiro à procura da sua Dulcineia (neste caso a formosa dama chama-se Cunegundes).

Sinopse: (in wook)

Publicada anonimamente em 1759 é logo identificado o seu Autor e nesse mesmo ano a obra conhece vinte edições, seguindo a sua fama para a Itália e Inglaterra onde é traduzida. 
Voltaire foi o introdutor de um género de conto que utiliza a ironia para revelar criticamente a realidade do mundo em que vivia: utiliza a ficção como interrogação e os seus personagens agem por vezes em contradição com o senso-comum da época. 
Em Cândido, o seu herói confronta-se regularmente com o optimismo veiculado pelas teorias de Leibniz (o melhor dos mundos possíveis), ou o seu nome não exprimisse precisamente a ideia da candura que o optimismo gera na adversidade através da existência do mal e da justiça divina.

domingo, 6 de março de 2016

O Cortiço - Aluísio Azevedo


Comentário:
Um dos maiores méritos deste livro é a análise comparativa das caraterísticas do ser português com o ser brasileiro; as diferenças são tão profundas que se torna admirável a forma como os dois tipos de personalidade convivem neste país que é o país-irmão.
Inicialmente o autor parece identificar três tipos de portugueses: o português de sucesso que escolheu o Brasil como terra dos seus sonhos e por isso sente que merece ser rico; o português que se cansa do espírito trabalhador luso e adere ao espírito brasileiro; finalmente, o português pobre, sem eira nem beira, que se limita a trabalhar para sobreviver. Cora constantemente de saudade e canta o fado; aliás o primeiro tipo também o faz, mas porque é um eterno insatisfeito.
Aluísio Azevedo encontrou no personagem Jerónimo um meio de plasmar as duas personalidades, ao fazer com que ele, por influência de uma moça de sangue bem quente, se transformasse de português em brasileiro; vejamos então alguns adjetivos usados para caracterizar o Jerónimo enquanto tinha um comportamento tipicamente português e depois o Jerónimo já “convertido” ao estilo de vida brasileiro: 
O Jerónimo português: trabalhador até à exaustão, poupado até à sovinice, vida sombria, tristonha, marcada pela saudade, pelo fado.
O Jerónimo “brasileiro”: apaixonado, afrouxado em energias, adquiria desejos, idealizava felicidades e prazeres, não dispensava o café e a cachaça, gastador, o samba toma o lugar do fado. Torna-se esbanjador e assim constrói a sua desgraça. 
Esta comparação, que à partida apanha o leitor desprevenido parece uma crítica ao espírito “sovina” do português mas, na verdade, a perspetiva crítica incide sobre os dois tipos; o português torna-se obcecado pela riqueza, egoísta e preso às aparências; o brasileiro torna-se preguiçoso, esbanjador e irresponsável.
O povo, como em qualquer escritor naturalista, é visto com grupo e não individualmente. Aqui, ao contrário do mestre Zola, a primazia não é dada às condições materiais dos mais pobres, mas sim aos seus costumes, crenças, superstições, hábitos. Pelo meio constrói uma curiosa crítica ao moralismo hipócrita que parece derivar de uma determinada interpretação do pensamento religioso, mesclado com superstições; a crença religiosa aparece sempre misturada com bruxaria, feitiçaria e as mais irracionais crenças… enfim, um belo retrato coletivo. Mesmo assim, a importância dada às condições materiais de existência vai crescendo ao longo do livro, à medida que se vão acentuando as desigualdades sociais; na parte final assistimos a esse “fim da história” em que os ricos se tornam mais ricos e prepotentes enquanto os pobres, à sombra dessa riqueza, caem na miséria, como os mineiros de Zola. Os poderosos, esses caem no ridículo da nova aristocracia, aderindo a uma sociedade que esconde as misérias pessoais por detrás da típica sociedade de aparências que rodeia a elite social dominante.
A solidariedade está sempre presente como um fator de união, e o cortiço é a personificação dessa união solidária. No entanto, quando os conflitos estalam emerge a desunião e com ela a violência. É com grande eficácia que o autor nos explica a relação intima entre a natureza extrovertida da alma brasileira e a facilidade com que surge a violência. É o “sangue quente”, reforçado pelo álcool, que comanda a ação coletiva e não a racionalidade.
A linguagem crua, direta, realista, aliada ao realismo com que é descrito o “calor” da alma brasileira conferem a algumas passagens do livro um aspeto de romance erótico pouco comum no século XIX. Mas o que se pretende não é acentuar o erotismo mas sim ilustrar um certo desregramento dos costumes por parte da comunidade brasileira. Noutras passagens, este hiper-realismo dá lugar a uma linguagem fria, chocante, como na descrição da criança que morreu esfacelada na pedreira.

Sinopse: (in fnac.pt) - contém revelações sobre o enredo -
O cortiço, publicado em 1890, focaliza a ascensão social do comerciante português João Romão, dono de uma venda, de uma pedreira e de um cortiço, bem perto do sobrado de um patrício endinheirado, o comendador Miranda. A rivalidade entre os dois aumenta à medida que cresce o número de casinhas do cortiço, alugadas, na sua maioria, pelos empregados da pedreira, que também fazem compras na venda de João Romão, que, desse modo, vai se enriquecendo rapidamente. Com a intenção obsessiva de tornar-se rico, João Romão não se permite o menor luxo, economizando cada moeda e explorando os outros sempre que pode. Vive amasiado com uma escrava fugida chamada Bertoleza, que o auxilia no trabalho duro, e para quem ele forjou um documento de alforria. O grande sonho de João Romão é adquirir prestígio social, como seu patrício Miranda. Este, à medida que o vendeiro vai enriquecendo, não vê com maus olhos a possibilidade de oferecer-lhe a mão de sua filha, Zulmira. Um amigo comum, Botelho, se faz intermediário das negociações e tudo fica arranjado. João Romão fica noivo de Zulmira, alcançando assim um patamar mais alto na escala social. O único inconveniente é Bertoleza, que não aceita ser descartada sumariamente. Botelho arma um plano: denuncia Bertoleza como escrava fugida a seu verdadeiro dono, que vai com a polícia prendê-la. João Romão faz de conta que não sabe de nada e a entrega. Bertoleza percebe que o vendeiro, sem coragem de mandá-la embora ou de matá-la, preparou essa armadilha para devolvê-la ao cativeiro. Desesperada, ela se mata. A narração desses fatos da vida de João Romão entrelaça-se com a narração de vários episódios dos moradores do cortiço, cuja luta pela sobrevivência é dura e cruel. O caso de Jerônimo é exemplar da visão naturalista do autor. Jerônimo é um operário português contratado por João Romão para trabalhar na pedreira. É um homem sério, casado com Piedade, também portuguesa. Eles têm uma filha adolescente e vivem bem como família. Mas, no cortiço, Jerônimo começa a sofrer influência daquele ambiente sensual e desregrado, apaixona-se pela mulata Rita Baiana, por ela mata um rival e abandona a família. Acompanhando a evolução social de João Romão, o cortiço também se desenvolve, principalmente depois de um grande incêndio, quando passa por reformas e transforma-se na "Avenida São Romão", com melhor aparência e uma população mais ordeira. A população mais baixa e miserável se transfere para outro cortiço, o Cabeça de Gato, mantendo-se assim a engrenagem do sistema social em que predomina a lei do mais forte.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Pomar de Histórias - José Fernandes da Silva

Comentário:

Na senda dos seus livros anteriores, José Fernandes afirma-se como o escritor da terra e do povo; o artesão de uma prosa muito aparentada à poesia que tanto cultiva. Aqui, as palavras parecem nascer da terra amanhada pelo talento do poeta.
José Fernandes concretiza assim a fidelidade às raízes das quais ele próprio brotou; filho da terra e de um povo humilde; é a esse povo que ele procura fornecer uma identidade; o que o autor busca não é apenas contar belas estórias das suas gentes; é dar a essas gentes aquela identidade, aquela coesão enquanto Povo que os tempos modernos parecem ameaçar. Uma identidade que parece ser fornecida por uma espécie de honra que se configura como traço de união entre os vários contos; uma honra fundada sobre a moral cristã mas também sobre as leis da natureza.
Ao nível do estilo, José Fernandes reforça neste livro um aspeto que é transversal a toda a sua obra: a musicalidade das palavras. Raros são os escritores que conseguem obter descrições tão precisas e concisas, numa linguagem objetiva, bela mas sem floreados desnecessários. Para mim, que devo ao autor a honra da sua amizade, a explicação para esta filigrana das palavras é simples: é a arte do músico ao serviço da escrita. Sendo músico, José Fernandes transporta para as palavras os acordes e as melodias das pautas com que convive diariamente.
Nesta prosa natural lê-se a alma de poeta – a capacidade para encontrar mensagens nas coisas mais simples da vida; muitos destes contos partem de situações absolutamente banais da vida mas nas quais o autor encontra sempre um significado especial; e é aí que reside o encanto da vida: na beleza das pequenas coisas…
Mas este livro, como os anteriores do autor, é também um testemunho etnográfico; estamos perante um belo repositório de usos e costumes, tradições e até linguagem específicos de um mundo rural que está em vias de se perder; daí as numerosas referencias aos séculos passados onde o autor coloca a ação de várias destas narrativas; este já não é o mundo das novas gerações…
Finalmente, gostaria de destacar três contos como representativos da obra na sua globalidade, em termos de temática:
- Logo a abrir deparamos com A Pedra com Inscrições; desconcertante o humor com que termina o conto. Alguém escrevera numa enorme pedra uma frase que convidava a que a virassem; só que o seu peso era brutal e a aldeia em peso passou séculos a tentar virá-la. Um dia, todo o povo, unido pela curiosidade e pela força da união, lá conseguiu, depois de sacrifícios imensos, voltar a pedra. Surpresa das surpresas: por baixo não havia tesouro algum. Mas na face voltada antes para a terra e agora voltada ao céu alguém descobriu uma inscrição que agradecia aos heróis que voltaram a pedra, que se encontrava cansada de tantos anos virada para o mesmo lado…
- O conto O Rio Feliz e Infeliz é um verdadeiro hino ecológico; não a essa ecologia pintada de cores políticas mas como uma manifestação singela de amor à terra e à água que dela brota; uma manifestação de amor de alguém que não esqueceu as suas raízes e que sofre com os disparates que o homem faz na força destruidora que resulta da ambição de riqueza.
- Depois da queda é um conto sobre as desigualdades sociais, que ainda hoje prevalecem. A sociedade humana é por natureza desigual e injusta, no entanto, neste mundo fechado rural a desigualdade é marcada por barreiras quase inultrapassáveis entre os diferentes grupos; prevalece uma aristocracia terratenente herdeira da velha nobreza que se demarca em absoluto do povo.
Conclusão: este livro da Calígrafo merece ser lido pela linguagem clara, bela e cristalina; pela temática rural que faz do autor um lídimo herdeiro da melhor tradição neorrealista; pela graça, pelo humor discreto da malandrice, da mais inocente brejeirice; e, acima de tudo, pela alma da terra que brota em catadupas destas páginas.
Uma nota final para destacar o belo prefácio do escritor João Lobo, também ele uma emanação da alma da terra.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Dom Dinis - Cristina Torrão - Divulgação

Não costumo fazer divulgação neste blogue mas abro aqui uma exceção para anunciar a reedição de um grande livro, já analisado neste blogue, Dom Dinis, de Cristina Torrão.


“DOM DINIS - A QUEM CHAMARAM O LAVRADOR” DISPONÍVEL EM E-BOOK

Foi no passado dia 24 de Fevereiro editado em eBook o livro “Dom Dinis - a quem chamaram o Lavrador”, da autoria de Cristina Torrão. O livro digital, que poderá ser adquirido na Leyaonline bem como nas livrarias online associadas, é uma reedição revista e melhorada da versão em papel, editada em 2010 pela Editora Ésquilo. O texto foi devidamente trabalhado, de forma a dar mais realce ao enredo do que aos factos históricos, que podem tornar fastidiosa a leitura de um romance histórico.

Sobre o livro:
Dom Dinis, o Lavrador ou o Poeta?
Há ainda quem lhe chame o Trovador. E, no entanto, para fazermos justiça ao sexto rei de Portugal, teríamos de ir mais longe. Podíamos chamar-lhe o Legislador, o Reformador, ou até o Defensor, tanto ele fez pela defesa e delimitação das fronteiras do reino, apesar de não ter sido um rei propriamente guerreiro.
Dom Dinis não foi, porém, apenas o homem público. Dele se diz que, não se furtando a amores adúlteros, muito fez sofrer a rainha com quem esteve casado durante cerca de quarenta e quatro anos, uma rainha que foi canonizada. E, apesar de ter ficado na história como um rei justo e culto, debateu-se numa guerra civil contra o seu próprio filho e herdeiro, uma guerra que massacrou o reino português e amargurou os últimos cinco anos de vida do monarca, talvez até lhe tenha acelerado a morte.

«Quantas contendas são provocadas e quantas mágoas se guardam por palavras silenciadas? Palavras que se adivinham, mas que não são ditas? Não se duvida do amor de um pai por um filho e, no entanto, se não for continuamente expresso, seja por falas, seja por atos, deixará o filho eternamente insatisfeito, desconfiando desse afeto. Qualquer pessoa, desde o mais baixo serviçal, ao mais alto dos soberanos, há mister da aprovação e do apoio expresso de seus orientadores. É um erro abrigarmo-nos sob a capa das evidências. Amar não é apenas um conceito, é prová-lo, todos os dias, a todas as horas. Quer se trate de um pai, de uma mãe, seja de quem for: quem não pratica o amor, não o recebe de volta. Quanto desprezo, quanto abandono e, muitas vezes, quanto sarcasmo aguentaram aqueles de quem se diz não serem bons filhos?»
(palavras da rainha Santa Isabel, neste romance)

Sobre a autora:

Cristina Torrão nasceu a 16 de Julho de 1965, em Castelo de Paiva. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Ingleses e Alemães) pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Em Julho de 2007 venceu a segunda edição do Concurso Literário “O meu 1º Best-Seller”, levado a cabo pela Modelo/Continente em parceria com as Edições Asa e a revista Visão, com o livro “A Moura e o Cruzado”. No ano seguinte publicou, com a editora Ésquilo, o seu segundo romance histórico “Afonso Henriques - o Homem”, a que se seguiu uma reedição da sua primeira obra, que recebeu o título “A Cruz de Esmeraldas”, e “D. Dinis - a quem chamaram o Lavrador”. Em 2014 publicou, sob a chancela da Poética, “Os Segredos de Jacinta”, o percurso de uma jovem no século XII português.


Ficha do Livro:

Título: Dom Dinis - a quem chamaram o Lavrador
Autora: Cristina Torrão
Editora: edição de autor - Escrytos
ISBN: 9789892064505
Nº de Páginas: 300
Preço: 6,99 €

Lojas online onde o livro está disponível:
LeyaOnline, Amazon, Apple Store, Barnes & Noble, Fnac.pt, Gato Sabido, IBA, Kobo, Livraria Cultura, Submarino, Wook entre outras.



Blogues da autora:


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Oliver Twist - Charles Dickens


Comentário:
Segundo livro de Dickens, apresenta-nos as bases daqueles que serão os traços fundamentais da sua magnífica bibliografia: escrita muito visual, simples e fluída, servindo de base a uma temática de âmbito social que hoje talvez apelidaríamos “de intervenção”. Numa fase pré-socialista e pré-sindical, o capitalismo ainda mais selvagem que o de hoje imperava no ambiente vitoriano. A sociedade “british”, altiva e hipócrita, encaixava no seu seio a mais rude e desumana pobreza, encarando-a com naturalidade, como se os homens desprotegidos pela sorte constituíssem uma espécie de casta menor, que esses mesmos cidadãos “asseados” tinham de suportar.
Oliver, o miúdo órfão representa toda essa classe de crianças que a sociedade londrina rejeita, empurrando-a para a sarjeta da criminalidade e da miséria.
Este é um dos primeiros livros de Dickens e talvez por isso é um dos mais lineares e mais “ingénuos” na medida em que privilegia a narrativa, o humor e a emoção, a incerteza no evoluir da narrativa. Na sua tendência para a narrativa biográfica de ficção (que viria a reforçar e desenvolver com Nicholas Nickleby e David Copperfield, toda a ação é centrada nas personagens, nas suas emoções e sentimentos. Neste aspeto talvez Dickens tenha sido um dos percursores do género “novela”, entendido como romance ligeiro e que dá preferência às histórias “de vida”. Não sei, deixo isso aos especialistas da literatura. No entanto, o que interessa reter é que, sendo uma obra publicada em fascículos, Dickens, mesmo nesta fase inicial da carreira, manobra como ninguém a emoção e a incerteza na mente do leitor levando-o a devorar página sobre página.
Embora seja um crítico da austera sociedade vitoriana com todos os seus problemas. Dickens não deixa de ser, a seu modo, um moralista, como se vê numa parte essencial do livro em que um assassinato é seguido por uma violenta crise de consciência, um remorso a fazer lembrar o Crime e Castigo de Dostoievski.
Neste livro, o génio britânico desmente um pouco aquela ideia que por vezes fixamos a respeito das suas ideias, segundo a qual o autor defende incontornavelmente os elementos hierarquicamente mais baixos da sociedade; na verdade, aqui ele acusa claramente esse tipo de pobre que se refugia na criminalidade e por vezes roça até um certo moralismo. Mas depressa esse moralismo se desvanece e é substituído pelo humor com que a sua crítica atinge, por exemplo, os elementos da polícia londrina, supremos exemplos de estupidez.
O sentido de humor é finíssimo que deixa um sorriso permanente e não a gargalhada efémera. Exemplo, um trecho de um diálogo entre um bedel (funcionário paroquial) e a mulher de meia-idade, beata e bem nutrida:
“A dama não pôde resistir. Caiu nos braços do bedel, e este depôs um apaixonado beijo no nariz da matrona. 
— Que perfeição paroquial! — Exclamou o Sr. Bumble!”
Posteriormente, o casamento destes personagens serve a Dickens para uma corrosiva e brilhante crítica social, apresentando-nos um bedel que deixa de ser o altivo funcionário para se transformar no submisso marido, capaz de encaixar uma valentes “porradas” por parte da matrona.
O livro termina de forma algo melodramática, num quadro profundamente emotivo que Dickens não repetirá (pelo menos de forma tão vincada) nas obras subsequentes.
Uma nota final para esta histórica e excelente tradução de Machado de Assis: aqui nada é supérfluo. Assis terá optado por uma tradução bastante interventiva que tornou o livro mais sintético mas, ao mesmo tempo, mais atraente ao leitor.

Sinopse (in wook.pt)
Obra maior de Charles Dickens, Oliver Twist destaca-se pelo seu realismo, retratando pela primeira vez a rudez dos gangs londrinos, até então descritos com glamour e romantismo. Realça a vida de escravatura das crianças de rua e um submundo paralelo ao mundo imperial da Grã-Bretanha.
Ladrões, assassinos, mentes perversas, prostitutas, a dureza da vida na sarjeta num mundo sem esperança povoam o universo de Oliver Twist, o órfão que personifica a resistência ao sofrimento à corrupção e à luta pela vida que faz dele um verdadeiro sobrevivente. Diversas vezes adaptado ao cinema e à televisão, Oliver Twist tem agora uma nova versão cinematográfica pela mão do mestre Roman Polanski.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

O Francoatirador Paciente - Arturo Pérez-Reverte


Comentário:
Publicado em 2014, este é um dos mais recentes livros deste que é, na minha opinião, o melhor escritor espanhol da atualidade. Na contracapa da edição portuguesa da ASA há uma citação do La Repubblica que diz o seguinte: “Um escritor que cruza o melhor de Umberto Eco e de Steven Spielberg”. É caso para dizer, não exageremos. Reverte é excelente mas Eco e Spielberg são o topo em cada uma das suas artes. Eu diria antes, já que estamos a falar de literatura espanhola, que Reverte cruza o melhor de Eduardo Mendoza (a profundidade das ideias, o rigor formal do romance, a arte de bem escrever) com o melhor de Zafón (a beleza do thriller, a emoção, a incerteza no evoluir do enredo). E junta a tudo isso um gosto especial pela análise e crítica histórica. No entanto, este é (creio) o primeiro livro que leio de Reverte em que o autor não se debruça sobre assuntos históricos.
Pelo contrário, este livro é sobre algo de muito atual: a arte urbana nos seus limites ténues e polémicos com o vandalismo; o grafiti como arte de rua, livre mas sujeita a um certo radicalismo rebelde. Alexandra é uma jornalista que procura penetrar o mais profundamente possível nesse submundo, levando-a a descobertas inesperadas mas que viriam a terminar de uma forma absolutamente inesperada, dando ao livro um final surpreendente.
Desde cedo, algures nos anos oitenta, Reverte habituou-nos a duas vertentes na sua escrita: uma mais reflexiva, mais pensada, mais erudita talvez, de onde se destacam O Pintor de Batalhas e principalmente aquele que é o seu melhor livro na minha opinião, O Clube Dumas e uma outra vertente, mais divertida, mais detectivesca e normalmente centrada na narrativa histórica; dessa vertente destaca-se sem dúvida uma obra em sete episódios, As Aventuras do Capitão Alatriste. Nessa narrativa histórica Reverte salienta-se pela perspetiva crítica que verteu um pouco para este romance, se bem que colocando-o no século XXI. Toda esta “conversa” para dizer o seguinte: parece-me que este livro é uma espécie de romance histórico situado no presente. 
A questão central do livro é muito pertinente: a arte atual, principalmente a pintura, a partir do momento que seguiu o rumo do não figurativo prestou-se a uma certa falta de critério seguro de qualidade; os arrivistas que surgem protegidos por galerias famosas ou críticos bem colocados têm êxito garantido, deixando para trás pintores com talento. É neste contexto que surge a figura de Sniper, o artista de rua que recusa terminantemente adaptar-se à arte comercial das galerias, que ela considera abjeta por se ter vendido ao capitalismo. “A arte moderna não é cultura, é só moda social”, afirma Sniper.
Um dos aspetos mais meritórios do romance é que Reverte recusa totalmente qualquer maniqueísmo; pintura de galeria e grafitis não representam o bem nem o mal; os writers dos grafiti não são bons nem maus; nem artistas perfeitos nem vândalos. Fica ao leitor a tomada de posição. O romance, se bem que divertido e mesmo apaixonante em termos de suspense, não deixa de nos oferecer motivos de reflexão…

Sinopse (in wook.pt):
Sniper é uma lenda viva no mundo da arte de rua. Subversivo e omnipresente na tela urbana, ninguém conhece a sua identidade, poucos terão visto o seu rosto, não há relatos do seu paradeiro. Quem é o verdadeiro Sniper por detrás deste enigma que o mistifica? É um heroico cruzamento de Salman Rushdie e Banksy, um justiceiro solitário? Ou um terrorista urbano, um egomaníaco cujas ações já se revelaram fatais?
Alejandra Varela, especialista em arte, decide seguir os passos deste homem sem lei. Uma mira telescópica de francoatirador assina todos os trabalhos de Sniper, e é essa mira que leva Alejandra a infiltrar-se no submundo de Madrid e Lisboa, Verona e Nápoles. Cidades que são os campos de batalha prediletos deste caçador solitário. Mas, a coberto das sombras, uma outra pessoa aguarda para descobrir o paradeiro de Sniper, embora as suas motivações sejam bem diferentes…
Segue-se um formidável duelo de inteligências, um jogo de perseguição entre caçador e presa cujo final é, no mínimo, surpreendente.
Thriller centrado no obscuro e inexplorado submundo da arte urbana, nas suas leis e códigos éticos próprios, na frágil distinção entre arte e vandalismo, O Francoatirador Paciente é um convite à reflexão sobre a identidade urbana, a arte e o artista moderno.

domingo, 17 de janeiro de 2016

A Letra Escarlate - Nathaniel Hawthorne


Comentário:
Publicado em 1850, este livro é talvez o primeiro grande romance da literatura norte-americana; na verdade poucas obras de ficção poderão ter servido de inspiração a Hawthorne. Por outras palavras, estamos perante um autêntico pioneiro.   
Como pano de fundo, a América do Norte no século XVII em plena colonização pelos ingleses, assistindo-se à fixação das colónias de populações puritanas, verdadeiramente fanatizadas. Na realidade, a maioria destes colonos eram ingleses de baixa condição, perseguidos pela justiça ou então refugiados por motivos religiosos. Foi por esse motivo que muitas seitas protestantes puritanas acabaram por se instalar no território que hoje conhecemos como EUA e que explicam, em parte, a mentalidade conservadora patente na maioria da população deste país.
A ação decorre na cidade de Salem, precisamente onde se deu o processo de acusação de bruxaria que levou à condenação de dezenas de mulheres por bruxaria. Esse é o facto histórico; o enredo ficcional baseia-se na história de uma mulher que um dia cometeu um pecado; tornou-se adúltera num momento de fraqueza. Condenada, mal vista e mal-amada, foi obrigada pelos juízes da cidade a usar uma letra bordada, um A escarlate, inicial de adúltera. Mas pior que a condenação é a forma como Esther é totalmente ostracizada pela população; os habitantes da cidade são mesmo levados a não a olhar de frente quando se cruzam com ela e muito menos dirigir-lhe a palavra. E assim Esther deveria passar o resto da vida.
A caraterização das personagens é um dos pontos mais fortes e geniais deste livro; cada uma das personagens principais é uma figura fortíssima e representativa de uma figura social típica. Assim, o pai da criança é uma figura cobarde, apática perante o sofrimento de Esther mas ao longo do livro vai evoluindo para uma tomada de consciência e tentativa de redenção que não são mais que atitudes destinadas a combater o remorso que o atormentava. Curiosa a forma como o autor só nomeia o pai da criança quando o leitor já foi levado a descobrir a sua identidade.
A filha, resultado da aventura de Esther, é Pearl (Pérola), uma jóia no meio do preconceito. Ela não é a criança perfeita; não é propriamente o bom selvagem de Rousseau; é antes o ser livre que lhe permite ser pérfida por vezes e amorosa noutras. Ela simboliza precisamente o ser humano livre das peias da religião fanatizada.
A Esther, tal como acontece com Pearl, o autor atribuiu um nome bem significativo, numa referencia clara a Ester, figura bíblica, rainha da Pérsia casada com Xerxes que arriscou a vida para interceder junto do imperador para salvar o povo judeu. Aqui Esther parece redimir toda a população como se fosse, com o seu castigo, capaz de libertar a cidade de uma espécie de pecado original, num contexto em que o pecado está por todo o lado, tal é o fanatismo com que se vive a religião; ou seja, ao ser punida, ela constitui uma espécie de catarse, de libertação daquelas mentes atrofiadas pelo fanatismo.
Um dos aspetos mais curiosos e mais artísticos do livro é a forma como o autor cuidou do domínio espacial: a cidade é associada ao conservadorismo, à desumanização provocada pelo fanatismo e à escravidão a que estão sujeitos os cidadãos, especialmente as mulheres. A floresta, pelo contrário, é o espaço de liberdade. É lá que as bruxas moram e elas representam precisamente o espírito livre. A natureza é assim apresentada como contraponto a uma civilização peada pela religião, num espaço de felicidade, onde Esther encontra o raio de sol que lhe fugia, numa figura de estilo que configura uma das passagens mais brilhantes da obra.
Enfim, trata-se de um livro que não escapa a uma certa ingenuidade formal mas que se compreende perfeitamente pelo seu caráter pioneiro; antes de Hawthorne poucos foram os grandes escritores de ficção. Talvez Poe e Goethe tenham sido os seus únicos percursores, embora em dimensões completamente diferentes. Um livro que é um marco histórico, obrigatório para todos que pretendem conhecer um pouco da história da grande literatura mundial. Mas é também um livro que se lê com facilidade e com imenso prazer.

Sinopse: (in www.fnac.pt):
O ambiente, asfixiante de puritanismo, duma colónia do Novo Mundo e, nele, o drama de um amor taxado de pecaminoso pelo convencionalismo da sociedade. O drama do amor entre um homem e uma mulher – uma mulher corajosa e um homem frouxo: enquanto ela enfrenta o opróbrio a que a votam, ele, «piedoso» ministro da religião, acoberta-se na respeitabilidade de uma fachada irrepreensível, a esconder o drama profundo duma consciência torturada pelo remorso. Um livro forte e pungente, um dos mais poderosos romances da literatura americana do séc. XIX e ao qual Nathaniel Hawthorne deve a sua consagração como escritor com assento entre os grandes nomes da literatura universal.