terça-feira, 20 de julho de 2010

O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar - Yukio Mishima

O cenário é tradicional: um rapaz de 13 anos, Noboru, enfrenta os ciúmes provocados pela relação da mãe, Fusako, com um marinheiro, Ryuji. Mas por detrás deste cenário (ilusório e superficial) esconde-se um mundo inteiro de contradições espirituais, um cosmos complexo que o rapaz vai construindo interiormente, por oposição ao mundo real e um quadro simbólico em que o mar (que Ryuji transporta no sangue)  funciona como símbolo do poder maior, o poder que destrói.
Como se vê, a ideia-base é semelhante à de O Tempo Dourado, obra maior de Mishima: o confronto do Eu interior com o mundo e a ideia de expiação do mundo pelo poder do Eu. Só o poder que destrói é criador. No entanto, o confronto de Ryuji com o amor carnal é o pólo oposto ao do poder – é o lado fugaz e mesquinho do ser humano.
O homem tem como obrigação expor o seu poder sobre o mundo; a violência torna-se justificável perante a mesquinhez, a ignorância e o egoísmo do ser humano. Matar é o acto supremo de exercício do poder; a morte é o único acesso à perfeição.
Tal como em O Templo Dourado, Mishima exibe o seu impressionante fascínio pelo mar: o mar representa o poder destruidor. “O pavoroso poder do mar”.
Ruyjan, marinheiro que trocou o mar pelo amor, foi despojado do seu heroísmo porque o trocou pela vida na terra. É por isso e não por qualquer tipo de ciúme que Noboru o odeia. A sua morte pode ser a única solução. Sem piedade, porque a piedade é um obstáculo às mentes superiores que Noboru representa. A mulher é o elemento do mundo, é o obstáculo maior a essa glória. A morte, por seu turno, é associada à glória. Porque a glória é amarga.
Esta apologia da violência, do poder e da morte tornam a escrita de Mishima terrivelmente inquietante. Ela só é compreensível à luz dos conceitos de honra do código dos samurais que Mishima respeitará até à morte quando, em 1970 se suicidou cumprindo o cruel ritual japonês sepukku, vulgarmente conhecido por haraquiri.
Uma escrita perturbadora, inquietante mas absolutamente genial pela profundidade de espírito, pela visão clara se bem que radical do destino humano.

8 comentários:

Poeta do Penedo disse...

Caro Manuel Cardoso
Nunca li uma letra de literatura asiática, neste caso nipónica, talvez porque na minha mente se tenha formado o preconceito de que os asiáticos são terrivelmente violentos, talvez influências dos kamikase ou mesmo dos samurais. Mas estou tentado a fazê-lo, dado os autores que nos tens apresentado. Na verdade, a imagem terrífica que eu fazia dos samurais, diluiu-se um pouco, muito por acção do belíssimo filme «O Último Samurai».
Sempre considerei excelente tudo o que diga respeito a códigos de honra. Demonstram grande força de carácter.
Uma boa semana.

Unknown disse...

Olá Poeta
já tinha saudades das nossas conversas virtuais :)
A tradição japonesa não é violenta. pelo contrário. A cultura japonesa, fundada sobre os princípios éticos do Xintoísmo e do Budismo apela sobretudo ao interior, ao Eu como um um mundo onde o ser humano sintetiza os elementos divino e terreno, de uma forma muito bonita: o mundo natural é encarado como uma emanação de Deus e a paz a que todo o ser humano aspira para ser feliz encontra-se precisamente nesse mundo natural.
Então de onde vem essa tradição guerreira? Da história do japão, que é feita de guerras e conflitos. Os japoneses tiveram de lutar arduamente para conquistar a autonomia do seu país, perante inimigos tão poderosos como os Mongóis, os chineses e, mais tarde, os Russos. Por outro lado, a estrutura social do Japão baseou-se durante muitos séculos no poder da classe guerreira, os nobres, ou seja, os famosos samurais. A honra samurai tem fama de violenta. É daí que vem essa tua ideia. Mas temos de enquadrar essa violência na época. É a mesma violência dos cruzados, dos guerreiros muçulmanos, dos Espanhóis na América ou dos Ingleses na India. Com uma diferença: a Honra está acima de qualquer violência.
No entanto, a cultura japonesa sofreu um choque terrível no nosso século: a 2ª guerra mundial foi uma catástrofe terrível e a paz que conseguiram acarretou uma autêntica colonização por parte dos Estados Unidos da América. Neste contexto surge uma corrente quase diria niilista, representada por Mishima que leva a honra Samurai ao extremo, defendendo essa ideia radical: para tudo ser melhor, é preciso destruir tudo.
Mas nem todos os escritores japoneses são assim radicais: Murakami é presentemente aquele que melhor sintetiza a tradição ancestral da cultura nipónica com a modernidade. Aconselho-te Kafka À Beira-Mar. Tenho a certeza que vais adorar.
Um abraço minhoto!

Teresa Fidalgo disse...

Manuel,


Yokio Mishima é dos meus autores favoritos. Apreciei muito "as" escolhas.

Abraço

Unknown disse...

É sem dúvida um grande escritor; no entanto se o levarmos "ao pé da letra", ou seja, se nos envolvermos demasiado torna-se um pouco deprimente, não te parece?

Teresa Fidalgo disse...

Pois, Manuel, também acho...
E talvez por isso me fascine... bem, eu já não sei se gosto, ou se gostei, de ler livros bem deprimentes... daqueles que, no final, nos acomete a uma loucura... Todos os livros (e autores) são apreciados ou detestados consoante o estado e o tempo em que os lemos... Embora já tenha passado a fase da adolescência, altura em que é típico "curtirmos" a depressão(ui, ao tempo que ela lá vai!), continuo fascinada pelos autores deprimentes... e pelos livros deprimentes... não fosse eu uma apaixonada por Mário Sá Carneiro, por exemplo…

Teresa Fidalgo disse...

(o meu cometário anterior está meio confuso... parece parte de uma conversa inacabada... desculpa, mas é assim que ando ultimamente - sem começo nem fim)

Unknown disse...

Não está nada confuso, Teresa :)
É claro que há beleza na tristeza, independentemente de nos deixarmos ou não contagiar por ela. Há um escritor português que, pela força tremenda da sua escrita, não me deixa preservar esse distanciamento: a sua melancolia, de tão bela que é, contagia-me sempre: António Lobo Antunes. Não tenho palavras para descrever a forma como aquela melancolia me atrai...
Mas há muitos outros que, sendo tristes e melancólicos nunca deixarão de ser génios: Kafka e Dostoievski, por exemplo.
A poesia nunca foi o meu forte mas ainda me deixo embalar às vezes pela tristeza de Florbela Espanca...
O importante, penso eu, é que a vida está para lá dos livros; acima dos livros! E temos que ler com espírito crítico. Por vezes usamos os livros como forma de alimentar estados de espírito pouco saudáveis, mas isso já é outra conversa...

Poeta do Penedo disse...

Caro amigo
obrigado pelo excelente esclarecimento sobre a cultura nipónica, bem demonstrativo de que, quem o deu, é um amante da história e estudioso de civilizações.
Bem hajas!