Este Ensaio sobre a Lucidez foi escrito na sequência do
Ensaio sobre a Cegueira que deu origem a um belíssimo filme do Fernando
Meireles. Aqui, ao contrário do ensaio anterior, o povo tem um súbito ataque de
lucidez, atingindo 85 % de votos em branco numas eleições municipais, na
capital do país, de forma absolutamente inexplicável.
A qualidade literária da escrita de Saramago é
impressionante: a fluidez da escrita, a forma simples como nos descreve as
situações, o finíssimo sentido de humor que nos “prega” o sorriso nos lábios,
enfim, uma envolvência que nos faz agarrar o livro até ao fim, que nos deixa
desiludidos sempre que temos de pôr o livro de lado, ainda que provisoriamente.
O que pode haver de mais sublime num, livro está aqui bem presente: o prazer
com que se lê.
Basicamente, este livro é uma crítica à democracia. O
governo, estranhando uma votação maciça nos “brancos” resolve investigar. Ou
melhor, espiar. A liberdade dos cidadãos vai assim sendo coartada; todos são
suspeitos. Afinal de contas, pressupunha-se que o voto legitimasse o poder e
alimentasse a “besta”. Mas assim não aconteceu. Num tempo em que não havia
facebook, não foram necessárias SMS nem marchas de indignados; o povo, como que
iluminado, manifestou assim o seu descontentamento.
Mas as coisas não podiam ficar assim. O primeiro ministro,
aos poucos, foi aproveitando o fenómeno para apertar o cerco ao povo da
capital. Declarou o estado de sítio, interrogou os cidadãos; recorreu a
prisões; ameaçou, perseguiu, prendeu e não hesitou até chegar às medidas mais
extremas. Tudo porque o povo não foi fiel.
Neste livro, ao contrário do anterior, a cegueira parece
atingir apenas os homens do poder. Mesmo assim há exceções: o presidente da
camara coloca-se do lado do seu povo e por ele sacrifica a sua carreira
política. Mau grado o humor que se espalha por todo o livro, há um tom
pessimista apenas quebrado por alguns momentos e este é um deles.
A tirania da democracia representativa vai crescendo ao
longo do livro, atingindo píncaros quase apocalípticos. Alguns traços de
esperança, de crença no futuro, manifestam-se na atitude de alguns personagens,
como que reafirmando que, como diria Manuel Alegre, “há sempre alguém que
resiste, há sempre alguém que diz não”. Mas o final do livro desmente qualquer
visão positiva da realidade; afinal o povo resiste mas o poder persiste.
3 comentários:
Viva Manuel!
Este é um livro que Saramago usou como alerta para os males dessa democracia dita representativa.
No livro ele expõe os vícios e mostra o outro lado dessa pseudo-democracia.
No entanto, a meu ver, o livro lança também a perspectiva do voto em branco e isso é muito interessante. Se calhar não é por acaso que este livro é dos menos falados da obra de Saramago. Se calhar não interessa muito o povo saber o peso do voto em branco.
Grande obra. É impressionante a lucidez de Saramago.
Na Colômbia, este romance inspirou a população. Numa eleição onde apenas havia um candidato, a maioria da população votou em branco, dessa forma o autarca não foi eleito. É pena a nossa constituição não ter a mesma regra.
Desenvolvimento da notícia:
http://www.publico.pt/Mundo/era-o-unico-candidato-no-boletim-de-voto-e-perdeu-1519532.
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