O maior critério para avaliar um livro é o prazer que a
leitura proporciona. É por isso que adoro os livros de Murakami; dão-me um gozo
tremendo. Ora este 1Q84, volume 1, está, na minha escala de prazer apenas um
pouquinho abaixo do inesquecível Kafka À Beira Mar.
Uma das maiores qualidades deste escritor é a capacidade de
criar enigmas. Elementos dispersos, misturados no enredo, dão um constante tom
de suspense à obra, como se fossem os grãos de milho que, no conto infantil,
indicam o caminho para casa. Em Murakami, esses grãos indicam o caminho do
mistério; mas são colocados com esmero, com mil cuidados ao longo da narrativa
para que o prazer de ler atinja os píncaros.
Tais enigmas emergem do enredo de uma forma tão natural que
o leitor os integra na realidade da narrativa, como se a fantasia se tornasse
real, como se o surreal se tornasse concreto. O mistério passa assim a ser abordado
com uma naturalidade tal que a mente do leitor vai construindo um todo onde
deixa de ser possível desligar a fantasia da realidade. É este o mundo misterioso
e encantado de Murakami.
Nesta obra há um elemento de mistério acrescido: há duas
estórias paralelas e o autor vai introduzindo ténues pontos de contacto entre
as vidas de Aomame, a assassina e Tengo, o escritor. E os pontos de contacto
vão crescendo, emergindo envoltos em mistério a partir de meados do livro.
Alguns personagens de Murakami são, aos olhos do leitor
comum verdadeiramente excêntricos. No entanto é esta excentricidade que torna a
obra tão peculiar: não é uma excentricidade irreal, não é apenas fantasia, é um
comportamento peculiar mas explicável pelas regras da lógica. Para o leitor,
estas personagens são como diz Aomame: “não me considero excêntrica. Sou apenas
honesta comigo própria”. Talvez no mundo atual ser honesto seja sinónimo de
excentricidade…
Um dos aspetos mais curiosos deste livro é um erotismo
constante e latente. É o mundo dos sentidos na tradição oriental, perfeitamente
integrado na vida. E, como sempre na obra de MUrakami, a música. É uma obra
musical, a Sinfonietta de Janäcek a principal
ponte entre as duas narrativas e o ponto fulcral do enredo.
Os comportamentos excêntricos, como os aparentemente
estranhos assassinatos do Aomame são explicados numa linha freudiana – Murakami
atribui ao passado dos personagens a responsabilidade pelas linhas de força que
evidenciam nas suas vidas.
Neste livro, mais do que nos anteriores, Murakami deixa bem
clara a sua visão crítica face à influência das religiões instituídas na vida
das pessoas. Estas, ansiosas por compreender os grandes dilemas da vida e
perdidas num mundo capitalista sem ética, cada vez mais oco de valores
fundamentais, procuram explicações na religião. No entanto, como reconhecia o
personagem de Steinbeck, a religião já não explica nada! E, pior ainda,
alimenta-se precisamente dessa sede de compreensão. Nesse sentido, a história
da humanidade parece ser um longo caminho para a cegueira total: daí o revivalismo
do 1984 de G. Orwell. Talvez a solução seja, como diz Fuka-Eri, “caminhar por
sítios afastados da estrada” como os habitantes da ilha Sacalina, que
continuaram a usar os trilhos da floresta considerando inútil a estrada construída
pelos “civilizados”…
Talvez todos nós precisemos de caminhar um pouco mais por
fora da estrada…
11 comentários:
Manuel,
opinião brilhante, como nos habituou, certamente escrita numa noite em que duas luas lhe iluminavam o caminho. :)
Gosto imenso de Murakami, da sua escrita, do modo como me transporta para um outro mundo, tão denso que se pode tocar mas sempre de uma forma tão singela quanto indescritível. Dos livros de Murakami gostei imenso também deste (embora só pretenda divulgar opinião no final dos três volumes), do Kafka à Beira Mar, pois claro, mas Norwegian Wood, Crónica do Pássaro de Pedra e A Sul da Fronteira A Oeste do Sol são, na minha modesta opinião, obras soberbas. O meu primeiro contacto com Murakami deu-se com "Em Busca do Carneiro Selvagem" e a partir daí não mais o larguei. Estou dependente!
Gosto especialmente do trabalho exemplar, cuidado e atencioso com que a tradutora brinda o leitor. Acredito que grande parte do prazer que sinto ao ler este autor é em grande parte graças ao não menos genial trabalho da Maria João Lourenço.
Aguardo, ansioso, os volumes que faltam deste 1Q84.
Um abraço.
Tem razão, André, a tradução está excelente.
Na minha opinião há 2 escritores actuais muito acima de todos os outros: Murakami e Auster. Também gosto muito de Roth mas tenho de ler mais dele.
Gostei da alusão às duas luas ;)
um abraço!
Olá Manuel, gostei bastante desta tua opinião que deixa ante-ver um poouco aquilo que espera o leitor.
De Murakami apenas posso falar de Sputnik meu amor que foi o único que li. Gostei bastante e gostaria de voltar a este escritor.
Levado pelas críticas estou numa encruzilhada entre "Crónica do pássaro de corda" e "Kafka à beira Mar" qual dos dois me aconselhas a ler para suceder a Sputnik?
1 Abraço.
Nuno, sem dúvida Kafka à Beira Mar embora o Pássaro de Corda também seja um belo livro.
Mas o Kafka tem duas palavras chave fundamentais: poesia e misticismo.
Vais gostar!
Parabéns por esta opinião! Convenceu-me a ler este livro ;)
Olá professor!
Mais uma vez ando por cá (;
Estou a ter a minha primeira impressão com Murakami- é qualquer coisa do outro mundo. Fantástico!
Ando a ler "Crónica do pássaro de corda" e estou a adorar.
Com toda a certeza continuarei a ler este grande escritor japonês partindo talvez para " Kafka à beira mar",apesar de já me terem alertado para a dificuldade de perceção e entendimento do livro, mas talvez arrisque - talvez prossiga com Murakami até me aborrecer!
Pedro Aguiã,
Abraços.
Sem duvida o melhor escritor da actualidade (na minha opiniao claro) penso que este primeiro volume serviu apenas para deixar agua na boca, estou ansioso pelos proximos volumes
"Por vezes parece-me que estou a viver no mundo errado" - acho que vais gostar desta entrevista:
http://bibliotecariodebabel.com/entrevistas/haruki-murakami-por-vezes-parece-me-que-estou-a-viver-no-mundo-errado/
Olá Manuel,
Como sempre uma opinião EXCELENTE :D
Parece-me que vou ter de ler este livro :) não sei porquê, mas algo me diz que sim :D
Manuel,
tomei a liberdade de colocar no meu blogue, a propósito da minha opinião sobre os vol. 2 e 3 de 1Q84 um link para esta tua. Fi-lo para a crítica que fazes ao vol. 1 por vários motivos. Penso que é o mais adequado porque se trata do início da história, do livro que mais prazer, penso, te deu dos três, porque a tua crítica é sublime e ainda porque, no que à escrita de Murakami diz respeito, me falta a capacidade de a descrever e sobre ela opinar uma vez que esta me transcende e esmaga. Além de tudo isto não consigo dividir a opinião por volumes na medida em que considero tratar-se de uma só história. Um só livro. Diria que, para mim, é como o Conde de Monte Cristo que li em três volumes. Só uma história, só um enredo, só um enorme prazer.
Obrigado!
Abraço.
Obrigado, André.
Completamente de acordo quando dizes que o vol 1 é o melhor. Mesmo assim, toda a trilogia é sublime,
Acho que Murakami, Auster e Roth estão, hoje em dia, muito acima do resto do mundo, em matéria de ficção.
Abraço e volta sempre
Enviar um comentário