Numa atitude inovadora e de enorme coragem, o Luís Novais publicou o seu livro mais recente na Internet, disponível para download gratuito, no seu blogue.
O livro é excelente. Eu tive o privilégio de ler o original antes ainda da publicação e deixo aqui a minha apreciação:
Naquela aldeia não havia governantes porque deles nunca se precisou; até que da cidade veio a Grande Mula e prometeu riqueza; e aquele mundo dividiu-se em orelhudos (os da aldeia) e mulas (os da cidade). As mulas governariam; os orelhudos obedeceriam. E assim se fez para felicidade dos orelhudos e engorda das Mulas.
Este quarto livro de Luís Novais surpreende-nos com uma espécie de literatura fantástica, ou mais propriamente uma sofisticada fábula, fundada sobre a ironia
e o escárnio, com grande riqueza de elementos simbólicos, como a magreza das mulas,
a relação entre o poder das mulas e os seus adornos, o elemento religioso na
figura do Grande Mula, etc., que conferem à narrativa um extraordinário poder
crítico. Nada escapa à sátira que, a espaços, lembra Gil Vicente.
Por detrás disto está a falácia da nossa democracia: escolham entre nós, as
Mulas! Vocês são livres; podem escolher um de nós! bem como a crítica ao capitalismo: o dinheiro criou o pobre.
Mas o dinheiro (o contado) teria que ser doseado para bem dos orelhudos, mal habituados ao gastar. Uma
dieta de contado para acabar com os maus vícios dos orelhudos: assim falou a
troika dos reis magos que vieram aconselhar a Mula governadora. Achei fabulosa
esta referência à troika sob a forma de reis magos do Oriente. Do Oriente ou do
Ocidente, o certo é que Portugal não seria o mesmo sem os Magos quem de vez em
quando nos caem do céu. Ou do Inferno.
Mas, gradualmente, eram as mulas a engordar de tal sorte que nem os colarinhos brancos lhes duravam mais
que uma semana. E
mais uma metáfora: A União; metáfora da união europeia. Aliás, toda a linguagem
do livro é metafórica, apelando para elementos simbólicos.
De repente as mulas surgem com uma excelente ideia, com o apoio dos três magos do Oriente: reduzir os
pagamentos aos orelhudos que trabalham para a governação :) Nada como um belo plano de
empobrecimento! trabalhar para o governo já é um privilégio, portanto é justo que se lhes corte no ordenado.
A
mula sonhadora é a excepção: havia uma mula que pensa. Uma mula que pensa, sonha,
fala, come e bebe. Uma mula do futuro. A excepção, a mula que a sociedade de mulas nunca admitirá...
Poucos livros se terão escrito com tamanha actualidade: mais um exemplo dessa
actualidade: os cientistas vendem rifas a sortear um garrafão de vinho para
financiar a investigação, uma vez que o governo deixou de o fazer. Não
estaremos muito longe disso.
O
empreendedorismo da Mula Sonhadora parece condenado ao fracasso, em terra de
mulas pragmáticas :) Mulas do bloco central, diria eu… não se pode agitar
as águas…
Alguns pormenores que revelam bem, a actualidade e o sentido crítico deste livro:
- O
funcionário encarregado de ouvir as contestações… é surdo. Kafka no seu melhor.
- No
entanto, o cientista ganha mais dinheiro jogando bilhar do que fazendo ciência.
- A
burocracia com a sua dupla função: dificultar o acesso dos orelhudos aos seus
direitos legais e justificar o poder. Kafka no seu melhor, segundo episódio.
Mas é mais que isso: a burocracia é uma das principais estratégias para servir
plano de empobrecimento.
- O
cerne da questão. O problema não se resume à União; o problema existirá sempre,
enquanto houver mulas e contado.
- Maria
d’Arcada, metáfora da da Fonte, a mulher minhota não podia faltar na revolta
dos orelhudos. E a padeira Brites- com mulheres assim não há mula que resista
- E o
povo só voltou a ser povo quando queimou os barretes de orelhudos que lhe
haviam enfiado.
- Che
Guevara ou Vasques Colarinhos; profissão: revolucionário :)
- Um
final com um delicioso toque do Padre António Vieira.
Enfim, um livro divertidissimo, actual, crítico e mesmo mordaz.
Ainda por cima... DE BORLA! (pode-se, no entanto, contribuir para as despesas do autor, nos moldes que ele descreve)
No blogue do autor:
3 comentários:
Vou já descarregar :) depois carrego uns euros para o Luís.
Já estou ansioso por ler este livro, e só sei dele à uns minutos.
um abraço ao Manuel, pelas sempre boas noticias.
Muito bem!
Estou a planear algo parecido. Daqui a um par de meses...
Isso é uma grande notícia, Cristina :)
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